O Planetário Hayden – cujo atual diretor é o astrónomo Neil deGrasse Tyson – pediu ao público em geral que escrevesse cartas reservando lugar para uma primeira viagem ao Espaço.
Estava-se em 1950. O pedido fazia parte de uma campanha para promover uma exposição chamada «Conquista do Espaço», organizada pelo planetário, e originou milhares de respostas.
Uma das cartas estava assinada por um homem chamado Arthur:
“Meus senhores, gostaria de apresentar o meu nome para um pedido de uma viagem espacial a Vénus. Sempre fui um interessado neste planeta, e queria descobrir por mim próprio se existem lá dinossauros. Animais antigos sempre foram uma fonte de constante interesse para mim e, se a teoria estiver correta, ficaria encantado por ver um tiranossauro ou um brontossauro ‘ao vivo’.”
Sendo um interessado no planeta, Arthur devia já ter tomado conhecimento de muitas teorias sobre o misterioso Vénus. A visão de um planeta tropical não provinha apenas da imaginação de muitos ilustradores e escritores de ficção científica, mas de extrapolações desenfreadas de alguns cientistas.
E assim, durante muitos anos – antes das missões soviéticas Venera, no final da década de 60 – imaginámo-lo como um planeta quente e hospitaleiro, fervilhante de vida, uma estância de férias do Sistema Solar à espera de ser explorado por empreendedores terrestres.
Não parecia haver nada que pudesse contrariar a visão de Vénus como um irmão tropical da Terra: desde que Galileu apontou o seu telescópio para o planeta, em 1609, até à reveladora descida da sonda Venera 7, mais de 300 anos depois, a luz visível mostrava-nos apenas um disco brilhante sem nenhuma característica ou detalhe em especial. Um planeta coberto de nuvens, intrigante e prometedor, mas tão desconhecido que nem sequer sabíamos dizer qual a composição dessas nuvens.
Como nunca conseguimos ver nada em Vénus, desatámos a especular. Em «Other Worlds Than Ours», um livro do astrónomo inglês Richard A. Proctor, publicado em 1894, era defendida a ideia de Vénus como uma moradia de criaturas muito avançadas na escala da criação:
“Dada a maior proximidade do Sol, uma grande parte da sua superfície poderá ser inabitável por seres como os que existem no nosso planeta. Nas regiões equatoriais, o calor deverá ser quase insuportável. Nas regiões temperadas e subárticas, contudo, o clima deve ser adequado às nossas necessidades. Não consigo descortinar uma razão para negar que em tais regiões Vénus é a morada de criaturas tão avançadas na escala da criação como qualquer outra na Terra.”
Pântanos, sem dúvida
No livro «The Destinies of Stars», publicado em 1918, o químico sueco e prémio Nobel Svante Arrhenius, conhecido pelas suas investigações com eletrólitos e por ser o primeiro a explicar, com detalhe científico, a teoria da panspermia cósmica, não duvidava de que «tudo em Vénus está encharcado»:
“Uma grande parte da sua superfície está, sem dúvida, coberta de pântanos semelhantes aos que na Terra deram origem aos depósitos de carvão. Condições climáticas constantemente uniformes existentes em toda a parte resultam na ausência total de adaptação a mudanças nas condições exteriores, pelo que apenas formas de vida mais básicas devem estar representadas – a maioria pertencente ao reino vegetal. E os organismos são quase do mesmo tipo em todo o planeta.”
A visão de Vénus como um mundo pantanoso, carbonífero, provém sobretudo das ideias de Svante Arrhenius e permaneceu na imaginação popular durante muitos anos, mesmo depois de outras investigações indicarem que a realidade podia ser radicalmente diferente.
No princípio da década de 1920, dois anos após a publicação do livro de Arrhenius, uma análise espectroscópica à composição química da atmosfera de Vénus não detetou vapor de água nas nuvens, como se esperava, mas enormes quantidades de dióxido de carbono. Esta análise deitava por terra a teoria de um planeta pantanoso e luxuriante, sugerindo um cenário menos turístico: um planeta seco e desértico.
A presença de tantas nuvens, continuava a especular-se, demonstrava que não só possuía atmosfera como devia estar encharcado em água. E ficava só um bocadinho mais perto do Sol que a Terra (42 milhões de quilómetros), pelo que devia ser mais quente — uns 30 graus num dia mais ameno, talvez?
Queríamos mesmo que Vénus fosse o nosso planeta de Verão.
