A Morte dos Especialistas

No filme IdiocracyIdiotas, vemos a sociedade humana no ano 2.500. A sociedade é decadente e povoada por imbecis. Os especialistas não existem. O povo quer é “circo”, como antigamente no Coliseu de Roma. Não existe qualquer conhecimento dos assuntos. Vive-se na ignorância. Quando vamos ao médico porque temos uma ferida aberta, o médico diz-nos para metermos um prego enferrujado que passa logo. Quando vamos ao juiz, ele fala-nos de canalização. Se precisamos ser operados, o cirurgião é livreiro. Chegamos a esse ponto porque os idiotas multiplicam-se mais do que os especialistas nos assuntos, porque a opinião ignorante é melhor vista que o conhecimento dos assuntos.

Podemos pensar que esta é uma distopia que nunca se concretizará.
No entanto, olhando para a sociedade actual, o que vemos? Chama-se Era da Informação, mas a internet é um antro de desinformação. A televisão passa o tempo com programas não culturais. A comunicação social farta-se de fazer copy-paste de notícias científicas, sem sentido crítico. As redes sociais fartam-se de disseminar desinformação (são as notícias com mais “partilhas”). As pessoas deixam-se enganar e gastam muito dinheiro em falsas videntes, garrafas de água que supostamente curam tudo, e terapias com “energias desconhecidas”. Os comentadores televisivos fazem-se passar por especialistas, enganando as pessoas, fazendo-as pensar que a sua opinião denota conhecimento (a televisão privilegia a lábia, os bitaites, em detrimento do conhecimento). Os participantes de Big Brothers e Casa dos Segredos ganham habilitações mágicas e formações profissionais imediatas em música e artes, tornando-se instantaneamente especialistas musicais (e cantores) e atores profissionais. Todos os anos existem dezenas de “profecias de fim-do-mundo”, e milhões de pessoas continuam a “cair” nelas. O chamado quarto poder, entre telenovelas e programas da manhã e da tarde onde são promovidas várias vigarices, um dia até poderá ter segmentos de medicina (por exemplo, sobre as práticas no Hospital Amadora-Sintra), em que o convidado/comentador de medicina é um trolha do Porto, sem formação académica em medicina, sem formação profissional em medicina, mas que lê umas coisas na revista Maria e que lhe permite mandar uns soundbytes na televisão defendendo que o sangue é verde. Na televisão e jornais, pululam as previsões astrológicas baseadas em mentalidades de há 3.000 anos, contra o conhecimento que o Universo nos dá. Na internet e na vida real, vemos pessoas a utilizarem erradamente expressões científicas (como a Quântica), em proveito pessoal, de forma a aproveitarem-se do desespero das pessoas. A vigarice compensa…

A irresponsabilidade, a incompetência, a ignorância, são premiadas e, dessa forma, alastram-se pela sociedade.
A literacia funcional das pessoas decresce.

A hipocrisia de se utilizar conhecimento científico enquanto se nega a sua existência é vista como crítica saudável. Cuspir na cara dos especialistas é abençoado por alguns.
O mérito pessoal é desvalorizado. A opinião é colocada acima do conhecimento. As cunhas e favorecimentos pessoais sobrepõem-se à ausência de valor pessoal. A promiscuidade vence a integridade. A falta de bom senso ganha ao profissionalismo. A falta de ética supera o carácter pessoal e profissional. Goza-se com o conhecimento dos especialistas.

O prémio social de tudo isto é caminharmos para uma sociedade similar à do filme Idiotas, em que a ignorância é raínha. Os imbecis “matam” os especialistas.

Health-Specialists-Home

Tom Nichols é um professor na Universidade da Marinha Americana e um especialista em estratégia militar. Baseado no conhecimento dele sobre assuntos estratégicos e suas implicações sociais, ele tem exactamente a mesma opinião sobre este assunto social.
Ele escreveu este artigo, que vos convido a ler, intitulado A Morte dos Especialistas ou A Morte da função social de sermos especialistas em algo.

