O primeiro ano do cometa

A primeira passagem registada do cometa Halley pelo periélio ocorreu num 25 de Maio. Mas foi um 25 de Maio muito longínquo: 240 a. C.

O trabalho de observação sistemática dos fenómenos naturais permitiu descortinar o intruso na zona interior do Sistema Solar.

Não há nenhuma narrativa de tumultos, pânico ou violência nesse ano: o pior parece ter mesmo acontecido em 1910.

Em 1986, ano da última visita do cometa, o encontro foi quase decepcionante. Muito longe dos predicados que tinha exibido em 1910, o conviva, desta vez, primou pela discrição. 76 anos antes tinha sido excessivo, inoportuno, travesso, tendo mesmo chegado a mostrar-se muito assustador e sinistro. Desta vez, o seu espalhafatoso ornamento de 50 milhões de quilómetros não impressionou ninguém. Os convivas, além de terem previsto e antecipado a sua visita há vários anos, conheciam bem o seu aspecto, e agora dispunham de uma enorme vantagem do seu lado: já manejavam as melhores técnicas para poderem ir ao seu encontro.

Já dominavam, de ciência certeira, alguns assuntos que em 1910 lhes tinham causado uma grande diminuição nos stocks de sais, chás para os nervos e elixires de todo o tipo que tinham armazenados na despensa. Desta vez, a quietude da digestão estava bem assegurada. O que terá originado uma visita tão diferente? Será que, em 76 anos, o visitante tinha envelhecido assim tanto? Ou os anfitriões eram realmente outros, mais sagazes, atentos e informados?

Entre 1910 e 1986 o mundo e as gentes mudaram muito. A humanidade conseguiu colocar naves em órbita da Terra, conquistou a Lua, disputou duas grandes guerras com resultados horrorosos, viu o nascimento e a queda de várias ditaduras sangrentas, descobriu e dominou a energia atómica, conseguiu a fertilização in vitro… foram anos de mudança extraordinária, sem qualquer dúvida.

Mas este nome ecoa nas paredes da história: Halley… Quem foi Edmond Halley? E como conseguiu perceber que o cometa que observava era o mesmo que já tinha sido observado por diversas vezes no passado?

Halley nasceu em 1656 nos arredores de Londres. Nessa época, muitos cientistas eminentes ainda acreditavam que Sol andava à volta da Terra. A retractação de Galileu perante a Igreja, um dos episódios mais marcantes da submissão do conhecimento às crenças religiosas cegas e infundadas, tinha ocorrido apenas dois anos antes. Quando morreu, em 1742, a ideia de a Terra poder ocupar o centro do Universo já tinha sido rejeitada pela quase totalidade dos cientistas, mesmo pelos mais obstinados.

E Halley contribuiu grandemente para isso! Terá encorajado e ajudado financeiramente Newton a publicar os seus Principia. Newton, um sábio um pouco distraído, honrando integralmente o estereótipo do génio perdido nos seus pensamentos a quem as coisas terrenas pouco diziam, já tinha efectuado os cálculos matemáticos para a demonstração das leis das órbitas de Kepler, mas não sabia onde tinha arrumado (se é que tinha chegado a arrumar!) o trabalho. Halley instou Newton a refazer as suas notas. O grande sábio acedeu e, porventura, terá levado ao cabo um dos maiores esforços intelectuais de todos os tempos: dois anos a escrever os Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (Princípios Matemáticos da Filosofia Natural), uma obra que se tornou canónica na história da ciência.

Na altura, o grande império britânico estendia-se por todo o globo. Havia colónias em todos os continentes, e a grande frota naval da coroa real tinha afazeres em qualquer mar do mundo. Foi o maior império da história das civilizações, e ficou conhecido como “o império onde o Sol nunca se põe”.

Com apenas 20 anos de idade, Halley partiu para a ilha de Santa Helena, uma possessão britânica no hemisfério sul. A sua decisão, muito longe de um capricho juvenil, tinha tudo a ver com uma resolução que tinha tomado pouco tempo antes: fazer a catalogação das estrelas visíveis a partir do hemisfério austral, uma tarefa nunca antes feita de forma sistemática. Apesar das dificuldades impostas pelo clima tropical, com noites quase sempre nubladas, conseguiu terminar a tarefa num ano apenas. O resultado: mais de 300 estrelas devidamente inventariadas e catalogadas. Quando regressou a Inglaterra, esperava-o um grau honorário da Universidade de Oxford por todo esse trabalho trabalho extremamente cuidado e valioso.

Halley começou então a corresponder-se e a trocar ideias e impressões com os grandes cientistas e astrónomos da época. A sua simpatia contagiante, o seu carácter genuinamente generoso e um sentido de humor fora do comum terão contribuído para a manutenção destas boas relações epistolares. A que deu frutos mais visíveis terá mesmo sido a que trocou com Newton, e cujos resultados ficaram bem evidentes umas linhas atrás.

