«Acreditar»: o Festival RTP da Quântica

O telejornal da RTP1 quer fazer-nos recuperar a nossa posição especial no Cosmos e criou uma rubrica chamada «Acreditar» onde a Ciência – em horário nobre e para uma audiência de milhares de pessoas – se encontra ausente. Nada de novo.

Nas três reportagens que vi, um curandeiro trata os males físicos dos pacientes medindo-lhes peças de roupa aos palmos; uma cartomante assegura que 90 por cento das suas previsões estão corretas; uma pseudo-terapeuta deteta doenças através da leitura da íris, usa plantinhas coreanas para tratar cancros e explica, sem pestanejar, como «a quântica pode determinar o fim do ser humano».

A Quântica do bandido

A rubrica chama-se «Acreditar», os factos são irrelevantes

Parece-me que esta pseudo-terapeuta terá levado demasiado a sério a experiência mental do Gato de Schrödinger.

As lágrimas que terá derramado em memória do pobre gato que a quântica matou tê-la-ão levado a jurar, daí em diante e para todo o sempre, fazer todos os possíveis para impedir que a diabólica quântica reclame mais uma vida inocente. É apenas uma boa samaritana que a ignorância científica transformou em vigarista.

Na verdade é irrelevante o que eu penso, porque a reportagem do telejornal da RTP1 – «a mais rigorosa seleção de notícias», segundo se anuncia – não se preocupa com pensamentos contraditórios nem entrevista físicos quânticos que expliquem aos cidadãos pagadores de impostos como aquela terapeuta é criminosamente ignorante.

Não é esse o objetivo da reportagem – a rubrica chama-se «Acreditar», lembrem-se, portanto qualquer elemento estranho à ausência de raciocínio esvaziaria o propósito editorial daquelas peças: valorizar a crença e a superstição, não o conhecimento; a fragilidade das pessoas, não o seu espírito crítico.

Também aqui não há nada de novo, pois os que se preocupam em evitar pesadelos medievais já viram este filme estupidificador demasiadas vezes.

Muitos de nós concordarão que a RTP há muito desistiu do Serviço Público de Televisão, mas ainda mantive a esperança de que poderia manter ao menos um Serviço Pudico de Televisão – ou seja, ter vergonha na cara.

Nada disto acontece porque – e lá estou outra vez a bater na tecla do óbvio – quem manda naquelas consciências é o dinheiro.

O dilema Suzy

Uma injustiça, não há direito, que vergonha, pensam que somos todos estúpidos ou quê

Com uma ingenuidade jupiteriana, fui à página do Facebook da RTP para ver se a transmissão diária em horário nobre de reportagens promovendo a ignorância e a crendice desencadeara protestos das pessoas.

Malta que se indigna aos milhares com a forma como a Pepsi sueca tratou o futebolista Cristiano Ronaldo, por exemplo, deveria ficar igualmente indignada com a maneira como o jornalismo da RTP trata a Ciência, não é?

Na verdade vi muita indignação, mas não por estes motivos.

Uma cantora pimba chamada Suzy ganhou o Festival RTP da Canção e os «portugueses» acham que devia ter sido outra a representar Portugal na Eurovisão – deve ter havido marosca, clamam em protesto, é uma injustiça, vociferam, não há direito, que vergonha, pensam que somos todos estúpidos ou quê, pois convoque-se já uma manifestação junto aos estúdios para que a RTP saiba como estamos indignados: «Portugal exige a desqualificação de Suzy da Eurovisão 2014. Respeitem a inteligência dos portugueses, senhores», alguém escreveu.

Observar centenas de pessoas reagindo aos resultados de um festival irrelevante de canções medíocres com a intensidade com que eu reagi aos crimes da RTP contra o pensamento crítico é excelente para colocar as minhas indignações em perspetiva e fazer-me sonhar em emigrar para Marte – de onde, de resto, nunca deveria ter saído.

A culpa é da Natureza

A Terra é plana e há seis mil anos tomávamos o pequeno-almoço com os dinossauros

A RTP não é a primeira a revoltar-se com a Natureza nem será a última.

A Natureza não se compadece com a nossa vaidade geocêntrica e trata todos da mesma forma: se um ser humano e uma aranha caírem de uma grande altitude, a gravidade atua sobre ambos os corpos.

A rubrica «Acreditar» está ao serviço de quem considera a gravidade um escândalo tão grave como uma desqualificação para a Eurovisão: como somos tão especiais, a Natureza devia ter criado uma exceção e suspendido as leis da gravidade só para nós, deixando a aranha nojenta esborrachar-se no chão.

A RTP defende que os furacões deviam fazer uma vénia sempre que se aproximasse de uma povoação humana porque, afinal de contas, somos especiais e merecemos ser respeitados. A RTP defende os direitos de quem acha que a Terra é plana e que há seis mil anos andávamos a tomar o pequeno-almoço com os dinossauros.

Que importam os cortes no Serviço Nacional de Saúde, as listas de espera nos hospitais, as condições de trabalho de professores e alunos ou o desinvestimento na Educação e na Cultura e na Ciência, quando, por sermos tão especiais, merecemos a capacidade de diagnosticar doenças microscópicas a olho nu, desviar o curso da Natureza com a força de vontade, curar cancros com plantinhas, maleitas com peças de roupa, desfazer o Espaço-Tempo com uma rodada de cartas e adivinhar a nossa morte com quântica de polichinelo?