Algumas frases que me parecem relevantes (a tradução é muito livre):

“Eu sou um especialista numa área particular do conhecimento humano (…) e espero que a minha opinião informada sobre esse assunto seja vista como superior às opiniões desinformadas da maioria das pessoas.”

“Isto não devia ser controverso. No entanto, há quem pense que isto é um apelo à autoridade ou elitismo.”

“Democracia é um sistema de governo, não um estado de igualdade social. Quer dizer que temos direitos iguais. No entanto, não quer dizer que temos talentos iguais, habilitações iguais, ou conhecimento igual. E certamente não quer dizer que a opinião de uma pessoa está ao mesmo nível que a opinião de todas as outras.”

“Eu temo que estamos a presenciar a morte dos especialistas, através de uma sociedade que dá mais valor ao Google e à wikipedia, e que derruba as paredes que separam os professores dos alunos, os profissionais dos leigos, os que têm conhecimento dos que mandam bitaites – por outras palavras, a sociedade está a derrubar os muros que separam aqueles que conseguiram alcançar o conhecimento numa determinada área e aqueles que não têm qualquer mérito, habilitações ou formação.”

“Os médicos, os advogados, os engenheiros, e outros especialistas em assuntos diferentes, não morreram. No entanto, temo que tenha morrido qualquer valor dado a esse conhecimento dos especialistas.”

“Os especialistas não estão sempre certos e por vezes cometem erros. No entanto, comparando com os não-especialistas, os especialistas acertam muitas mais vezes (comparemos médicos com os pseudo-cientistas que dão conselhos médicos).”

“É absurdo colocar os especialistas ao mesmo nível dos leigos, como se as opiniões tivessem o mesmo valor. Pior do que ser absurdo, é que é perigoso. É uma rejeição do conhecimento e das formas de adquirirmos conhecimento. É a rejeição da ciência e da racionalidade.”

“Sem especialistas, qualquer pessoa pode se considerar especialista em tudo e mais alguma coisa. Sem especialistas médicos, as doenças vão voltar em força como há séculos atrás.”

“A opinião deve-se basear na formação e competência. No entanto, o que se vê muito é as pessoas discutirem assuntos baseadas na sua ignorância sobre esses mesmos assuntos.”

“Os assuntos, os artigos, os livros, não devem ser revistos por toda a gente, mas devem ter o chamado peer-review, revisão por pares, revisão por quem tem o conhecimento para avaliar a informação transmitida.”

“No século passado, as pessoas entendiam as diferenças entre especialistas e leigos. (…) Eu gosto da democratização do conhecimento e de uma maior participação do público nas discussões. No entanto, essas discussões sofrem do mal das pessoas pensarem que todas as opiniões têm o mesmo peso. (…) Isto pode levar a que os especialistas voltem a falar só entre si.”

“A globalização do conhecimento levou ao declínio da avaliação do conhecimento. Antes para se publicar um artigo num jornal, precisava se ter conhecimento, formação e habilitações necessárias para isso. (…) Agora, anonimamente, qualquer pessoa pode dizer o que quiser na secção de comentários. Mesmo dando uma opinião totalmente errada, não pode ser chamado à responsabilidade.”

“Hoje em dia, ter o bom senso de defender que os professores sabem mais que os alunos e por isso eles é que mandam, faria muita gente protestar.”

“Os ignorantes, os burros, são actualmente muito agressivos e confiantes nas suas capacidades. E quando encontram especialistas nos assuntos sobre os quais eles opinam erradamente, criticam o conhecimento dos especialistas (isto vê-se bastante nas redes sociais).”

“Tudo isto provém da mesma doença: uma estúpida reinterpretação do que é uma democracia, promovendo a ideia de que todas as opiniões são iguais e ninguém deve ser avaliado como errado quando não sabe o que diz.”

“A ideia de que a auto-estima pessoal (como ter-se opinião) é um valor humano superior à formação e competência profissional, está-nos a deixar cada vez mais ignorantes.”

