O que aconteceu à estrela que explodiu na M51 ?


(A supernova 2011dh no dia 24 de Junho de 2011. Vizinhança da supernova ampliada em negativo. Crédito: Rafael Ferrando.)

A supernova recentemente detectada na M51 resultou do colapso gravitacional de uma estrela maciça. Neste “post” tento descrever, de forma necessariamente simplificada, em que consiste este mecanismo designado tecnicamente de colapso do núcleo, “core collapse” em inglês. De notar que apesar do mecanismo geral ser bem compreendido e corroborado pelas observações, há inúmeros detalhes que são ainda alvo de intenso debate científico.

Durante a sua vida, uma estrela maciça mantém um equilíbrio precário entre a gravidade e a pressão da radiação libertada pelas reacções de fusão nuclear que ocorrem no seu interior. Para tal a estrela recorre à fusão de vários elementos diferentes no seu núcleo: o hidrogénio, durante a sequência principal, depois o hélio, o carbono, o néon, o oxigénio, o silício, etc. De cada vez que um destes combustíveis nucleares acaba, o núcleo contrai-se, a temperatura aumenta até que eventualmente o núcleo se reconfigura e inicia a fusão do combustível seguinte. Por outro lado, a fusão dos tipos sucessivos de combustível na zona central do núcleo dura cada vez menos tempo, como se pode ver pelo quadro que se segue (estes valores variam com a massa da estrela).


(Crédito: Wikipedia.)

Esta sequência de reconfigurações continua até que, mesmo antes de iniciar a fusão do silício, a nossa estrela apresenta uma estrutura estratificada em várias camadas. A estratificação resulta da temperatura, densidade e composição do material contido nos vários pontos da estrela e que definem as reacções de fusão que aí podem ocorrer. Assim, da periferia para o centro temos: hidrogénio inerte, fusão do hidrogénio em hélio, fusão do hélio em carbono, etc. Na zona central do núcleo da estrela, a fusão do silício realiza-se em apenas alguns dias. Por comparação a estrela passa vários milhões de anos na sequência principal transformando hidrogénio em hélio. O produto da fusão do silício é o níquel-56, um núcleo radioactivo que depressa decai em cobalto-56, também radioactivo, que finalmente decai no núcleo de ferro-56, muito estável. Rapidamente forma-se uma “cinza” de ferro no núcleo da nossa estrela. Quando a fusão do silício termina, a estrela tenta utilizar o ferro-56 no seu núcleo para desencadear a próxima sequência de reacções nucleares. A fusão do ferro-56 em núcleos mais maciços, no entanto, absorve energia em vez de libertá-la, pelo que a zona mais interior do núcleo da estrela perde sustentação e começa a contrair-se sobre o seu próprio peso.


(Uma estrela maciça no final da sua vida. Note-se a estratificação da estrela em camadas onde ocorrem diferentes reacções nucleares de fusão. Crédito: www.cliffsnotes.com)

A determinada altura a temperatura e densidade são tão elevadas que os electrões livres começam a ser capturados pelos protões nos núcleos atómicos, formando neutrões e uma quantidade enorme de neutrinos, uma partícula esquiva que atravessa rapidamente a estrela transportando uma grande quantidade de energia. Por outro lado, a cada vez mais intensa radiação gama começa a dissociar os núcleos atómicos de ferro transformando-os em núcleos de hélio. Ambos estes processos retiram do núcleo uma parte substancial da energia livre aumentando ainda mais o seu desequilíbrio energético e acelerando o colapso. Tudo isto se passa numa fracção de segundo enquanto o resto da estrela continua a realizar a fusão nuclear de forma sustentada sem suspeitar do fim que se aproxima.

