O Trigo e o Joio

Como noticiamos ontem, a missão Kepler presenteou-nos com os seus primeiros 5 planetas, os primeiros de centenas que irá certamente detectar. O que pode não transparecer destas notícias é o imenso e difícil trabalho realizado pelos investigadores da missão.

As observações realizadas pelo Kepler são enviadas em bruto para a Terra com uma periodicidade aproximadamente mensal. Estes dados são então processados com o objectivo de eliminar efeitos sistemáticos provocados pelos instrumentos do observatório e minimizar fontes de ruído aleatório.

Depois de realizado esse trabalho computacionalmente intensivo o resultado é um conjunto de milhares de curvas de luz de alta precisão para cada uma das estrelas observadas. Estas curvas são submetidas depois a mais uma etapa computacionalmente intensiva na qual as ditas são analisadas, uma a uma, através de algoritmos especializados na detecção de potenciais trânsitos.

O resultado desta análise consiste numa lista de estrelas para as quais a análise da curva de luz sugere a existência de trânsitos. Estes são candidatos a exoplanetas. Numa primeira análise de 43 dias de dados do Kepler foram encontrados 177 destes candidatos. Mas a maioria destes candidatos não são na realidade exoplanetas, mas antes sistemas que mimetizam o comportamento de um exoplaneta em trânsito. Tais candidatos designam-se de “falsos positivos” e a sua detecção precoce é fundamental por razões que veremos mais à frente.

Existem várias possibilidades para um falso positivo. A estrela em causa pode apresentar as pequenas diminuições periódicas de brilho características de um trânsito, mas a origem dessas variações de brilho pode não ser um exoplaneta. Pode tratar-se de uma estrela binária com eclipses em que a estrela secundária oculta “de raspão” apenas a componente primária. Outra possibilidade corresponde a manchas solares na fotosfera da estrela que a atravessam periodicamente. Finalmente, a luz da estrela pode estar fundida (no mesmo píxel ou píxeis) com a de um sistema binário com eclipses muito mais débil, mais longínqua mas por acaso quase na mesma linha de visão.

Todas estas possibilidades poderiam ser facilmente descartadas fazendo o seguimento de todos os candidatos pelo método da velocidade radial uma vez que, nesse caso, seria possível determinar se (a) existia um corpo em órbita da estrela candidata, e (b) a massa desse corpo. No entanto, existem muito poucos observatórios no mundo com capacidade para realizar as medições da velocidade radial com a precisão necessária, e o tempo de utilização destes telescópios é muito dispendioso e alvo de competição intensa entre os astrónomos. Por este motivo, as estratégias de seguimento de candidatos a exoplanetas estão organizadas por forma a eliminar o maior número possível de falsos positivos e utilizar o tempo nestes telescópios com espectrómetros de eleição nos candidatos com probabilidades mais fortes de virem a ser confirmados como exoplanetas. O despiste de falsos positivos é realizado em telescópios de dimensão mais modesta e pode envolver medições da velocidade radial de baixa precisão, obtenção de imagens de alta resolução e fotometria de precisão.

No caso do Kepler, os candidatos finais são seguidos pelo telescópio Keck I no Hawaii e o telescópio Hobby-Ebberly no Texas, para obter velocidades radiais com elevada precisão que permitam estimar a massa do planeta. Mas existe um problema. A missão Kepler propõe-se descobrir planetas com a massa da Terra a uma distância aproximadamente de 1 UA, de uma estrela hospedeira semelhante ao Sol. Ora, por exemplo, o efeito da Terra na velocidade radial do Sol é de apenas 0.1 m/s e portanto a equipa do Kepler terá de ser capaz de não só detectar o trânsito de um tal planeta mas depois terá de confirmar a sua existência medindo a variação na velocidade radial da estrela hospedeira com uma precisão de pelo menos 0.1 m/s. Nenhum espectrógrafo actual tem essa precisão. O HARPS, em La Silla, e o HIRES, no Keck, atingem uma precisão de 1 m/s.

Por essa razão encontra-se em construção uma réplica do HARPS, designado HARPS-NEF (New Earths Facility), que terá uma precisão superior à do seu irmão mais velho e será instalado no WHT (William Herschel Telescope) de 4.2 metros na ilha de La Palma, Canárias. A localização num observatório do hemisfério norte tem como objectivo, obviamente, o acesso ao campo de visão do Kepler na constelação Cisne e Lira. O HARPS-NEF deverá iniciar as observações durante 2010. A foto que se segue é do HARPS original, no observatório de La Silla, Chile.

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