“Quem rejeita o conhecimento dos especialistas não está a pensar de forma independente. Está sim a rejeitar tudo aquilo que põe em causa a sua própria opinião desinformada; está a rejeitar aquilo que o deixa inseguro.”

“Enquanto os cidadãos esquecerem as suas obrigações básicas de aprendizagem e continuarem teimosamente prisioneiros dos seus frágeis egos pessoais, os especialistas tenderão a sentir-se fora da sociedade.”

“Os especialistas são necessários numa sociedade. A sociedade não pode ser conduzida por argumentos estúpidos e nada produtivos.”

“Os verdadeiros especialistas são aqueles com formação académica e formação/experiência profissional num determinado assunto.”

“Caso a pessoa não tenha formação académica nem experiência profissional, então deve reconsiderar o que anda a fazer. Certamente que andará a prejudicar a sociedade.”

“A Universidade do Google não conta para uma pessoa se sentir especialista num assunto.”

“As opiniões das pessoas são importantes. No entanto, as análises dos leigos não têm qualquer peso comparando com as análises dos especialistas.”

9 comentários

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    • Tiago Carneiro on 18/02/2014 at 01:52
    • Responder

    Pensei exatamente nessas coisas quando assisti o Idiocracy. É um filme até que inteligente! De qualquer modo, acho pouco provável que os humanos cheguem a esse ponto, justamente pela necessidade de comodidade. Nós vamos querer especialistas para fazerem coisas boas pela sociedade.

    Concordo com o que falaram aí em cima sobre as pessoas serem ignorantes por natureza, mas acho que temos boa chance de melhorar a situação, visto que países mais desenvolvidos possuem mais especialistas trabalhando. Acredito que nós humanos vamos querer nos desenvolver mais para termos uma sociedade melhor.

    Quanto a internet…sim, a maioria das coisas aqui é besteira, como todo mundo disse aí em cima. Mas ela tem um ótimo lado: ela pode enriquecer a especialização. Muitos trabalhos, muitas informações importantes e confiáveis (este site por exemplo) também fazem parte da internet. Aprendi praticamente tudo que sei de inglês na internet, e com isso tenho certificado de Cambridge e virei professor. Eu também usava muito o computador para pesquisas do meu curso técnico. Então acho que se a sociedade passar a dar mais importância a fontes confiáveis e souber usar elas, a tecnologia será benéfica. Ou seja, para mim, o problema é a cultura e não a internet em si.

    Tenho esperanças de que as pessoas aprendam naturalmente a distinguir mentiras das verdades na internet. Ainda estamos no começo dessa nova era, e é provável que essa ignorância toda só tenha se manifestado mais do que quando não tínhamos tanta tecnologia (como disse um comentário acima).

    Nossos cérebros se desenvolveram para solucionar problemas, então acho que com o tempo a coisa melhore! Ainda mais considerando que há 100 anos as pessoas tinham praticamente o mesmo conhecimento de um retardado dos dias de hoje. (por incrível que pareça, isso é verdade!)

    1. 100% de acordo 😉

  1. Não acredito muito na “morte dos especialistas” pois os imbecis vão continuar querendo e precisando de tecnologia. Na era das cavernas, foi um especialista que “inventou o fogo”, o resto da tribo de imbecis apenas usufruiu dessa descoberta. E assim vem sendo desde então e será futuro afora. O que vemos hoje é apenas o afloramento de imbecis que sempre existiram e que finalmente conseguiram aprender a manipular equipamentos eletrônicos e ganhar voz. Eletrônicos evidentemente desenvolvidos por especialistas.
    Eu tenho uma “teoria” que isso é definido geneticamente, há uma proporção mais ou menos constante no número de “nerds” (futuros especialistas) dentro da população. Sempre serão poucos, mas o suficiente para manter o progresso das ciências e tecnologias (as quais os imbecis necessitam).
    Ou por outro enfoque, nerds não geram nerds, imbecis não geram imbecis. Nerds e imbecis geram pessoas que se distribuem “naturalmente” numa proporção constante de nerds e imbecis.

