Ressonância Estocástica – Parte I

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Talvez para alguns o título seja uma completa incógnita. Sendo assim, irei começar por explanar cada um dos conceitos separadamente, para que mais tarde, quando explicar o fenómeno de Ressonância Estocástica, compreendam o porquê de assim ser denominado.

A ressonância é um fenómeno que talvez seja melhor conhecido na sua aplicação aos sons (daí o nome), ainda que seja um fenómeno geral que pode ocorrer em qualquer sistema onde haja efeitos ondulatórios – oscilações. No caso do som, certamente que é do vosso conhecimento que é possível partir copos de vidro com a voz (antigamente até havia uma publicidade que passava na televisão, em que mostrava uma cantora a fazê-lo; ver vídeo 1 abaixo). O fenómeno em causa é precisamente a ressonância: o copo tem uma dada frequência de oscilação, pelo que se for submetido a uma frequência mecânica de igual magnitude (a dificuldade está em conseguir identificar exactamente essa frequência e reproduzi-la por tempo suficiente até quebrar o vidro), então o copo irá ganhar cada vez maior energia vibracional, sem se conseguir ver livre dela, pelo que a rigidez do vidro acabará por não ser suficientemente forte para suster a vibração, levando a que o copo se parta.

Vídeo 1: Jamie Vendera, cantor de rock, demonstra a sua habilidade num copo de vidro (vidro Schott Zwiesel, que é considerado do mais rígido que há).

O fenómeno de ressonância tem imensas aplicações, uma vez que existem imensos sistemas oscilantes. A principal característica usada deste fenómeno talvez não seja compreensível a partir do exemplo anterior, por isso vejam o vídeo 2 abaixo. Tal como é explicado no vídeo, ao produzir-se uma vibração num dos diapasões, a vibração propaga-se pelo ar (som), chega ao outro diapasão, pelo que se este tiver a mesma frequência de oscilação, irá também oscilar, se tiver outra, não o fará (a frequência natural de oscilação é neste caso definida pela distância entre as duas barras verticais). Assim, para recepção de sinal, o fenómeno de ressonância é de extrema importância: um rádio, por exemplo, consegue receber diferentes tipos de sinais (de diferentes estações), porque é capaz de receber diferentes frequências (neste caso de ondas electromagnéticas). Ajustar a frequência no rádio é similar ao ajustar da distância entre as barras verticais no diapasão. Já agora, a título de curiosidade, acrescento que “fm” significa “frequency modulation” e “am” significa “amplitude modulation”, ou seja, modulação de frequência e modulação de amplitude, o que está relacionado com a forma como a informação é codificada nas ondas electromagnéticas: no primeiro caso a informação é codificada em pequenas alterações “locais” à frequência do sinal (ou seja, ao período entre “picos”, ver o post O Mundo que Sentimos I), enquanto que no segundo caso a amplitude do sinal não é constante.

Vídeo 2: Demonstração do fenómeno de ressonância com dois diapasões.

Passo agora ao conceito de “estocástico”. O comportamento de um sistema pode ser de um de três tipos. Diz-se que um sistema é determinístico, se nos é possível prever com exactidão o seu comportamento futuro. Pode ser caótico, se uma ligeira alteração de condições “iniciais” conduzir a resultados completamente díspares no futuro (assim, se não se tiver acesso a dados exactos sobre o sistema, é impossível de prever o seu comportamento; ver o meu post sobre a Teoria do Caos). Por fim, pode antes ser estocástico, o que significa simplesmente que é impossível prever com exactidão a sua dinâmica. Este tipo de sistemas são descritos pela teoria das probabilidades, ou seja, o máximo que se pode prever sobre o futuro do sistema é que este tem uma dada probabilidade de assumir um dado estado. O exemplo clássico de um processo estocástico (probabilístico) é o do lançamento do dado, em que, obviamente, há 1/6 de probabilidade de calhar qualquer uma das faces, supondo que o dado não está viciado (ver Figura 1).

Figura 1: Em cálculo probabilístico é um clássico usar-se o exemplo do dado. Por exemplo: qual a probabilidade de sair duas vezes seguidas o número 1? Aplicando um dos teoremas mais básicos: se os acontecimentos são independentes, a probabilidade de acontecerem ambos é igual à multiplicação da probabilidade de cada um. Ou seja: 1/36.