A falência energética do núcleo faz com que este se contraia agora violentamente, a uma velocidade que atinge cerca de 70 mil km/s (23% da velocidade da luz)! A contracção é interrompida, se o núcleo não for demasiado maciço, quando o material atinge a densidade de um núcleo atómico. Nestas condições, os neutrões previamente formados, e que constituem agora a maior parte do material no núcleo, exercem uma pressão degenerada (um efeito quântico que deriva do Princípio de Exclusão de Pauli) que impede que o material seja mais comprimido. Forma-se uma estrela de neutrões que liberta uma enorme quantidade de energia enquanto se estabiliza. Simultaneamente, a interrupção do colapso gera uma onda de choque que inicia a sua propagação para o exterior, actuando sobre as camadas adjacentes ao núcleo. Nesta fase, o núcleo atinge temperaturas na ordem dos 100 mil milhões de Kelvin.


(Simulação do fluxo caótico de material a altas temperaturas em torno da estrela de neutrões recém formada, não visível na imagem. Crédito: Don Lamb, ACS/Alliance FLASH Center, University of Chicago.)

A energia libertada pela formação da estrela de neutrões é transformada numa quantidade inimaginável de neutrinos e anti-neutrinos que atravessam a estrela com facilidade transportando a maior parte da energia libertada no colapso gravitacional. No entanto, no seu percurso para o exterior, transferem uma pequena fracção da sua energia para a onda de choque gerada pela interrupção do colapso, e que mostrava sinais de esmorecer (perceber como é feita esta transferência é um dos grandes pontos em aberto neste cenário). A onda de choque assim energizada irrompe pela estrela e irá eventualmente destruí-la. O movimento da onda de choque comprime fortemente o material nas camadas exteriores, elevando a sua temperatura. Nestas condições dá-se uma rápida captura de neutrões por parte do núcleos atómicos presentes que, combinada com o decaimento radioactivo, permite a produção de elementos com número atómico superior ao ferro e níquel. Estas reacções têm o nome genérico de “processo R”. O ouro no seu anel, pulseira ou colar foi formado durante esta fase numa supernova.


(Simulação da onda de choque de uma supernova de colapso do núcleo. A onda de choque progride através da estrela, comprimindo o plasma e elevando a temperatura e densidade, possibilitando a formação de elementos pesados através da captura sucessiva de neutrões pelos núcleos atómicos. A propagação da onda é turbulenta e gera naturalmente estruturas filamentosas. Crédito: Max Planck Institute for Astrophysics.)

De notar que os neutrinos produzidos através da captura de electrões pelos protões e, depois, durante a libertação da energia pela recém formada estrela de neutrões, transportam cerca de 99% da energia total de uma supernova de colapso gravitacional. A radiação que observamos de uma supernova e a energia cinética do material ejectado correspondem no total a cerca de 1% da energia libertada no colapso. Dependendo das características da estrela progenitora, a onda de choque só atinge a superfície da mesma algumas horas depois dos neutrinos formados no colapso terem por ela passado. Quando a onda de choque finalmente atinge a superfície, a supernova é visível pela primeira vez como um intenso “flash” de luz ultravioleta, seguido do aumento de brilho no visível a que estamos habituados.


(A supernova 1987A atingiu a magnitude 3 no seu pico de brilho e foi perfeitamente visível a olho nú. Crédito: Akira Fujii e David Malin.)

Este cenário para o colapso gravitacional de uma estrela, previsto pelos teóricos há décadas, foi confirmado de forma espectacular naquela que foi, sem dúvida, uma das observações mais importantes da ciência no século XX. No dia 23 de Fevereiro de 1987, às 7 horas e 35 minutos, tempo universal, três detectores de neutrinos: o Kamiokande II no Japão, o IMB nos Estados Unidos e o Baksan na ex-União Soviética – detectaram no total 24 anti-neutrinos durante um intervalo ligeiramente inferior a 13 segundos. Tratava-se de um fluxo anormal de anti-neutrinos muito energéticos, num curto intervalo de tempo e originários da mesma posição no céu. Eram provenientes do colapso do núcleo de uma supernova, mas na altura ninguém fez essa associação. No Chile e na Austrália, 3 horas depois, a luz da supernova foi detectada em placas fotográficas que só viriam a ser examinadas posteriormente. A descoberta oficial da supernova 1987A deu-se já no dia 24 de Fevereiro por Ian Shelton e Oscar Duhalde, a partir do Observatório de Las Campanas, no Chile, e por Albert Jones, na Nova Zelândia. Os neutrinos tinham viajado até nós directamente do núcleo da supergigante azul Sanduleak -69° 202a, na Grande Nuvem de Magalhães, no momento em que esta sofria o colapso gravitacional. Foi a primeira, e até agora a única, observação directa dos primeiros segundos do inferno de uma supernova.


