Quem nos lê, sabe que temos acompanhado com muito interesse esta história da descoberta de uma “bactéria de arsénico”, nesta categoria.
Demos a notícia inicial neste post, que já teve 60 comentários.
É uma notícia já badalada na ficção científica, em que o veneno de uma criatura, é o elixir da vida de outra criatura.
Penso que dá para perceber que, para mim, esta é uma descoberta importante para a ciência, mas que na prática ainda não encontramos nada diferente na natureza (com uma origem diferente de toda a vida na Terra), e está longe daquilo que os especuladores andavam a dizer.
Entretanto tentei explicar o porquê da NASA ter divulgado esta descoberta, neste post, e comentário.
Penso que a minha posição baseia-se numa perspectiva educacional, de defesa do processo científico.
Parece-me sobretudo que a NASA (e outras instituições científicas) está finalmente a perceber que estamos numa sociedade da informação.
Em vez do que acontecia há 20 anos atrás, em que só sabíamos das notícias relevantes quando houvesse resultados finais, actualmente já é possível ver o processo científico em acção, com as críticas e contra-críticas normais inerentes a estas descobertas científicas.
Devido a isto, e por uma questão de educação científica, penso que é relevante continuarmos a dar conhecimento do que se vai dizendo pelos círculos científicos, acerca desta descoberta.
Alguns exemplos:
O Ron Oremland, começou por ser um dos grandes críticos da Felisa Wolfe-Simon, pensando que ela era “maluca”, convidou-a para o grupo dele, e é um dos autores do artigo científico, como podem ler aqui.
Ele até disse que as críticas são normais, fazem parte do processo científico: “If we are wrong, then other scientists should be motivated to reproduce our findings. If we are right (and I am strongly convinced that we are) our competitors will agree and help to advance our understanding of this phenomenon. I am eager for them to do so.”
O Seth Shostak exulta o resultado e realça a ligação à vida extraterrestre: “while it’s true that the microbe studied by Wolfe-Simon and her colleagues, despite being able to use arsenic, still preferred phosphorous, the result is nonetheless remarkable. Indeed, it’s akin to the joke about the talking dog: the surprise is not that it can do it well, but that it can do it at all. The bottom line, and the reason why this work is both relevant and encouraging for the search for cosmic company is this: In our efforts to find extraterrestrial life, we can easily run into a confounding problem — recognizing life when we see it.”
O Dirk Schulze-Makuch diz, neste artigo, que esta é a 1ª vez que vê evidências excelentes para a existência desta forma de arsénico nas bactérias, mas apesar de já estar convencido, acha que testes complementares serão necessários.
Eu próprio fiz algumas críticas neste comentário:
“Algumas das críticas penso que já estavam expostas em cima. Outras já tinha ideia, do que fui lendo desde que a notícia saiu.
Por exemplo:
– ser uma bactéria mudada e não propriamente se ter encontrado algo novo na natureza.
– a bactéria reproduzir-se, “viver”, melhor com fósforo do que arsénico. E como a natureza tende a escolher as “melhores” opções, tendo em conta a energia disponível, é normal que na prática na natureza se continuar a escolher fósforo.
– ainda haver fósforo (penso que é crítica do Steven Benner).
– a bactéria já era conhecida nestes ambientes. Já se falava do arsénico nestes casos há uns anos.
– não ser estável na solução aquática (penso que é crítica do Steven Benner).
– pertencer à mesma árvore da vida que nós (ou seja, não é vida “completamente diferente”).
etc…”
A Sara Seager, professora no MIT, e investigadora de extremófilos, diz isto:
“A nova descoberta é sobre bactérias que podem substituir o fósforo por arsênio nos elementos fundamentais constituintes das células. O arsênio e o fósforo são quimicamente semelhantes. Nessas bactérias, o arsênio está associado com os ácidos nucleicos e com as proteínas de uma maneira que levou os pesquisadores a sugerirem que o fósforo está sendo substituído pelo arsênio na cadeia de DNA da bactéria.
