Como já dissemos aqui várias vezes, estamos abertos a contribuições para o blog, mesmo sendo pontuais.
Há algumas semanas atrás, escrevi este post sobre uma possível Revolução sobre o Início da Vida na Terra.
Nessa altura, um dos nosso leitores, o Sérgio Paulino, corrigiu uma informação importante no texto.
Vai daí, perguntei-lhe se ele queria escrever um artigo sobre este assunto, e ele amavelmente aceitou.
Assim, o excelente texto de seguida, é da autoria do Sérgio Paulino.
As fontes hidrotermais alcalinas e a origem da vida na Terra
Os primeiros modelos científicos da origem da vida na Terra surgiram à pouco mais de 80 anos com o desenvolvimento da teoria do caldo ou sopa primitiva concebida, independentemente, pelo russo Aleksandr Oparin e pelo inglês John Haldane. Ambos os modelos defendiam que a evolução biológica teria sido precedida duma evolução química, onde a atmosfera primitiva terrestre e a radiação solar ultra-violeta poderiam ter desempenhado um papel central.
A teoria ganhou particular notoriedade nos anos 50 com as experiências laboratoriais de Stanley Miller. Estas experiências demonstravam a síntese de compostos orgânicos a partir de uma mistura gasosa de metano (CH4), amoníaco (NH3) e hidrogénio (H2), submetida a descargas eléctricas, condições que se pensava na época, reproduzirem o ambiente e a composição da atmosfera terrestre primitiva.
No entanto, a sopa primordial é homogénea em termos químicos, pelo que não tem capacidade para gerar desequilíbrios termodinâmicos essenciais ao desenvolvimento da vida.
A descoberta nos anos 70 de fontes hidrotermais submarinas veio, no entanto, alterar de forma significativa as noções sobre a origem da vida na Terra, uma vez que revelou um conjunto de novos ambientes com condições quimicamente favoráveis para suportar a síntese pré-biótica na ausência de luz solar; uma verdadeira alternativa à hipótese da sopa primitiva de Oparin e Haldane.
Localizadas em fundos marinhos basálticos, tipicamente nas proximidades dos locais de divergência de placas tectónicas oceânicas, as fontes hidrotermais submarinas resultam da infiltração da água do mar através de fracturas na crusta terrestre, até locais próximos de câmaras magmáticas.
É nesses locais profundos que a água é superaquecida a temperaturas superiores a 400º C, transformando-se, por troca química com as rochas, num fluído ácido (pH 2-3) rico em metais (Fe e Mn) e gases dissolvidos (CO2, H2S, H2 e CH4), que por convecção é expelido nos fundos marinhos através de chaminés de fumo negro.
Embora temporários, estes sistemas hidrotermais geram uma série de gradientes térmicos e químicos num espaço de centímetros a poucos metros e suportam vastas cadeias tróficas, cuja produtividade é puramente quimiossintética.
A ideia de que as fontes hidrotermais de fumo negro poderiam ter sido o berço para a vida na Terra é, no entanto, vulgarmente posta em causa, devido às altas temperaturas dos efluentes (270 a 400 ºC), condições demasiado extremas para a sobrevivência dos organismos vivos.
Em Dezembro de 2000, cientistas americanos descobriram um novo tipo de fonte hidrotermal submarina, radicalmente diferente das chaminés de fumo negro.
Conhecido por Lost City, o novo sistema de fontes hidrotermais localiza-se a cerca de 15 Km da Crista Média do Atlântico, perto do topo do maciço Atlantis, numa região da crusta terrestre com 1,5 a 2 milhões de anos.
Surpreendentemente, Lost City encontra-se activa há pelo menos 30.000 anos.
O motor das fontes hidrotermais esconde-se dentro do maciço, nas várias fracturas por onde se infiltra e circula a água do mar.
Ao contrário do que acontece nas fontes hidrotermais de fumo negro, o fluído que alimenta Lost City nunca atinge profundidades próximas das câmaras magmáticas, pelo que nunca aquece a temperaturas superiores a 91º C.
Aparentemente, o movimento convectivo tem origem apenas no arrefecimento litosférico e na ocorrência de reacções químicas exotérmicas entre o fluído circulante e as rochas do maciço compostas por olivina.