  2. numa discussão no FaceBook que a rede social estaria tornando as pessoas imbecis.

    Caro Xevious, isso não é nenhuma novidade. Desconfie de toda e qualquer coisa que que as massas sociais, por uma questão de moda, novidade, gostam, como esse tal rede social, o Facebook. O que, diante de tal contexto, é benéfico tão somente para determinado ramo de negócios e publicidade de modo geral.

    Abraços.

  3. Outro dia falaram numa discussão no FaceBook que a rede social estaria tornando as pessoas imbecis.

    Eu discordei, falei que as pessoas já são imbecis por natureza, apenas entrando nas redes sociais elas demonstram suas imbecilidades.

    O caso é que ser “imbecil” é mais fácil..
    Não é preciso estudo e o mundo dos imbecis já esta pronto, esta a mão, próximo, a um clique de um controle de TV.
    É o mundo dos preguiçosos mentais.

    Mas enfim, quem quer cansar sua mente né?

    Eu era daqueles que quando aprendia algo novo, tratava de ampliar meu conhecimento o máximo possível sobre este novo assunto.
    Chegava a criar fórmulas e ficava me divertindo tentando resolve-las.

    Mas a nossa civilização é impulsionada pela necessidade do conforto.
    Por isto inventamos sofás, fogões, carros etc

    Clara apartir da década de 90 surgiu a “geração saúde” o pessoal que gosta de malhar, fazer esportes radicais, não é nada chegado a preguiça.

    Mas aqui no Brasil a futilidade da lucro e muito.
    Já houveram vários casos de músicos que queriam fazer uma música inteligente, mas não alcançaram sucesso então passaram a fazer Funck e Pagode e viraram sucesso.

    Estou tentando lançar uma nova tendência musical, chamada de “Musica Consciente” onde não importaria o estilo musical, mas deve-se sempre procurar fazer letras inteligentes.

    Mas o pessoal quer é se divertir e não “pensar”..

    Eu vi o Idiocracia, é um ótimo filme além de muito divertido.
    Duvido que o mundo se torne assim como fala ali.

    Mas é bem possível que alguns países sejam jogados as traças em termos de geração de tecnologia e outros a outros seja destinado a criação de tecnologia e natural domínio do mundo.

    Aqui no Brasil os empresários tendem a duvidar de qualquer iniciativa de inovação nacional.
    Eles querem apostar naquilo que “já” ta dando certo no exterior.

    Então se os idealizadores do google tivessem nascido no Brasil, ele nunca existiria, por exemplo..

    Essa tendência, aliada ao coorporativismo e a corrupção, desfaz a maioria das aspirações para desenvolver tecnologias nacionais..

    E a falha esta na fonte, na educação básica, onde não se ensina a pensar, mas a decorar..
    Ou seja, pegar coisas prontas que “outros pensaram” e adotar como soluções..

  4. o que vale é que é só para 2500 ;D

  5. Os portuenses em geral, e os trolhas em particular, são extremamente conhecedores de qualquer assunto.
    Só não somos convidados mais vezes para comentar em TV porque o pessoal de Lisboa não gosta do nosso sotaque!

    1. LOLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLL 😀

    • BetinhoFloripa on 31/01/2014 at 16:33
    • Responder

    “Invejo a burrice, porque é eterna”
    Nelson Rodrigues

  1. […] Mais uma vez se vê que a tirania religiosa esteve sempre oposta ao conhecimento. Ainda hoje se vêem muitos exemplos desta perseguição a quem detém o conhecimento. […]

  2. […] profissional e que deixa muito a desejar em termos de comunicação. O objetivo parece ser cuspir nos especialistas portugueses, tirar o mérito aos cientistas portugueses, e, em última análise, contribuir para uma sociedade […]

  3. […] (arte de ensinar). Literacia. Bananas. Visão da Ciência. Ursos de Peluche. Burro e Feliz. Morte dos Especialistas. Correlação e Causalidade. Ilusões Óticas. Navalha de Ockham. Falácias com Dragões. 24 […]

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