É verdade que “Quem foi o primeiro ser humano” é uma pergunta que qualquer um de nós faria. Mas, na prática, ela é inaplicável e revela nossa confusão a respeito de como a vida evoluiu e, principalmente, sobre a dissociação entre as espécies como elas são na realidade e a classificação que damos a elas para fins de estudo.
Primeiro, sobre classificação. Classificamos as coisas por um motivo muito simples, óbvio, e até ridículo: por que fica mais fácil estudar. Classificamos os seres vivos em unicelulares, pluricelulares, plantas, animais, mamíferos, primatas, humanos, simplesmente por que isso facilita a compreensão sobre as diferentes espécies de seres vivos no planeta. Mas é uma idealização grosseira da realidade. Necessária, mas grosseira.
Mas quando entramos na realidade da vida biológica, as coisas não são tão simples assim. Não há uma linha divisória clara sobre os seres vivos. E, quando o assunto é a evolução das espécies, a coisa fica ainda mais nebulosa.
Se fosse possível olhar para trás no tempo e acompanhar, retroativamente, a evolução humana (ou de qualquer ser vivo) como ela se deu, não seria possível encontrar um ponto onde, de um lado, temos um ser humano, e de outro, temos uma outra espécie. Não é assim que funciona. As mutações que acontecem com os seres vivos são graduais e vão “mudando” os seres aos poucos. Em algum momento, o conjunto das mutações que fez certas populações sobreviverem é tal que aquela população pode, definitivamente, ser considerada outra espécie. Mas não é algo que ocorre da noite para o dia, e nem algo que seja possível determinar em um ponto específico.
A melhor analogia para esta situação é comparar com nosso próprio crescimento em vida. Embora o ser humano seja classificado como, grosso modo, criança, adolescente, adulto e idoso, não há como dizer exatamente em que momento a pessoa se torna de uma criança em um adulto. Não é como se você pudesse ir dormir um dia como criança e acordar no outro como adolescente. Quando você menos espera, você já está do outro lado.
É mais ou menos isso o que acontece na evolução das espécies: ao invés de “inícios” e “fim”, a evolução humana é um “degradê” que gradualmente transforma uma espécie em outra. Então, se você dividisse cada mutação dos nossos ancestrais como se fosse uma foto, não seria possível encontrar um “primeiro humano”. Num momento, ele não é, no outro, ele é. Isso parece contraintuitivo, considerando que passamos a vida inteira aprendendo a definir fronteiras entre as coisas, mas o mundo físico não é muito interessado em fronteiras.
Observe esta imagem do espectro de cores. Imagine que cada cor represente uma espécie na linha do tempo da evolução humana. É possível dizer onde o vermelho termina e o rosa começa?
Os fósseis de seres vivos encontrados são classificados de forma a nos dar um “norte” (como dizemos por aqui), para nos guiar em relação a quanto no tempo e em que contexto da evolução estes fósseis estão inseridos. Mais uma vez, por que facilita o estudo e nos ajuda a interpretar melhor a questão. Eles não representam necessariamente “limiares” entre uma espécie e outra, como se fosse possível encontrar, na geração anterior a deste fóssil, imediatamente uma outra espécie. Em outras palavras, pare de querer encontrar um “elo perdido” entre humano e primata. Você não vai encontrar um (até por que nós ainda somos primatas).
A estrada imaginária da evolução humana: Cada espécie ali representada serve apenas como demarcações para a melhor compreensão do contexto onde estas se inserem na evolução e não correspondem a “estágios intermediários”. São apenas os fósseis que encontramos, apenas alguns “frames” do filme da evolução da vida.
O vídeo abaixo explica muito bem e de forma ilustrativa esta questão. Infelizmente, o vídeo está em inglês, mas ele é inspirado pelo livro “A Magia da Realidade”, do Richard Dawkins, que eu inclusivé recomendo muito (você pode ler uma resenha do livro aqui). Confira o vídeo, que é instrutivo nesse sentido:
10 comentários
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Gostei muito dessa matéria. Essa palhaçada brasileira de acreditar em papai noel e duende só atrasa o desenvolvimento das pessoas no país. Ou aceitamos a realidade ou vamos viver iguais aos ignorantes fundamentalistas… Viva a razão e a ciência, que nos libertarão da tirania dos mentirosos e fantasiosos que exploram a miséria humana com crendices estúpidas. Parabéns pelo artigo!