Halley observou um cometa pela primeira vez em 1680. Ficou de tal forma impressionado pelo espectáculo grandioso que passou a dedicar grande parte do seu tempo ao estudo desses objectos estranhos e um pouco assustadores.

A honra de ser o primeiro cometa a ser observado por Halley coube àquele que ficou conhecido como “O Grande Cometa de 1680”. Tinha sido avistado pela primeira vez por um astrónomo saxão em 14 de Novembro. Em Dezembro, o comprimento da sua cauda já alcançava os 30º e, dois dias depois, uns incríveis 90º!

Talvez valha a pena recordar que o diâmetro aparente da Lua Cheia e do Sol é de meio grau. Ou seja, o cometa chegou a apresentar um comprimento quase 200 vezes superior ao tamanho de qualquer destes astros! Um quarto de circunferência de comprimento! Deve ter sido uma visão aterradora, uma espécie de grande espada do juízo final a assombrar o firmamento! Para se ficar com uma ideia destes comprimentos de arco de circunferência, um palmo à distância de um braço esticado de nós perfaz cerca de 20º.

A título de comparação, a Lua Cheia e o Sol têm um diâmetro aparente um pouco inferior ao de um lápis segurado na vertical à distância desse mesmo braço. O tal meio grau de arco, aproximadamente.

À noite, experimente esticar o braço, levante-o na direcção do firmamento e tente perceber o tamanho aparente deste cometa. Talvez fique mesmo arrepiado…

Os antigos astrónomos acreditavam que os cometas se moviam numa zona muito próxima da Terra e que se tratavam de fenómenos invulgares que ocorriam dentro da atmosfera. A primeira refutação destas ideias foi feita por Tycho Brahe. Em 1577, ao estudar um cometa particularmente brilhante, concluiu que se deveria encontrar a uma distância bastante superior à da Lua. Contudo, o facto de pertencerem ou não ao Sistema Solar ainda constituía uma grande dúvida…

Halley tentou calcular a órbita do cometa de 1680. Percebeu que o seu percurso era muito semelhante ao que encontrou nos registos referentes a passagens de cometas no ano 43 a. C. e nos anos 531 e 1106 da nossa era. Se assim fosse, o cometa teria, aproximadamente, um período de 575 anos. Contudo, as provas eram débeis. Os registos eram pouco precisos e permitiam uma grande dose de especulação. Um reverendo inglês aproveitou os estudos de Halley para proclamar que tinha sido o cometa responsável pelo dilúvio! Halley foi muito mais prudente e evitou retirar conclusões precipitadas. Hoje em dia, sabemos que o período deste cometa é de milhares de anos, não se fazendo a menor ideia de quando se irá aproximar de novo do sistema solar interior.

Dois anos depois, em 1682, apareceu novo cometa. Bastante menos assombroso que o de 1680, mas, ainda assim, uma visão extraordinária. E Halley analisou novamente os registos históricos. Desta vez, contudo, os estudos revelaram-se bastante mais profícuos e fundamentados do que os que havia empreendido dois anos antes. A sua cauda apresentava um comprimento de 10º. Muito menos comprida que a do cometa de 1680. Ainda assim, 20 vezes mais comprida que a Lua Cheia. Ou metade do palmo de há pouco. Ainda uma visão impressionante, certamente…

Os registos referentes a passagens de cometas ocorridas em 1456, 1378 e 1301, apresentavam muitos factos coincidentes com o cometa de 1682. Halley atreveu-se, com grande cautela, a especular que se poderia tratar do mesmo cometa, e a prever que a sua próxima passagem deveria ocorrer no ano 1758. Era evidente que os cometas, relativamente aos planetas do Sistema Solar, apresentavam massas diminutas, pelo que a sua órbita poderia sofrer grandes alterações causadas por esses corpos. Como tal, o período de 76 anos por si sugerido poderia não ser sempre igual.

Escreveu, com grande perspicácia, um artigo no qual falava da susceptibilidade de Saturno (na altura, o planeta mais longínquo que se conhecia) ao campo gravitacional dos outros planetas, especialmente ao de Júpiter – chegava a apresentar seis dias de diferença entre órbitas completas! E se um corpo tão grande, com uma órbita tão pouco excêntrica, podia ser influenciado desta forma, o que poderia acontecer a um corpo muito mais pequeno e cuja órbita fosse uma elipse muito mais excêntrica que a de qualquer planeta? Com alguma modéstia, afirmou que seria quase impossível que se tratassem de cometas diferentes, e que se os astrónomos da posteridade fossem sinceros, não poderiam negar que a possibilidade tinha sido posta, pela primeira vez, por um inglês. Halley era extremamente patriótico, e sentia um orgulho genuíno cada vez que a sua imensa pátria multicontinental era exaltada. A sua grande família inglesa, o seu trabalho ao serviço da coroa britânica e o seu feitio de perfeito gentleman devem tê-lo tornado no protótipo de um agente de sua majestade do século XVII. Consta que nunca matou ninguém…

A previsão de um tal fenómeno não causou grande comoção no meio astronómico nem na sociedade da época, ao contrário do que talvez fosse de esperar. 1758, o ano previsto para a próxima passagem, ainda estava muito longe, e o próprio Halley, se estivesse vivo na altura, seria um venerável ancião de 102 anos.

