É preciso separar a discussão de ideias da discussão de carácter pessoal. A discussão de ideias não deve ser considerada pessoal. Ataques ao carácter e personalidade são uma coisa. Ataques às ideias são outra. Ainda que nós as chamemos carinhosamente “nossas”, elas são quase de certeza apenas adoptadas. E mesmo que sejam nossas de raiz, temos de ter cuidado para que sejam elas que são nossas e não nós é que somos delas.
As ideias são blocos com informação que existem no nosso cérebro. O substrato que as sustenta são os nossos neurónios – aí nascem, aí se replicam, transmitem-se de um cérebro a outro e eventualmente aí morrem. Tem sido proposto que na sua forma mais simples sejam chamadas memes. São o análogo metafísico do gene. E tal como o gene, sofre selecção natural. As melhores ideias, que dão mais resultados, que dão mais sucesso ao seu portador, tendem a persistir mais tempo. Isto pode acontecer devagar, até a coisa ser óbvia, ou podemos por as ideias à prova – frente às suas competidoras – e tornar o processo consciente e critico.
O nosso objectivo – enquanto detentores de ideias – deveria ser tentar ter as melhores possíveis. Se não podemos mandar os genes para o lixo se não nos satisfazem, o mesmo já não é bem verdade para as ideias. Podemos manda-las para o lixo. Mas o custo para o fazer parece ficar cada vez mais alto conforme vamos ficando mais velhos. Elas vão ficando cada vez mais bem instaladas, começam a criar raízes, têm uma data delas a crescer em cima que precisam do seu suporte, etc. A agilidade inconsciente da infância e adolescência não duram para sempre. Para o bem e para o mal. Mas isto não quer dizer que nos agarremos às nossas ideias como se fossemos nós próprios. Isso é muito bom para as ideias, mas francamente é pior para quem tem a ideia de que quem ataca as nossas ideias nos está a atacar a nós.
A ideia de que cada um de nós deve ser julgado por toda e cada uma das nossas ideias deve ter prosperado precisamente por dizer algo acerca do seu próprio poder de persistência. Mas é um disparate. As ideias devem persistir e prosperar por serem melhores, não por dizerem ao seu detentor: “defende todas as ideias que já estão instaladas como se fosse uma assunto pessoal”.
Nós temos muitas ideias. Não somos nenhuma das nossas ideias separadamente. Não deixamos ser quem somos só por mudar uma ideia. Somos muito mais o resultado único da interacção de todas elas entre si. Mas podemos melhorar se as testarmos uma a uma e as compararmos com as que nos passam por perto. E deitarmos para o lixo as piores em troca de outras melhores.
E uma maneira de o fazer é discutindo. Mas é preciso acabar com a ideia de que atacar as nossas ideias significa um ataque ao nosso carácter. Por muito que uma ideia se tenha apoderado da nossa mente e nós nos identifiquemos com ela, não devemos confundir um critica às ideias com uma critica pessoal, (ainda que construtiva).
Más ideias temos todos. Ridículas mesmo. Não é ter uma ou duas ideias ridículas que faz uma pessoa ridícula. Ninguém está sempre certo o tempo todo.
Dizer “essa ideia é um disparate” não é equivalente a dizer “tu és um disparate”. Agressões ao carácter são algo muito mais profundo e dizem respeito à nossa natureza pessoal. Essas criticas devem ser sempre feitas com extrema delicadeza e nunca como quem critica determinada ideia ou coisa. Atacar a pessoa e não a ideia é de resto uma falácia velha mas infelizmente muito em moda. Em latim, “ad hominem”. Dá a sensação de que quem a diz fica por cima. Mas as aparências iludem.
Isto tudo quer dizer que não devemos defender as nossas ideias? Nem um pouco. Quer dizer que podemos defender as nossas ideias frente às dos outros com unhas e dentes e quer dizer também que o devemos fazer como aprendizagem colectiva. Não devemos é considerar os ataques dos outros às nossas ideias como algo pessoal. Também eles têm o direito de atacar as nossas ideias com unhas e dentes.
Naturalmente que o envolvimento emocional não é de todo evitável. De acordo com o neurocientista português António Damásio nem sequer é desejável. Mas discutir com entusiasmo as ideias dos outros, ou os outros as nossas, não significa uma ataque às nossas ideias como um todo e vice versa. Essa confusão tem de acabar. Porque discutir ideias, repito, é uma maneira incontornável de encontrar erros e aprender. E é imprescindível para quase todas as actividades humanas, porque bem feita, permite por vários cérebros a pensar como uma unidade. A abertura a discussão é uma das marcas de sucesso da ciência.
A tendência para nos deixarmos dominar por cada ideia que temos e a defender como se se tratasse de nós próprios tem acabar.
E repito também que não é para se deixar de discutir com vigor e entusiasmo. Mas para precisamente para se poder discutir com vigor e entusiasmo sem sair tudo ofendido para seu lado – E esse comportamento é a garantia para uma colecção de ideias dogmática e estéril.
1 comentário
Como acréscimo, recomendo ler:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Troll_(internet)
Aprendi muito lendo isso.
E descobri que eu era um Troll!
Ops,…
… “Era”? XD