O ruído é um processo estocástico (pode-se definir ruído como sendo flutuações aleatórias). Talvez o leitor associe “ruído” com barulho, mas neste caso o conceito é muito mais amplo que isso. Por exemplo, se seleccionarem na vossa televisão um canal não programado deverão ver a chamada “estática” – esta imagem é ruído (é impossível de prever se um pixel vai ficar preto, ou branco, num dado instante). Em engenharia, quando se constrói um dado instrumento pretende-se que este funcione sempre bem, ou seja, que funcione de modo determinístico (pelo menos durante o seu tempo de vida), sendo assim, uma das preocupações dos engenheiros é fazer com que não haja ruído no funcionamento do aparelho, ou seja, que não haja processos aleatórios que possam tornar o funcionamento meramente probabilístico, isto é, que umas vezes funcione, mas outras vezes não. Não pensem que isto é um problema do passado, que actualmente, com a tecnologia avançada que existe, é fácil isolar um sistema do ruído. Não, é um problema bastante actual e é a principal razão para que não tenham neste momento um computador quântico à vossa frente, por exemplo. Na verdade estes já existem em laboratório, onde de facto essa “tecnologia avançada” existe, mas o engenheiro não se pode apenas preocupar com o funcionar do instrumento, também é necessário que este seja comercializável, portanto a tecnologia envolvida tem que ter um preço competitivo. Neste caso, o ruído em causa provém do calor – a maioria dos sistemas quânticos não funcionam a elevadas temperaturas, como a ambiente, exigem por isso um arrefecimento substancial e muito dispendioso, para que possam funcionar. Se se estiverem a questionar de que modo é que o calor pode criar ruído, bastará pensarem que partículas aquecidas movem-se mais depressa (ou vibram mais), pelo que até de um modo intuitivo compreendem que será mais difícil de prever o comportamento de todas essas partículas sob certas circunstâncias, se não pudermos desprezar esse movimento. Por exemplo, um sistema eléctrico que é percorrido por correntes eléctricas, ou seja, electrões, funciona de modo “mais” determinístico a baixa temperatura, pois nesse caso os electrões só têm o movimento devido a diferenças de potencial, que originam as correntes, enquanto que se a temperatura for elevada, os electrões podem ter também outros movimentos, devido à agitação aleatória que a elevada temperatura produz. De facto, esta é uma propriedade geral dos materiais condutores: a condutividade (propriedade que mede a facilidade com que o material permite a passagem de correntes eléctricas, ou seja, é basicamente o inverso da resistência) diminui com o aumentar da temperatura.

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Figura 2: O ruído pode ser representado como algo deste género, ou seja, “sinal” com amplitude variável (pode ou não ter frequência variável). Coloquei as aspas em sinal, porque sinal é definido como algo que contém informação, mas o ruído não possui qualquer informação.

De modo perspicaz poderão perguntar: não há ruído na natureza? Há! De facto, a maioria dos fenómenos que podemos encontrar na natureza são de carácter estocástico! Aliás, colocando de parte abordagens teológicas ou antropocêntricas, tanto quanto se sabe, estamos aqui por acaso, a natureza é o resultado de uma sucessão de acontecimentos meramente prováveis, dentro de todos os possíveis. Isto leva-nos então a uma questão muito pertinente: como é possível toda a natureza funcionar tão bem, apesar de viver literalmente com ruído? De um ponto de vista filosófico é fácil responder: se não funcionasse, não estaríamos aqui para discutir a questão; ela sempre teve o ruído consigo, portanto só pôde evoluir para o que é hoje, “sabendo” viver com ele. Por outras palavras, o filósofo poderá argumentar que talvez nem faça sentido questionar o “apesar”, pois a natureza nunca funcionou noutras condições! Já o físico (apesar de compreender a visão filosófica 😛 ), quererá saber afinal como é que a natureza conseguiu e consegue viver com o ruído! Uma das respostas (ou talvez seja mesmo “a resposta) está no fenómeno que dá nome a este artigo: a ressonância estocástica.

Figura 3: (Escrito no quadro) “Depois um milagre ocorre.” (Legenda) “Penso que tens que ser mais explícito no segundo passo.”

Na próxima parte explicar-vos-ei em que consiste este fenómeno.

4 pings

  1. […] Quão grande? Como distingui-lo de outros erros estatísticos expectáveis? E se existir ruído? Que critérios estatísticos devemos usar para comparar dois estudos? De que forma é que devemos […]

  2. […] pela qual o comprimento da antena não deve ser qualquer, é para que haja uso do fenómeno de ressonância, ou seja, para maximizar a transferência de energia. Uma antena com um comprimento qualquer […]

  3. […] electrónico capaz de criar sinais eléctricos com uma frequência precisa usando para tal a ressonância de um cristal em vibração (um material piezoelectrónico). Estes são também usados, por […]

  4. […] disse na primeira parte, a natureza na sua evolução teve que aprender a “viver” com o ruído e, claro, de um […]

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