Contudo, descobertas extraordinárias exigem provas extraordinárias, e dados mais detalhados serão necessários para se chegar a conclusões mais robustas.
Por si só, a nova descoberta não sugere nada de novo para a compreensão da origem da vida na Terra.
O arsênio como um bloco de construção bioquímica é quase certamente uma adaptação, e não um remanescente de um cenário diferente para a origem da vida.
A conclusão é, no entanto, verdadeiramente entusiasmante ao mostrar que a vida pode existir fora das verdades tradicionais que têm sido convencionalmente aceitas até agora.
Os pesquisadores vão, sem dúvida, procurar por evidências que sustentem a existência de uma “biosfera sombra”, uma biosfera microbiana com formas de vida que nós ainda não reconhecemos porque elas poderiam ter uma bioquímica radicalmente diferente. Uma biosfera sombra significaria uma “segunda gênese” – uma origem e uma rota evolutiva independentes para o resto da vida como a conhecemos. (…)”
Andrew Moseman diz que nem tudo está errado, mas são precisas evidências extraordinárias que não existem: “The critics don’t allege that the team led by Ronald Oremland is definitely incorrect on all counts; rather, most charge that the data does not prove the extraordinary claim of arsenic replacing phosphorus in the DNA.”
A portuguesa Zita Martins, especialista nestes assuntos, diz isto neste comentário:
“Basicamente, isto tudo resume-se à descoberta de mais um extremófilo, nada mais. Qualquer Quimico com formação em Bioquimica/microbiologia ao ler o artigo da Science vê claramente que eles nem sequer provam que o Arsénio foi incorporado no “esqueleto” da molécula de ADN (ao invés do fósforo).
(…) nada foi provado pela NASA, e o trabalho tem uma série de falhas (…)”
A Rosie Redfield, especialista nestes assuntos, apresenta uma análise técnica bastante completa e crítica da descoberta, dizendo que a NASA não conseguiu provar nada, e que a experiência laboratorial tem diversas falhas. Muito interessantes são também alguns comentários nessa página.
O Steven Benner diz que a substituição do fósforo pelo arsénico “em minha opinião não ficou estabelecida neste trabalho“.
Barry Rosen diz, neste artigo, que “o arsénico pode estar simplesmente se concentrando nos extensos vacúolos das bactérias, e não se incorporando em sua bioquímica“.
Curiosamente, ele inicialmente estava mais convencido dos resultados: “They show that arsenic is in the DNA, but they don’t show that it is participating in the backbone, replacing phosphate”.
O bioquímico Larry Moran diz que o resultado da experiência da Felisa é trivial – não há nada de extraordinário.
Curiosamente, ele é a favor dos blogs de ciência, como o astroPT, que permite comentários/análises sobre aquilo que se vai descobrindo diariamente na ciência.
George Cody, mais um especialista nesta matéria, disse que já sabia da possibilidade de substituição de fósforo por arsénico, mas que na experiência da Felisa falta uma experiência fundamental: “The correct experiment to do would be mass spectrometry which would unambiguously determine whether an arsenate backbone was present or not in the DNA. I cannot accept this claim until such an experiment (easily done) is performed”.
Também diz que os cientistas responsáveis deveriam ter tentado seguir o “caminho dos lípidos“: “Actually, if arsenate had substituted for phosphate anywhere, I would have looked at the lipids first, again using mass-spectrometry”.
Interessante e cientificamente correcta, é também a sua opinião sobre a possível biosfera-sombra: “Ultimately, the idea of a shadow biosphere is interesting, but it would have to be demonstrated to be truly distinct from extant biochemistry, e.g. truly novel metabolic pathways, different bases for coding, different amino-acids or better still enzymes that were not based on amino-acids at all”.
E ele acaba a opinião dizendo, tal como Sagan, que afirmações extraordinárias requerem evidências extraordinárias.