É como se hoje, meu filho nascesse com um ‘morrinho’ nas costas, ele ainda é humano.
O filho desse nascesse com esse ‘morrinho’ maior, ainda é humano
O filho dele nascesse com um ossinho pra fora, ainda é humano
O filho dele nascesse com um ossinho maior e assim cada vez mais até ter um osso bem grande pra fora
No fim, em 7000 anos poderíamos olhar pra ele e dizer ‘isso não é mais um humano’, e compararíamos ele comigo dizendo ‘são espécies diferentes’
Mas de pai pra filho, ou de filho pra neto, não tem como dizer “isso é um ser humano e esse outro não é”
Parabéns pelo excelente artigo. 🙂
A maldição da mente descontínua à mostra…
Excelente Artigo, Rafael, parabéns.
Isto de se saber o que é ser Ser Humano é uma das mais antigas perguntas da Humanida. Este post, sendo excelente, não responde à pergunta totalmente, até porque de facto é possível saber onde acaba o vermelho e começa o rosa. Há a sensação de não poder dizer. Mas pode-se perfeitamente dizer onde acaba uma cor e começa outra. Enquanto não é uma cor diferente, bom… É uma mistura das duas.
Pelo q entendi do artigo, ele quis dizer q de uma espécie anterior ao ser humano, n nasceu um ser humano de hoje em dia, mas sim alguma espécie com uma característica a mais do q todos os outros daquela espécie, o tornando apenas diferente, mas não outra espécie. O ser humano foi uma espécie q surgiu com um conjunto de características diferentes o bastante para ser considerado outra espécie, n apenas um estranho no ninho.
André, pela evolução é incoerente falar que o elo perdido não existe, ou então teríamos que dizer que a mudança entre as espécies foram bruscas, contradizendo todo o post acima. Acontece que as espécies intermediárias foram extintas pela própria seleção natural por não serem adaptadas, restando somente os antecessores e os sucessores adaptados.
Israel, pela evolução, devemos tratar todos os indivíduos sem exceções como elos perdidos OU como se não existisse elo perdido… a segunda opção é mais fácil e logicamente mais aceitável.
Israel, talvez você não tenha entendido o artigo. Só existiria UM elo perdido se tivesse tido uma mudança brusca. Mas como disse nosso amigo Victor, todos devem ser considerados ou então, nenhum. Falar em um elo perdido é aceitar que só houve uma espécie entre nós e os antigos primatas. Entendeu?
Foi seguindo esse raciocínio que eu comentei. Não existe “O elo perdido” entre o humano moderno e antigos primatas.
Segue o trecho do artigo: “Os fósseis de seres vivos encontrados são classificados de forma a nos dar um “norte” (como dizemos por aqui), para nos guiar em relação a quanto no tempo e em que contexto da evolução estes fósseis estão inseridos. Mais uma vez, por que facilita o estudo e nos ajuda a interpretar melhor a questão. Eles NÃO REPRESENTAM, necessariamente “LIMIARES” entre uma espécie e outra, como se fosse possível encontrar, na geração anterior a deste fóssil, imediatamente uma outra espécie. Em outras palavras, PARE DE QUERER ENCONTRAR “UM ELO PERDIDO” entre humano e primata. Você não vai encontrar um (até por que nós ainda somos primatas).”
Excelente artigo!
É isso que não entra na cabeça dos DI/Criacionistas, não existe o tal de Elo Perdido. 😀
Quanto ao vídeo, mesmo estando em inglês, há a opção de traduzir as legendas para o Português, a tradução não é perfeita mas é completamente compreensível. 😀
Obrigado!
[…] origem com documentário. Origem da Vida. Alentejo. Evolução, comprovada, e mais notícias. Elo Perdido. Biodiversidade, ano, datas. Árvore. 1ª vida artificial. Gaia-Medea. Chaminés Negras. Lost City. […]