O Rapto de Europa e as Filhas de Atlas

O touro é um animal central na mitologia dos vários povos que habitaram a região mediterrânica e o crescente fértil. A sua importância remonta mesmo a tempos pré-históricos, a julgar pelas frequentes representações em pinturas rupestres do auroque, uma espécie de touro entretanto extinta. É por isso natural que a constelação do Touro seja uma das mais antigas para as quais há registos históricos, com referências prováveis em textos da Suméria, na Epopeia de Gilgamesh, quando o herói Gilgamesh e o seu comparsa, Enkidu, matam o “Touro dos Céus” enviado pela vingativa deusa Ishtar.

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[A constelação do Touro num globo celeste da autoria de Gerardus Mercator (1551). Fonte: Harvard Map Collection.]

Na mitologia grega, a figura do Touro é normalmente associada ao mito do rapto de Europa por Zeus. Europa era uma princesa fenícia — povo que vivia junto ao Mediterrâneo, na área ocupada actualmente pelo Líbano, Palestina e Israel, famoso pelas artes da navegação e comércio — que chamou a atenção de Zeus pela sua beleza. O maior dos deuses decidiu de imediato raptá-la. Para o efeito transformou-se num touro branco e misturou-se com os restantes bovídeos das manadas do rei, que pastavam junto ao mar. Ao ver o belo touro branco e manso, Europa, incauta, aproximou-se, decorou-o com grinaldas de flores e acabou por saltar para o seu lombo. Zeus aproveitou o momento e lançou-se rapidamente ao mar, levando a princesa para a ilha de Creta, onde deu à luz 3 filhos de Zeus — Minos, Radamanto e Sarpedão — e foi a primeira rainha, casando com o rei Astério (padrasto dos 3 filhos). Minos viria a ser rei de Creta depois de uma luta fratricida. A princesa deu também o nome ao velho continente. O nome era aparentemente usado como topónimo de uma região da Trácia, actual Turquia, mas foi gradualmente estendido até englobar a área actual. Zeus teria colocado a imagem do touro no firmamento em memória deste acontecimento seminal da história de Creta.

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[“O Rapto de Europa”, pintura por Rembrandt (1632). Fonte: J. Paul Getty Museum.]

O Touro não se fica por aqui em termos de referências a episódios mitológicos. A constelação tem dois enxames de estrelas que se contam entre os mais próximos do Sol, as Híades e as Pleiades, aos quais estão associados também mitos antigos.

As Híades e as Pleiades eram filhas de Atlas (um dos derrotados na revolução liderada por Zeus contra os titãs) e Pleione ou Etra (ninfas, filhas dos titãs Oceano e Tétis). Atlas, ao contrário dos seus congéneres, foi poupado às profundezas do Tártaro, mas condenado a carregar a esfera celeste às suas costas. No que concerne às Híades, as várias fontes falam de números diferentes de irmãs e não estão mesmo de acordo quanto aos seus nomes. Alguns dos nomes citados são: Ambrosia, Eudora, Ésile, Coronis, Pólixo e Féio. A certa altura, o seu irmão Hias morreu num acidente de caça. As irmãs fizeram um luto tão rigoroso que morreram todas de desgosto. Zeus, comovido com a dedicação das irmãs a Hias, transformou-as em estrelas e colocou-as no firmamento. As lágrimas das irmãs tornaram-se um símbolo para a chuva. De facto, a aparição das Híades no firmamento, durante o Outono, anunciava o início da estação das chuvas.

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[“Pleiades”, pintura por Elihu Vedder (1885). Fonte: Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.]

As Pleiades, por seu lado, eram 7 irmãs — Electra, Maia, Taigete, Alcíone, Celeno, Asterope e Mérope — filhas de Atlas e Pleione. As irmãs eram ninfas companheiras de Artemis, a deusa da caça. Reza a lenda que, depois de Atlas ter sido condenado, as irmãs começaram a ser perseguidas pelo gigante Orionte, com propósitos pouco honestos. Zeus, compadecendo-se de Atlas, que estava preocupado com o destino das filhas, transformou as irmãs em pombas, mas Orionte não desistiu. Finalmente, Zeus transformou-as em estrelas e colocou-as no firmamento, com o gigante Orionte por perto mas nunca conseguindo alcançá-las. Outra versão da lenda conta que as Pleiades se suicidaram quando foram confrontadas com a condenação do seu pai, Atlas, ou com a morte das suas irmãs, as Híades. Em virtude destes episódios, Zeus transformou-as em estrelas e colocou-as na esfera celeste.