(O eco de luz da supernova 1987A. Camadas concêntricas de gás que rodeavam a estrela progenitora, provavelmente por ela expelidas numa fase anterior da sua evolução, são iluminadas pelo “flash” de luz da supernova à medida que este se propaga pelo espaço. Crédito: David Malin.)

6 comentários

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  1. Olá Luis Lopes.
    Agradeço a disponibilidade.
    Eu só perguntei a distancia, porque imaginei a possibilidade de que a radiação ultra violeta detectada na terra tivesse sido no momento do evento, raios cósmicos provenientes da “aniquilação” dos pares electrão-positrão que se originaram do possivel decay de alguns dos neutrinos ejectados (Provável ficção cientifica). A tal distancia seria possivel que o comprimento de onda dos raios cósmicos “esticasse” até aos valores dos ultra violetas, quando atingissem a terra, devido à mutação-expansão do espaço-tempo ao longo dos 23 mega anos-luz ?
    É uma ideia rebuscada, que para funcionar teria que haver neutrinos a “decair” em pares simétricos, antes de se dar origem a outro “Fenómeno do Entroncamento”!
    Energy Rules!

  2. Olá Paulo,

    deixa lá essa coisa do “Professor” p.f. 😉
    A libertação de radiação de alta energia quando a onda de choque atinge a superfície foi prevista teoricamente e pode ter sido detectada (em raios X) para uma outra supernova na galáxia NGC 2770, completamente por acaso. Vê aqui:

    http://apod.nasa.gov/apod/ap080118.html

    M51 está a uma distância de 23 milhões de anos-luz (7.1 mega-parsecs).

  3. Bem interessante Professor Lopes.
    Temos fusão nuclear nas camadas externas e fissão nuclear nas camadas interiores, acabando a fissão por ganhar a corrida, neste caso!
    É curiosos o cálculo de 99% de energia do processo ser transportado por neutrinos. Esses neutrinos após sairem da estrela irão “repousar temporáriamente (decay)” como pares electrões e positrões mais outros “quantos” de energia que são libertados e de seguida esses pares de electrões e positrões ” aniquilam-se” dando origem a raios cósmicos, ou não? Poderá ser daí que provém parte da radiação ultra violeta?

    1. Olá Paulo,

      há fusão nuclear em **todas** as camadas. Durante o colapso do núcleo, no entanto, a temperatura atinge valores tão elevados que a radiação gama ambiente provoca a dissociação dos núcleos de ferro que entretanto tinham sido formados (por fusão dos núcleos de silício).

      Os neutrinos e anti-neutrinos formados no núcleo atravessam a estrela quase à velocidade da luz transportando os tais 99% da energia gerada no colapso que corresponde maioritariamente à energia libertada na formação da estrela de neutrões.

      A radiação ultravioleta mencionada no “post” deve-se ao aquecimento das camadas exteriores da estrela pela onda de choque que destrói a estrela.

        • Paulo on 27/06/2011 at 23:54

        Agradeço a atenção Professor Lopes!
        Fica uma de muitas dúvidas; a radiação ultra violeta mencionada é prevista teóricamente, ou foi detectada na Terra? Caso tenha sido detectada, a que distancia em Parsecs, está a M51?

  4. Incrível essa explicação. Obrigado

  1. […]  Esse modelo matemático pode ser utilizado para descrever fenômenos como a evolução de ‘ondas de deriva’ em plasma, ou de um tsunami em […]

  2. […] Para um post detalhado sobre esta supernova, temos este artigo do Luís Lopes aqui no […]

  3. […] “post” anterior descrevi o processo que leva à explosão de uma estrela maciça e à formação de uma supernova […]

  4. […] Foi publicado recentemente na astropt um artigo sobre supernovas e como estas […]

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