Estrelas Irrequietas


(Os trânsitos (padrões verticais regulares) do Júpiter Quente Corot-2b em frente da sua estrela hospedeira activa. Os trânsitos de um planeta do tamanho da Terra, cuja profundidade seria inferior a duas marcas na escala vertical (menos de 0.01), seriam bem mais difíceis de detectar com uma estrela tão irrequieta. Crédito: Missão CoRoT.)

Um estudo realizado por uma equipa de astrónomos liderada por Ron Gilliland, do Space Telescope Science Institute, analisou as características do ruído presente nas medições fotométricas obtidas com o telescópio Kepler. O objectivo era o de identificar a origem desse ruído. As conclusões são interessantes e têm implicações importantes para o cumprimento do objectivo principal da missão Kepler que é o de determinar a frequência de planetas semelhantes à Terra em órbita na zona habitável de estrelas de tipo solar.

Até à data, dos 1235 candidatos planetários descobertos pelo Kepler, apenas 68 têm um tamanho semelhante ao da Terra. Detectar planetas tão pequenos através de trânsitos exige uma precisão fotométrica notável só possível com um telescópio espacial. Por exemplo, o trânsito da Terra em frente ao Sol visto à distância produziria uma diminuição de brilho de apenas 85 ppm (partes por milhão), ou seja, menos de 0.01% ! O trânsito ocorreria apenas uma vez por ano e teria a duração de 10 horas. Apesar das medições serem tão exigentes, estudos realizados durante a concepção da missão apontavam para a descoberta de um número muito superior de planetas de tamanho semelhante à Terra.

Esta aparente escassez poderia ser explicada se alguma das componentes do telescópio Kepler estivesse a comprometer a precisão, introduzindo ruído nas medições. De facto, segundo Bill Borucki (NASA-Ames Research Center), o investigador principal da missão, desde o início que se tornou evidente que as medições fotométricas obtidas com o Kepler tinham uma precisão abaixo da esperada embora não fosse possível determinar a causa. Uma verificação completa dos instrumentos do telescópio Kepler revelou que tudo estava a funcionar como previsto. Em particular, o ruído introduzido pelas componentes electrónicas, nomeadamente os 42 CCDs que formam o “olho do Kepler”, é muito baixo. O sistema de estabilização e guiagem do telescópio, outra fonte potencial de ruído, está a funcionar com a precisão prevista, cerca de 10 vezes superior à do sistema de guiagem do telescópio Hubble.

A análise do ruído realizada por Gilliland e colegas permite pela primeira vez identificar a origem do problema: as estrelas ! Durante a concepção da missão, os cientistas partiram do pressuposto de que as estrelas semelhantes ao Sol que iriam ser observadas pelo Kepler teriam um comportamento fotométrico semelhante ao do Sol, com flutuações de 10 ppm numa escala de algumas horas. Estas flutuações de brilho, com escalas que vão de alguns minutos até dias, são provocadas pela actividade intrínseca das estrelas, nomeadamente: oscilações sismícas, convecção superficial e manchas estelares. O que Gilliland e colegas observaram para uma grande amostra de estrelas de tipo solar e de magnitude aparente 12 foi algo diferente. Aparentemente a maioria das estrelas observadas pelo Kepler têm flutuações fotométricas, ou seja um ruído de fundo, na ordem dos 20 ppm, o dobro da solar. Nas palavras de Bill Borucki, “They’re much more variable than the Sun […] It was a big surprise to us.”.


(Curvas de luz do Kepler para estrelas com diferentes variabilidades fotométricas. De cima para baixo: uma estrela calma – 5.7 ppm; uma estrela intermédia – 20.4 ppm, e; uma estrela irrequieta – 35.0 ppm. Crédito: Gilliland et al.)

Este nível de ruído de fundo mais elevado torna bastante mais complicada a detecção de trânsitos de planetas semelhantes à Terra que, lembro, têm uma profundidade de 85 ppm. Com este nível de ruído, planetas tão pequenos são detectados mais facilmente se orbitarem mais próximo da estrela hospedeira do que a Terra do Sol. Desta forma, em alguns meses ocorrem vários trânsitos e a persistência desse sinal periódico facilita a detecção. A maioria dos planetas de tamanho semelhante à Terra detectados até agora pelo Kepler estão precisamente nestas condições. No entanto, estes planetas estarão demasiado próximos da sua estrela hospedeira para se encontrarem na sua zona habitável e portanto nunca serão verdadeiramente análogos à Terra.


(Histograma mostrando o número de estrelas de magnitude 12 no campo de observação do Kepler (eixo vertical) versus o seu ruído fotométrico (eixo horizontal). O Sol está representado pela cruz centrada aproximadamente nos 10 ppm e está claramente abaixo do pico do histograma nos 20 ppm. Crédito: Gilliland et al.)

Esta descoberta tem implicações no cumprimento dos objectivos da missão. Por exemplo, se as estrelas tivessem um ruído fotométrico semelhante aos 10 ppm do Sol, seria possível detectar um planeta de tamanho semelhante ao da Terra com um período orbital de 10 dias em menos de 6 meses e um com um período orbital de 300 dias em menos de 4 anos. Para uma estrela com 20 ppm de ruído fotométrico, como a maioria das observadas pelo Kepler segundo este estudo, seriam necessários 7 a 8 anos de medições para detectar planetas do tamanho da Terra na zona habitável. Isto implica que, para cumprir os seus objectivos, a missão Kepler terá de ser estendida para pelo menos o dobro da sua duração planeada de 3.5 anos. Uma tal extensão seria normalmente pacífica dados os resultados da missão até ao momento e a performance excelente do telescópio. No entanto, o clima económico conturbado que se vive em particular nos Estados Unidos tem colocado o orçamento da NASA sob particular “stress” como se pode ver com a ameaça bem real de cancelamento definitivo de projectos como o James Webb Space Telescope. Esperemos que reine o bom senso no momento de tomar decisões.

Se quiserem ver as fontes, aqui está o artigo original e aqui a notícia no sítio da Sky & Telescope.

2 comentários

    • duarte josé seabra on 31/07/2011 at 04:52
    • Responder

    Caro Luís Lopes: A propósito destas instabilidades estelares ,detectadas agora por essa equipa,desejava saber se a existência de tal variabilidade poderá alterar a zona habitável da “heliosfera”de uma dada estrela;também gostaria de saber se têem sido encontrados planetas nos vários tipos de estrelas variáveis,incluindo p.ex.as Cefeidas .

    1. Olá Duarte,

      “zona habitável” é um conceito que funciona apenas como uma referencia indicando a gama de distancias à estrela em que poderá existir água no estado líquido. No que diz respeito às condições para a o desenvolvimento de vida é uma definição baseada na nossa experiência terrestre. Como estamos agora a aprender a vida parece bastante mais versátil e poderá existir em ambiente fora da chamada “zona habitável”, e.g. no Sistema Solar em Europa ou Encelado. Por outras palavras, não é para levar demasiado à letra. A actividade estelar poderá certamente alterar as condições para a formação de vida.

      Relativamente às cefeidas e outras estrelas variáveis, o Kepler tem focado a atenção em estrelas do tipo solar, tipos espectrais F, G, K na sequência principal. Não conheço até à data descobertas noutro tipo de estrelas.

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