Entretanto, nos anos seguintes, a paixão pelos cometas e pelos fenómenos celestes atravessou o canal da Mancha e aterrou no reino da França. Dois astrónomos, Alexis Claude Clairaut e Joseph Lerôme de Lalande, tiveram a ajuda da mulher de um relojoeiro, a Madame Jean André Lepaute. Clairaut dizia dela que “embora não fosse bonita, tinha uma figura elegante e um pezinho bonito”. Ah, os franceses, com a sua elegância e o seu espírito eterno de sedução…

Os três franceses fizeram cálculos minuciosos e trabalharam intensamente durante alguns meses. Tiveram em conta a posição dos planetas ao longo de todo o trajecto do cometa e todas as influências que este poderia vir a sofrer ao longo da sua comprida órbita. Concluíram que o cometa iria ser atrasado 100 dias por Saturno e 518 por Júpiter! E conseguiram um acerto muito razoável, atendendo a todas as variáveis, ao tipo de instrumentos disponíveis na época e ao facto de Urano e Neptuno, dois planetas bastante grandes e maciços, serem ainda desconhecidos na altura. A diferença de tempo: um mês apenas, que é, manifestamente, um erro pequeno perante todas estas condicionantes.

Contudo, o primeiro observador a localizar o cometa terá sido o nosso conhecido Charles Messier. Perscrutou os céus durante meses sem obter qualquer resultado. Quando o localizou, o seu patrono não permitiu que a descoberta fosse divulgada, talvez por receio que o seu pupilo estivesse enganado. A honra veio a pertencer a um obscuro astrónomo saxão, Johann Palitzch, entretanto completamente esquecido pela história.

Messier persistiu na procura de cometas e de outros objectos indefinidos, acabando por criar o seu espantoso catálogo, ainda de grande utilidade nos dias de hoje e um verdadeiro cardápio de belezas do céu.

Halley não viveu os 102 anos necessários para ver de novo o “seu” cometa. Contudo, o seu nome entrou de uma forma brilhante e inesquecível para o livro maravilhoso da história humana e dos seus feitos extraordinários.

7 comentários

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  1. nossa cometa bom ruim nao sei mas eu queria ver um cometa na minha vida

    1. nossa quem nunca vil um

  2. eu não sabia que o cometa hallei foi descoberto no dia do meu aniverssario

  3. Já agora, sobre a minha área… o Halley acreditava em vida extraterrestre (nessa altura, só se pensava em vida inteligente) em todo o lado… quer fosse dentro da Terra, como dentro do Sol, etc… em tudo 😛
    Ele era um verdadeiro pluralista… como vários nessa altura 🙂

  4. WOW!!! Excelente texto 🙂

    Não sabia várias informações.

    “Em Dezembro, o comprimento da sua cauda já alcançava os 30º e, dois dias depois, uns incríveis 90º!”

    Bem, tendo em conta toda a histeria de fim do mundo que se alastra por cada vez mais mentes ignorantes:
    http://www.astropt.org/2011/05/21/fim-do-mundo-e-hoje-as-18-horas/
    Tendo em conta todos aqueles que se mataram por ver o Hale-Bopp em 1997, e tendo em conta já toda a histeria em volta do cometa Elenin:
    http://www.astropt.org/2011/05/22/cometa-elenin-ira-dizimar-a-humanidade/

    Se viesse um agora com a cauda de 90º, tenho praticamente a certeza que iria haver milhões de mortos, e milhares de vigaristas muito ricos!!!!
    🙁

    • Marina Frajuca on 24/05/2011 at 15:35
    • Responder

    Curiosamente, li há pouco tempo um livro que chama “Longitude” (Dava Sobel). O livro fala essencialmente sobre john Harrison e a forma como ele solucionou o problema do calculo da longitude. No entanto o livro tambem fala de várias figuras como Messier, Newton e Halley. Apenas sabia que Halley tinha dado o nome ao cometa e Messier nem sabia que era o mesmo do catalogo. Para mim foi uma surpresa o que descobri, não fazia ideia que em pleno sec.XVII a observção estronomica pudesse ir tão a frente.
    Gostei muito de ler este post, acho que se devem lembrar estas figuras, graças a elas não desatamos todos a gritar que é fim do mundo (isso é só para alguns…lol ) e o saber não ocupa lugar.
    Obrigado por partilharem …

    • Ana Guerreiro Pereira on 24/05/2011 at 13:44
    • Responder

    Excelente texto! 😉

  1. […] – Cometas. História. Halley. Lulin. Lovejoy. Hartley 2. Garradd. Asteróides. Ameaça. Apophis. Desviar. Passagem. Lutécia com […]

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