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[A constelação do Touro com os limites definidos pela União Astronómica Internacional.]

Aldebaran, a estrela α e a luminária da constelação, é uma gigante situada a cerca de 65 anos-luz. Apesar de se encontrar junto às estrelas das Híades, esta associação é apenas um alinhamento fortuito — o enxame encontra-se para lá de Aldebaran, a cerca de 153 anos-luz. A cor alaranjada da estrela é devida à sua temperatura superficial de 4000 Kelvin, tipo espectral K5III, substancialmente mais baixa do que os 5800 Kelvin do Sol. Aldebaran não é uma estrela particularmente maciça, com apenas 1.7 massas solares. Quando esteve na sequência principal foi uma estrela mais quente, semelhante às componentes do sistema binário Porrima, a estrela γ da Virgem, com tipo espectral F0V correspondendo a 7200 Kelvin de temperatura superficial e um raio 30% maior do que o solar. Depois de 2.7 mil milhões de anos a transformar hidrogénio em hélio no seu âmago, a estrela ficou com um núcleo inerte de hélio em contracção lenta. Numa camada adjacente ao núcleo, a temperatura subiu o suficiente para iniciar a fusão do hidrogénio em hélio, a fonte da maior parte da energia da estrela. A energia libertada por esta camada provocou a expansão das camadas exteriores, transformando a estrela numa gigante com 43 vezes o diâmetro e 425 vezes a luminosidade do Sol, mas com uma temperatura superficial mais fria. Aldebaran está a caminho de se transformar numa gigante vermelha, altura em que a temperatura e densidade do núcleo será suficiente para despoletar a fusão do hélio em carbono e oxigénio, dando início a um novo ciclo de fusão nuclear.

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[O disco da gigante laranja Aldebaran, a luminária da constelação do Touro, com o Sol à escala, como termo de comparação.
A cerca de 153 anos-luz, o enxame de estrelas das Híades é o mais próximo do Sol e, por esse motivo, alvo de escrutínio especial por parte dos astrónomos. Por curiosidade, a essa distância o Sol teria magnitude 8.2 e seria visível apenas com binóculos ou com um pequeno telescópio.]

Um enxame de estrelas consiste num grupo de centenas ou milhares de estrelas que nasceram em conjunto, numa mesma nuvem molecular, e que têm por isso a mesma idade, a mesma abundância de elementos e a mesma trajectória no espaço. O enxame mantém-se coeso devido à atracção gravitacional mútua entre os membros. Os membros mais brilhantes das Híades, nomeadamente a γ, a δ-1, a ε e a θ do Touro, formam com Aldebaran um asterismo em forma de “V” que marca a cabeça do Touro. Estas estrelas são também gigantes laranja, como Aldebaran mas mais luminosas, e foram as primeiras estrelas do enxame a evoluir para fora da sequência principal. Estudos da população estelar do enxame mostram que as estrelas que o compõem devem ter nascido há cerca de 625 milhões de anos e ocupam agora um volume de espaço com cerca de 65 anos-luz, incluindo os membros mais periféricos. Algumas estrelas do enxame detectadas para lá deste limite terão já conseguido escapar à atracção gravitacional do conjunto dos membros e dispersar-se-ão gradualmente pelo espaço. Esse será provavelmente o destino das restantes estrelas do enxame ao longo de muitos milhões de anos.

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[As principais atracções da constelação do Touro: Aldebaran, a sua luminária; o enxame estelar das Híades, o mais próximo do Sol; o enxame estelar das Pleiades, um dos mais próximos do Sol e com estrelas muito jovens; a nuvem molecular de Touro-Cocheiro, uma das maternidades estelares mais próximas do Sol. Crédito: Alson Wong (anotações pelo autor).]

Por seu lado, o enxame das Pleiades é constituído por estrelas bem mais jovens, com uns estimados 100 milhões de anos de idade. O enxame está localizado entre as Híades e os pés de Perseu, uma das constelações adjacentes ao Touro. Estimativas recentes colocam as Pleiades a uma distância de 430 anos-luz, aproximadamente 3 vezes mais distantes do que as Híades, o que explica, juntamente com a sua maior juventude, porque ocupam uma área do céu bem mais pequena. A essa distância o Sol teria magnitude 10.5 e seria necessário um pequeno telescópio para conseguir observá-lo.

