Orson Welles durante a emissão radiofónica de War of the Worlds
A Guerra dos Mundos, escrito em 1898, é um clássico da literatura de ficção científica (FC). O seu autor – HG Wells – já tinha publicado romances notáveis dentro do género: A Máquina do Tempo (1895), A Ilha do Dr. Moreau (1895) e O Homem Invisível (1897), mas foi a história de uma invasão de Marcianos que fez dele um dos imortais da FC. A versão original do livro – em inglês – pode ser lida nesta página.
HG Wells não descobriu a pólvora ao imaginar um planeta Marte habitado. Nos finais do século XIX tinha-se como certo que vivia no planeta vermelho uma civilização muito mais antiga e avançada que a nossa, lutando pela sobrevivência face a um clima instável e hostil, e à escassez de água.
O que um erro de tradução pode fazer. O mito dos canais marcianos teve origem numa má tradução do italiano para o inglês. Tudo começou nas observações do astrónomo italiano Giovanni Schiaparelli (1835-1910). Observando Marte ao telescópio, ele reparou numa série de linhas finas que uniam áreas escuras na superfície do planeta.
Schiaparelli baptizou estas linhas de canali, no sentido de canais naturais como aqueles que unem regiões alagadas. Acontece que a expressão de Schiaparelli foi traduzida para canal que, ao contrário de channel, significa canal artificial. E a maior obra de engenharia da época era precisamente a do Canal do Suez.
Na linha narrativa que nos conduz de HG Wells a Orson Welles surge outro nome: Percival Lowell.
Lowell deixou-se levar pela imaginação, entusiasmando-se com o trabalho dos engenheiros marcianos. Tão apanhado ficou pelos canais marcianos que nunca abandonou esse fascínio até à sua morte, em 1916.
Construiu um observatório com o seu próprio dinheiro e, durante quinze anos, dedicou-se a observar os canais de Schiaparelli e imaginar obras de engenharia que serviam para trazer água dos pólos e irrigar as regiões equatoriais.
Os canais de uma civilização marciana lutando pela sobrevivência foram uma realidade durante anos. Imagine-se, então, o impacto de uma novela em que se conta a invasão da Terra por parte de alienígenas de Marte agressivos e mais avançados que nós.
O mais fascinante na novela de Wells é ainda a forma como se livra dos invasores. Toma-nos completamente de surpresa, pois não nos passaria pela cabeça que um escritor de FC, em 1898, imaginasse que os marcianos seriam vencidos por contaminação bacteriológica e não por uma qualquer acção militar heróica e romântica.
Em 1938, com melhores meios de observação, já se suspeitava ser improvável existir vida em Marte, quanto mais inteligente.
Mas tais avanços no conhecimento não impediram que o até então desconhecido Orson Welles, de 23 anos, juntasse o grupo do Mercury Theatre para uma emissão radiofónica baseada no livro de HG Wells, deixando a América em pânico.
Eram tempos difíceis. O fracasso diplomático da Inglaterra e da França tivera como consequência a entrega da Checoslováquia a Hitler. Nas vésperas da II Grande Guerra Mundial, o temor do expansionismo nazi era tão real para os americanos como os canais marcianos eram para Lowell. Notícias sobre a situação na Europa interrompiam constantemente a programação da rádio.
A 30 de Outubro de 1938, Welles faz a célebre dramatização radiofónica de A Guerra dos Mundos. As consequências dessa emissão foram episódios de pânico colectivo tão clássicos como o livro em que se baseou: mais de um milhão de pessoas nos EUA foram afectadas. Muitos fugiram de casa, outros suicidaram-se, acreditando que o seu país estava a ser invadido por marcianos.
Embora não estivesse à espera que um milhão de pessoas entrasse em pânico por causa dos seus marcianos, o pequeno génio de Citizen Kane assumiria, logo em 1955, num especial da BBC que lhe foi dedicado, o carácter pouco inocente da dramatização.
O mundo parecia ser alimentado por tudo o que saía daquela máquina, afirmou então Welles. Nesse sentido, a transmissão fora um assalto à credibilidade daquela máquina e um alerta para que as pessoas não se deixassem orientar por opiniões pré-formatadas, viessem elas ou não da rádio. [Download: a histórica emissão radiofónica de Orson Welles]
É fácil a um europeu culpar a típica ignorância dos americanos pelo sucedido, mas as coisas não foram assim tão simples. Os primeiros a chegar a esta conclusão foram os próprios americanos. Uma comissão investigadora liderada pelo psicólogo Hadley Cantril foi formada para tentar descobrir por que razão os cidadãos tinham entrado em pânico. As conclusões foram as seguintes:
REALISMO DA EMISSÃO Segundo os psicólogos, foi de um carácter excepcional. Uma visão oposta à da dos investigadores foi a de Dorothy Thompson. A jornalista e comentadora política escreveu no New York Herald Tribune que nada daquilo era credível mesmo no caso de o ouvinte ter sintonizado, tardiamente, a emissão.