Jim Hu critica os testes da Felisa, e não percebe porque não foram feitas experiências simples.
Ed Yong diz que a bactéria não faz aquilo que a Felisa ou os media dizem.
Diz que o resultado é importante, mas não é tão extraordinário como aparenta: “The discovery is amazing, but it’s easy to go overboard with it. (…) For a start, the bacteria – a strain known as GFAJ-1 – don’t depend on arsenic. They still contain detectable levels of phosphorus in their molecules and they actually grow better on phosphorus if given the chance. It’s just that they might be able to do without this typically essential element – an extreme and impressive ability in itself. Nor do the bacteria belong to a second branch of life on Earth. (…) That doesn’t, however, make them any less extraordinary. (…) It’s an amazing result, but there is room for doubt. As mentioned, Wolfe-Simon still found a smidgen of phosphorus in the bacteria by the end of the experiment. The levels were so low that the bacteria shouldn’t have been able to grow but it’s still not clear how important this phosphorus fraction is. Would the bacteria have genuinely been able to survive if there was no phosphorus at all? Nor is it clear if the arsenic-based molecules are part of the bacteria’s natural portfolio.”
Carl Zimmer também escreveu este artigo sobre vários cientistas que são críticos quanto a esta descoberta: “Almost unanimously, they think the NASA scientists have failed to make their case”.
Zimmer diz que nenhum cientista põe de parte a existência deste tipo de bactérias; simplesmente esta investigação da Felisa tem demasiadas falhas – não tomou certas precauções para não haver lugar a outras interpretações -, e por isso deverá ter levado a conclusões erróneas.
Os críticos basicamente dizem que alguns testes que são normais fazerem-se nos laboratórios científicos são suficientes para retirar todas as dúvidas sobre se a bactéria tem arsénico no DNA ou não. A Felisa não os fez. Mas proximamente vai haver cientistas a fazê-los, e por isso vão desfazer todas as dúvidas sobre as interpretações da Felisa.
Os comentários no artigo do Zimmer, também são muito interessantes.
Forest Rohwer, um microbiólogo que estuda precisamente novos tipos de bactérias, diz que os cientistas não conseguiram provar a existência da nova bactéria: “none of the arguments are very convincing on their own”.
Ele também disse que a investigação no laboratório foi tão mal feita, que os resultados obtidos não podem ser conclusivos: “It is pretty trivial to do a much better job”.
Alex Bradley, microbiólogo da NASA, sem saber, fez uma experiência semelhante, que levou aos mesmos resultados – mas tudo devido a falhas nos procedimentos! As bactérias da Felisa deviam na mesma estar a utilizar fósforo, do sal que a Felisa lhes estava a dar. Como as bactérias que existem no Mar dos Sargaços.
Diz também que a bactéria continua a ser dependente do fósforo: “If this DNA did not hydrolyze in water during the long extraction process, then it doesn’t have an arsenate backbone. It has a phosphate backbone. It is normal DNA.”
Bradley diz que estes resultados da Felisa têm demasiadas falhas: “this study lacks any real evidence for arsenate-based DNA; unfortunately these exciting claims are very very shaky”.
Roger Summons, que era o orientador do Bradley na altura, confirma esta conclusão do Bradley.