Através de um processo geoquímico conhecido por serpentinização, a passagem da água do mar por estas rochas ricas em ferro e magnésio, gera um efluente altamente alcalino (pH 9-11), extremamente pobre em metais mas com um alto teor em sulfatos e cálcio, com altas concentrações de hidrogénio (H2), metano (CH4) e de outros hidrocarbonatos dissolvidos, e pouco ou nenhum dióxido de carbono (CO2). A mistura do efluente quente e alcalino com a água do mar resulta na precipitação de carbonatos sob a forma de chaminés de calcário que podem atingir até 60 metros de altura. No interior destas chaminés formam-se microcompartimentos em forma de bolha por onde fluem, continuamente, os fluídos alcalinos originados no interior do maciço.
As características singulares das fontes hidrotermais de Lost City chamaram a atenção do biólogo William Martin (Universidade de Düsseldorf) e do geoquímico Michael Russell (JPL, California).
Juntos formularam uma teoria inovadora que identifica os sistemas de fontes hidrotermais alcalinas semelhantes a Lost City, como locais de eleição para o aparecimento da vida na Terra primitiva.
Tal como explicou William Martin na palestra que deu no passado dia 28 de Janeiro, no Instituto de Tecnologia Química e Biológica, em Oeiras, a vida poderia ter evoluído à cerca de 4,2 mil milhões de anos, em gradientes químicos e térmicos gerados em fontes hidrotermais alcalinas, onde a fonte de energia formar-se-ia continuamente a partir do desequilíbrio termodinâmico do H2 hidrotermal, originado a partir da serpentinização da crusta terrestre com o CO2 marinho (nessa época abundantemente libertado pela intensa actividade vulcânica).
A precipitação de sulfuretos ferrosos (FeS) no interior de microcompartimentos semelhantes aos observados nas chaminés de Lost City, teria gerado uma superfície de catálise inorgânica para a formação e concentração de compostos orgânicos, que mais tarde, viria a ser substituída por proteínas catalisadoras, que emergiriam naturalmente no processo de catálise inorgânica, ou pela implementação de um processo rudimentar de sistemas auto-replicativos baseados no ARN.
William Martin identificou uma série de vias metabólicas simples que poderiam ter sido facilmente reproduzidas em ambientes confinados como o dos microcompartimentos das fontes hidrotermais alcalinas.
A acumulação de ácidos gordos no interior dos microcompartimentos poderiam ter conduzido à formação espontânea de uma bicamada lipídica semelhante às membranas citoplasmáticas dos procariotas.
A formação das primeiras membranas e a invenção de mecanismos membranares capazes de reter uma química redox na superfície celular, teriam sido fundamentais para a libertação dos primeiros organismos vivos da sua prisão no interior dos microcompartimentos.
Este seria o passo decisivo para a implementação da evolução biológica darwiniana, da qual todos somos herdeiros!
Leitura adicional:
Martin W, Russell MJ: On the origins of cells: An hypothesis for the evolutionary transitions from abiotic geochemistry to chemoautotrophic prokaryotes, and from prokaryotes to nucleated cells. Phil. Trans Roy. Soc. Lond. B 358:59–85 (2003).
Russell MJ, Martin W: The rocky roots of the acetyl-CoA pathway. Trends Biochem. Sci. 29:358–363 (2004).
Martin W, Russell MJ: On the origin of biochemistry at an alkaline hydrothermal vent. Phil. Trans Roy. Soc. Lond. B 367:1887–1925 (2007).
Martin W, Baross J, Kelley D, Russell MJ: Hydrothermal vents and the origin of life. Nature Rev. Microbiol. 6:805–814 (2008).
Alguns links que podem querer ler:
Wikipedia.
A Serpentinite-Hosted Ecosystem: The Lost City Hydrothermal Field.
Abiogenic Hydrocarbon Production at Lost City Hydrothermal Field.
Lost City Hydrothermal Field.
Lost City Pumps Life-Essential Chemicals At Rates Unseen At Typical Deep Ocean Hydrothermal Vents.
Hydrogen And Methane Sustain Unusual Life At Sea Floor’s ‘Lost City’.
Lost City… uma cidade reencontrada.
Lost City Expedition.
New Life at the Lost City Hydrothermal Vent Field.
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[…] os autores do artigo, a resposta poderá estar na química de fontes hidrotermais alcalinas como as fontes submarinas de Lost City. Provavelmente abundantes nos primeiros oceanos terrestres, estes locais teriam as condições […]