IMPORTÂNCIA DA RÁDIO Era frequente que as programações das rádios fossem interrompidas para dar a conhecer aos americanos as notícias de uma Europa à beira da II Guerra Mundial. Na época, metade dos americanos consumidores de notícias optavam pela rádio como meio privilegiado de as obter. A rádio era muito mais importante do que é agora.
PRESTÍGIO DOS LOCUTORES Uma ideia ou um produto tem mais hipótese de ser aceite se for recomendado por uma celebridade ou um especialista na matéria. Qualquer publicitário sabe disto. No caso da dramatização de Orson Welles, as pessoas que prestavam declarações eram peritos (ficcionais, claro).
LINGUAGEM A peça estava escrita numa linguagem directa, oral.
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Olá, parabéns por este sítio fabuloso.
Tenho uma sugestão: juntar a este post alguma informação (que não tenho) sobre uma emissão que ouvi falar em 1988 (feita por uma rádio de, salvo erro, Braga) em que era homenageada a emissão de 1938 (50 anos, portanto). Ou seja, essa emissão de 1988 recriava a Guerra dos mundos de Welles; lembro-me que também na altura houve muito pânico pelos lados do Minho.
Continuação do bom trabalho
Roberto Oliveira
Ao contrário do que muita gente pensa, o Schiaparelli não se comprometeu com uma origem natural ou artificial dos canali – palavra que não inventou, foi usada antes dele por Secchi. Quanto ao Lowell, seguiu as ideias do Flammarion quanto à existência de uma civilização marciana, teve muitos seguidores, mas as suas ideias foram rapidamente demolidas na comunidade científica pelo livro-resposta do Alfred Russell Wallace. Seja como for, só o observatório em Flagstaff garantiria ao Lowell (que não era nenhum tonto) um belo lugar na história da astronomia planetária…
Excelente texto!
Realmente foi um erro de tradução que levou à paranóia dos Marcianos que persistiu durante muitas décadas e ainda persiste…
Mesmo ficando provado no início do século XX que as “ligações de canais” não passavam de ilusões ópticas, o certo é que as crenças e o “wishful thinking” continuou durante mais 50 anos (até à passagem da Mariner 4 em 1965, e ter-se visto nas fotos que não existia nada disso)…
Até lá continuaram as especulações, como se pode ver aqui:
http://www.astropt.org/2010/12/23/marte-1957/
E mesmo com as provas à frente (fotos da superfície Marciana), continuou a haver quem, contra todas as evidências, quisesse a continuar salvar os marcianos inteligentes… como se pode ver pela paranóia da Face de Marte.
A Dorothy Thompson não sabe o que diz…:P
aquilo foi uma emissão inovadora, nunca tinha havido igual, e foi baseada na transmissão de notícias reais… aliás, a dramatização e parte do texto veio do desastre do Hindenburg no ano anterior.
Os americanos realmente pensaram que eram os Nazis (ou Russos) a invadir os EUA.
Mas a paranóia continua por todo o mundo… não é um problema dos americanos.
Há imensas reproduções desta emissão em vários locais do planeta, e com os mesmos resultados.
Basta ver a emissão que a SIC fez em Monsanto em 1998. Foi algo muito mais local, com muito menos dramatização, e teve os mesmos resultados.
Como disseram no MIB: “People are dumb, panicky dangerous animals”
As pessoas não aprendem e caem sempre nos mesmos erros
🙁
O que vale é que nestas coisas costuma haver consequências positivas.
O Percival Lowell realmente deixou-se levar pela imaginação, pelo erro de tradução, pela ilusão de óptica, e pelo “wishful thinking”… levando a que gastasse uma vida à procura de inexistentes Marcianos inteligentes.
Mas, em termos positivos, chamou muita gente para a astronomia (investigação astronómica), maravilhou as pessoas com especulações sobre Marte, levou a muita gente se interessar pelo espaço, e criou um Observatório que não descobriu os Marcianos inteligentes mas fez várias descobertas importantes na astronomia, nomeadamente a descoberta de Plutão.
http://en.wikipedia.org/wiki/Lowell_Observatory#Notable_discoveries
😀
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