35 anos depois das primeiras análises espectroscópicas, continuávamos sem conseguir ver um milímetro da superfície do planeta, apenas aquelas nuvens, eternas para uma vida humana como a Grande Mancha Vermelha de Júpiter ou as crateras lunares. Dois astrónomos americanos, Fred Whipple e Donald Menzel, sugeriram que a atmosfera venusiana era composta por água congelada – cristais de gelo, sobretudo – não detetável pela espectroscopia.
Whipple e Menzel imaginaram um planeta coberto por um oceano de água gaseificada; outros especularam ainda mais, visualizando Vénus como um mundo oceânico habitado por criaturas marinhas semelhantes às que tinham existido há 500 milhões de anos na Terra, durante o Período Câmbrico.
Um cósmico puxão de orelhas
As especulações sobre a natureza de Vénus e as condições à superfície foram recordadas no episódio 4 da famosa série «Cosmos» e forneceram a Carl Sagan um excelente pretexto para dar uma reprimenda a alguns colegas e uma lição sobre método científico aos seguidores de teorias como a dos Antigos Astronautas, sustentadas na mesma falácia lógica de concluir o que lhes interessa a partir do que não sabem.
«Absolute Pure Science Badassery», escreveu um utilizador no YouTube sobre o monólogo:
“A ausência de qualquer coisa que pudéssemos ver em Vénus levou alguns cientistas (e outros) a concluir que a superfície era um pântano.
O argumento — se é que podemos dignificá-lo como tal — era qualquer coisa como isto:
‘Não consigo ver nada na superfície de Vénus’.
‘Porquê?’
‘Porque está coberto por uma densa camada de nuvens’.
‘De que são feitas as nuvens?’
‘De água, claro; logo, Vénus deve ter muita água e a superfície deve estar encharcada’.
‘Se a superfície está encharcada, então deve ter um pântano’.
‘Se tem um pântano, deve ter fetos.’
‘Se tem fetos, talvez até tenha dinossauros’.
Observação: não conseguimos ver nada. Conclusão: dinossauros.”
O primeiro retrato dos Venusianos
Verdade seja dita, especular sobre vida em outros planetas, incluindo Vénus, é um exercício muito antigo. O estimável Bernard le Bovier de Fontenelle (1657 – 1757), escritor e ensaísta francês cujo apelido haveria de ser usado para batizar uma cratera na Lua, contemporâneo de Voltaire e tão estimado como aquele, não só estava certo de que Vénus albergava seres vivos como sabia muito bem descrevê-los:
“Posso dizer daqui como são os habitantes de Vénus: são parecidos com os mouros de Granada, negros de baixa estatura, a pele queimada pelo Sol; cheios de fogo e inteligência, sempre enamorados, a escrever versos; fãs de música; organizam festivais, danças e torneios todos os dias.”
Os venusianos eram portanto espiritualmente parecidos com o próprio Fontenelle, um homem culto e inteligente que viveu uma vida boa, festiva e muito, muito longa. Aos 92 anos, ao ser apresentado a Anne-Catherine de Ligniville, uma beldade dona de um salão literário em Paris, afirmou: «Ah madame, se eu ao menos ainda tivesse oitenta anos!»
4 comentários
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Sempre gostei da capa do Livro “Operação Vénus” o nº73 da Colecção Argonauta publicado em 1963…
http://coleccaoargonauta.blogspot.pt/2011/09/n-73-operacao-venus.html
Penso que o Mestre Lima de Freitas, o autor desse desenho, poderá ter sido influenciado pelos desenhos do Tintim na Lua, de 1954 pois o “venus rover” desta capa lembra vagamente o veículo usado neste album: http://pt.wikipedia.org/wiki/On_a_march%C3%A9_sur_la_Lune
Excelente artigo Marco. 😀
Não à toa que a imaginação do Fontenelle fez com que “Diálogos sobre a Pluralidade dos Mundos” tornasse uma das obras mais lidas do Pré-Iluminismo.
Abraços.
Ótimo post! 🙂
Excelente texto 😉
Mas, lá está, imaginamos sempre que os extraterrestres têm que ser como nós… e vivem em sítios parecidos com os nossos 😉
[…] encolheu, Rato Mickey, sorriso, meteorito, gelo, mapa, vídeo). Vénus (informações, mistérios, história, viver, pizza). Júpiter (sistema, núcleo a derreter, mancha a diminuir, explosão, 65 + 2 luas, […]
[…] irmão” (com uma composição, gravidade e tamanho similares à Terra), que durante séculos despertou a imaginação de muitos, não era o paraíso tropical que a ficção científica pretendia, com vegetação luxuriante, […]