As estrelas mais brilhantes do enxame são gigantes de tipo espectral B, quentes e muito luminosas. Alcione, a mais brilhante, é 6 vezes mais maciça e 2400 vezes mais luminosa do que o Sol. Nove das estrelas do enxame têm nomes — 2 têm o nome dos pais, Atlas e Pleione, as restantes 7 os nomes das irmãs. O enxame está a atravessar uma região do espaço ocupada pela nuvem molecular do Touro-Cocheiro. A luz branca-azulada das suas estrelas mais luminosas é reflectida pela poeira e pelo gás interestelares permitindo observar a intrincada teia de material que rodeia o enxame e que o torna tão fotogénico. As estimativas actuais apontam para que o enxame tenha cerca de 1000 membros dispersos por uma região do espaço com 43 anos-luz.

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[O enxame das Pleiades com as suas estrelas mais brilhantes nomeadas. Atlas e Pleione são os pais das 7 irmãs: Alcione, Merope, Electra, Maia, Asterope, Taigeta e Celaeno. Crédito: Emil Ivanov (anotações pelo autor).]

A nuvem molecular de Touro-Cocheiro é a maternidade estelar mais próxima do Sol, situada a apenas 430 anos-luz. É visível em fotografias como uma série de filamentos escuros de poeira interestelar que ocupam parte das constelações do Touro e do Cocheiro e a região dos pés de Perseu. Esta nuvem molecular é estudada intensamente pelos astrónomos que tentam perceber o processo de formação das estrelas e dos sistemas planetários pois nela foram identificadas várias estrelas recém nascidas (com algumas dezenas de milhares de anos) e alguns embriões de estrelas em formação. As estrelas formadas por esta nuvem têm massas modestas, semelhantes ou ligeiramente inferiores à do Sol. Neste local, poderíamos muito bem imaginar-nos a assistir ao nascimento do nosso Sistema Solar.

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[Esta imagem é uma composição de duas fotografias, uma na zona do visível proveniente do Digitized Sky Survey 2, a outra em comprimentos de onda submilimétricos obtida pelo observatório APEX do ESO. A imagem mostra a região circundante da estrela φ (phi) do Touro. A estrutura filamentosa observada pelo APEX é parte da nuvem molecular do Touro-Cocheiro. Neste filamento, o gás e a poeira interestelar encontram-se a temperaturas muito baixas. Os nódulos mais densos da nuvem, brancos ou esbranquiçados, são estrelas em formação, ainda encobertas pela densa poeira da nuvem molecular. Crédito: ESO, APEX (MPIfR/ESO/OSO), A. Hacar et al. e Digitized Sky Survey 2.]

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[Esta imagem, obtida com o Telescópio Espacial Hubble, mostra uma outra parte da nuvem molecular de Touro-Cocheiro onde se encontram várias estrelas recém nascidas, entre as quais a HL Tauri. A caixa mostra uma imagem fantástica desta estrela e do seu disco protoplanetário, obtida com o conjunto de telescópios de ondas submilimétricas do ALMA, localizados no Deserto de Atacama. A estrela está na zona central do disco. Os anéis concêntricos mais escuros são regiões do disco com menor quantidade de material possivelmente capturado por planetas que aí se formaram. Crédito: ALMA (ESO/NAOJ/NRAO), ESA/Hubble e NASA.]

2 comentários

    • Renato Romão on 17/11/2014 at 14:36
    • Responder

    Realmente obrigado por este texto. Deliciosa leitura e excelente analogia, pois, o Touro e os seus chifres são símbolos de virilidade (masculina) e fertilidade (nascimento e continua evolução dos Humanos), nada melhor para enquadrar com o berçário da constelação de Touro.

    Magnifico texto.

    Atenção, o Touro como símbolo mitológico também estava enraizado em outros continentes, por Ex. na América do Norte, através de outros bovinos como o bisonte e em África através dos búfalos.

    Excelente post para um leigo muito curioso como eu!

    Abraços!

  1. muito bom, muito bom mesmo. obrigada e parabéns. abraço estrelado, Janine

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