Agosto de 2003. O planeta Marte estava bem próximo da Terra em quase 60.000 anos. Aproveitamos a grande oportunidade para mostrar à população o planeta pelo telescópio. Esperávamos umas 500 pessoas por causa do tamanho das instalações, que era pequeno. Para nossa surpresa apareceram 1.500 pessoas ! O triplo! Inclusive de cidades próximas!
A fila de espera começava no acesso ao observatório, estendia-se pelas dependências do museu que ficava em anexo e continuava ao longo da praça, até terminar na porta de uma igreja que ficava a quase 100 metros da entrada!
Apesar da multidão deixávamos as pessoas verem com razoável tempo, exatamente para motivar a fazer perguntas sobre o que está sendo observado. Muitos perguntavam e muitos ficavam calados, cada um a seu jeito. Mas dois episódios merecem especial atenção.
O primeiro é o de um jovem de cerca de 20 e tantos anos. Quando chegou sua vez ele olhou para o pequeno disco avermelhado no telescópio e exclamou: “Fiquei duas horas na fila para ver… isto?!”. Lá fui eu explicar (pela enésima vez) que, apesar do aumento e de sua proximidade, não se via Marte do mesmo jeito que, por exemplo, o Telescópio Espacial Hubble registrava ( e que a mídia adorava publicar). Não foi suficiente para alterar seu humor.
Ele não foi o único. Outras pessoas, sem falar nada, demostravam alguma decepção quando olhavam um pequeno disco avermelhado em vez de um planeta “do tamanho da Lua Cheia” como esperavam ver. Repetir a mesma coisa para centenas de pessoas me estressava.
Me estressava mais ainda a falta de educação de outras, que precisavam ver também com as mãos e não só com os olhos. Tinham que tocar no equipamento, o suficiente para tirar o planeta do foco e perder tempo novamente para localizar e deixá-lo no ponto de observar. Estava com vontade de ir embora pra casa, já sem paciência alguma.
Certa hora, um dos monitores avisa que na fila há um idoso cego de um olho acompanhado de um familiar. Foi perguntado a mim se poderia priorizar o atendimento dele, já que o tal senhor estava debilitado. Relutei um pouco porque pensei em várias hipóteses, como uma desculpa para furar a fila, entre outras coisas. Acabei deixando com a condição dos demais da fila serem avisados que aquele senhor tinha idade avançada e era cego de um olho, por isso precisávamos atendê-lo primeiro.
Finalmente chega a vez do velho. Ele sobe, com bastante dificuldade, as escadas íngremes de acesso ao telescópio. Um familiar daquele senhor reforça o aviso de que ele é cego de um olho. Aponto para a ocular onde ele precisava olhar e o senhor se dirige a ela, ficando numa posição perpendicular à lente. Obviamente não estava enxergando nada. Peço para aquele senhor deixar a cabeça solta. Pego cuidadosamente sua cabeça e a guio até a ocular. Pergunto se conseguia ver algo e o senhor me responde positivamente.
Alguns segundos se passam. Cerca de um minuto depois aquele senhor exclama:
“Tenho 90 anos de idade e você proporcionou um dos melhores momentos da minha vida! Obrigado”.
Precisei me recompor diante daquele depoimento. O estresse logo foi embora e me animou a ficar até o final, atendendo até o último cliente como se fosse o primeiro.
Um jovem de 20 anos, visivelmente saudável, enxergando perfeitamente, não conseguiu observar as pequenas manchas escuras que apareciam no disco avermelhado, além da calota polar. Preferiu se expor com ironias sua ignorância.
Um velho de 90 anos, debilitado, cego de um olho. Conseguiu ver tudo que a imagem ao vivo podia mostrar. E se encantou.
Dali em diante fui obrigado, infelizmente, a ensinar aos jovens como olhar algo por um telescópio. Prestar atenção nos detalhes da imagem, mesmo sendo pequena. Se não for a Lua, não espere ver coisas grandes. Atente-se ao que é pequeno, porque está longe. Se possível, antes de encaminhá-los ao telescópio, treine eles com um microscópio, aprendendo a ver uma célula, por exemplo.
Anos depois daquele episódio, apesar dos esforços, prolifera-se muito mais seres com dois olhos… e sem nenhum cérebro.
3 comentários
Hoje em dia, provavelmente todo e qualquer cidadão já viu um documentário, uma revista ou um livro com fotografias e imagens dos planetas, galáxias, nebulosas, etc. Normalmente fotos tiradas por sondas, pelo telescópio Hubble ou então longas poses obtidas com equipamento amador.
Essas imagens e fotos contaminam completamente as expectativas de quem, pela primeira vez, espreita pela ocular de um telescópio. Pela minha experiência receio sempre o momento em que se mostra uma galáxia, nebulosa ou planeta ao cidadão comum que nunca teve interesse pela astronomia e que aparece nos eventos de divulgação. Mesmo com algumas palavras em que se apela a que ajustem as expectativas, é frequente as pessoas dizerem que nem sequer estão a ver a nebulosa ou a galáxia (porque esperam ver “aquela foto” que viram na televisão ou na revista).
Os únicos objectos que realmente cativam o público são a Lua, Saturno e Júpiter…
Percebo a frustração, completamente. Já a senti inúmeras vezes. 🙂 Mas também percebo que a ciência não chegou a todos de todas as maneiras e que para que as pessoas se maravilhem, como nós, os que estão por dentro da magia da realidade, temos de as ensinar a ver…
“Certa hora, um dos monitores avisa que na fila há um idoso cego de um olho acompanhado de um familiar. Foi perguntado a mim se poderia priorizar o atendimento dele, já que o tal senhor estava debilitado.”
O senhor tem 90 anos e enfatizam tanto o ser cego de um olho. Ele vai olhar por um telescópio não vai ver um filme 3D. De certeza que o senhor tem limitações mais relevantes à obtenção de prioridade.
“Um jovem de 20 anos, visivelmente saudável, enxergando perfeitamente, não conseguiu observar as pequenas manchas escuras que apareciam no disco avermelhado, além da calota polar. Preferiu se expor com ironias sua ignorância.
Um velho de 90 anos, debilitado, cego de um olho. Conseguiu ver tudo que a imagem ao vivo podia mostrar. E se encantou.”
Que dados tens para afirmar que o jovem tem uma visão perfeita e não conseguiu observar as manchas e calota polar?
Hoje temo pequenos aparelhos que nos permitem falar com pessoas do outro lado do mundo e achamos normal e até tratamos com desdém. É normal alguém mais jovem esperar mais de algo do que alguém mais velho visto que os primeiros estão habituados a ter mais.
“O planeta Marte estava bem próximo da Terra em quase 60.000 anos.” ???