Paul Zachary “PZ” Myers, biólogo, diz que não é vida baseada no arsénico:
“What they also found, and this is the cool part, is that they incorporated the arsenate into familiar compounds (actually they didn’t fully demonstrate even this. What they showed was that, in the bacteria raised in arsenates, the proportion of arsenic rose and the proportion of phosphorus fell, which suggests indirectly that there could have been a replacement of the phosphorus by arsenic). DNA has a backbone of sugars linked together by phosphate bonds, for instance; in these baceria, some of those phosphates were replaced by arsenate. Some amino acids, serine, tyrosine, and threonine, can be modified by phosphates, and arsenate was substituted there, too. What this tells us is that the machinery of these cells is tolerant enough of the differences between phosphate and arsenate that it can keep on working to some degree no matter which one is present. So this means that researchers have found that some earthly bacteria that live in literally poisonous environments are adapted to find the presence of arsenic dramatically less lethal, and that they can even incorporate arsenic into their routine, familiar chemistry. It doesn’t say a lot about evolutionary history, I’m afraid. These are derived forms of bacteria that are adapting to artificially stringent environmental conditions, and they were found in a geologically young lake — so no, this is not the bacterium primeval. This lake also happens to be on Earth, not Saturn (…). It does say that life can survive in a surprisingly broad range of conditions, but we already knew that. So it’s nice work, a small piece of the story of life, but not quite the earthshaking news the bookmakers were predicting.”
John Hawks diz que os resultados desta descoberta são ficção.
Iddo Friedberg critica a interpretação dos resultados, e o peer-review que deixou que um artigo destes fosse publicado na Science: “Extraordinary claims attract extraordinary blogging. (…) To sum those up: yes, the microbes contain arsenate, the can grow on arsenic-rich media but there is no convincing evidence that arsenic gets incorporated into DNA, much less other molecules that use phosphate. Because this research is so much in the spotlight, the comments on it are in the spotlight too. I believe we will see some very interesting correspondence on the website and in the upcoming issues of Science. Which brings me to the point of this post: is the peer-review publication culture undergoing a reform?”
Mas diz muito bem das críticas posteriores na blogosfera científica: “post-publication peer-review seems to be a good thing: it quickly identifies issues with the science, and helps to fix them”.
Steven Pelech diz que o artigo da Felisa está cheio de especulações e poucas evidências científicas para as suas interpretações.
Shelley Copley disse abertamente: “Este artigo científico nunca deveria ter sido publicado!”
Grant Jacobs analisa como esta descoberta está a ser discutida nos blogs de ciência.
Deepak Singh diz que ainda bem que a blogosfera científica está a debater esta descoberta!
David Dodds critica o “media hype”, critica a forma como a NASA publicitou a notícia, e critica a forma como a NASA não quiz saber das críticas científicas ao artigo.
Ivan Oransky critica o embargo, comparando com outros, e critica as respostas da NASA.
Razib Khan critica o embargo, e sobretudo as especulações dos media: “Most science is arguably wrong. (…) (But the issue) is the press response.”
John Roth diz que a NASA usou um simples golpe publicitário, sem ter em atenção as críticas da comunidade científica, tal como fez com o meteorito marciano ALH 84001 em 1996 (uma crítica já exposta pelo nosso comentador Cristiano, aqui e aqui).
Como eu disse em cima, parece-me que este meu comentário resume tudo o que se passa aqui:
– possíveis erros dos cientistas responsáveis por este estudo,
– erros da NASA em termos de publicidade e de linguagem,
– erros dos jornalistas dos media,
– e ainda bem que estamos a ver o processo científico em movimento na blogosfera – a discussão científica está aberta agora para toda a comunidade
(é preciso é dar um contexto em termos de natureza da ciência).
Phil Plait está maravilhado com o processo da ciência, que sem dúvida, funciona!
“One other thing that’s clear is this means science works.
Someone claims a result, and someone else comes along, takes a look themself, and says, “Wait a second there, pardner…”
Science is a self-correcting process, and sometimes it takes time for those corrections.
The media interrupts that process, which I am not saying is a bad thing necessarily — I think people want to hear about interesting scientific findings, or else I never would’ve started this blog! — but it can throw a monkey in the wrench there. And, of course, showing something is wrong will never get the coverage that the initial finding does, but that’s human nature. And that’s something even science has to deal with sometimes.”
Por último, o jornal The Guardian (artigo, podcast), tal como nós, continua atento a esta descoberta, e está a actualizar constantemente comentários de cientistas sobre esta história.
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