Uma defesa Intransigente do Esclarecimento Kantiano contra a preguiça intelectual
Harald Lesch, 50, astrofísico e filósofo de Munique, é a personagem central da divulgação científica na Alemanha, depois de assumir na ZDF, no final de 2009, o programa “Abenteuer Forschung”, carro chefe da emissora no setor há 40 anos. Há quase duas décadas, seu programa “Alpha Centauri”, composto de 217 episódios de 15 minutos cada, consolidou essa tradição de alto nível no canal público Bayerischen Fernsehen. Fazem parte também desta história Fritz Haber e outros integrantes do time de von Braun nos anos sessenta. As madrugadas alemãs são, portanto, pela tradição, na TV pública, um espaço quase cativo da Astrofísica, no qual se mesclam o já clássico “Alpha Centauri” com ensaios líricos musicais, série conhecida como “Space Night”, montagens que tematizam a história da Era Espacial, desde o Projeto Mercury até o fim do ciclo Shuttle.
Uma de sua frases mais citadas ilustra todo o alcance de seu programa didático: “A Astrofísica somente pode responder à penúltima questão, pois não podemos ler nada além da cortina opaca da CMB”. Isto é, como discípulo da metodologia inaugurada por Kant, ele fecha a cortina do “velho teatro” da metafísica e seus objetos ilusórios e contenta-se em jogar, apenas, com as regras e as evidências, dentro dos limites da experiência sensível. Essa “penúltima questão” foi explicitada quando o espectro perfeito de corpo negro do satélite Cobe foi projetado no auditório da Nasa, por exemplo, e os presentes ovacionaram com palmas por um minuto seguido aquela curva por dois motivos: 1) quantos sacrifícios, quase descobertas, desentendimentos finalmente eram coroados com aquele gráfico, que proeza poder olhar, pela primeira vez, para o “Santo Graal” de uma Nova Era do Conhecimento; 2) Não podia ser outra coisa senão aquele espectro térmico, a teoria era correta e aguardou por décadas ter seu segredo revelado!
Esta curva encerra uma das maiores vitórias da racionalidade humana
No panorama da divulgação cientifíca internacional, o programa “Horizon” da BBC, às vesperas de completar 50 anos, é um marco único e revolucionário em seu formato ao materializar idéais e conceitos sempre na perspectiva individual do pesquisador, de seus dramas e triunfos, ou seja, o programa criou desde meados do sessenta uma maneira genuinamente televisiva e moderna de se falar de ciência. A ciência “encenada” para a TV tem já sua própria historicidade e tradições, bem como regras e limites que começam agora a ser rapidamente mudados com a Internet. Mas o que é peculiar em Harald Lesch e, na minha opinião, um grande desperdício para milhôes de potenciais espectadores que nunca tiveram uma experiência semelhante, já que sua atuacão está limitada ao espaço linguístico alemão, é que em nenhum outro lugar do mundo a Astrofísica e seu espírito estão tão imbricados, próximos e glosados dentro de uma tradição filosófica originária do assim chamado “giro copernicano” da “Crítica da Razão Pura”. É impossível, por exemplo, entender a imaginação científica de Einstein (“Deus não joga com dados”), sem relacioná-la com esta herança kantiana.
E neste sentido, a forma da exposição de Lesch é absolutamente única ao transformar em humor e anedotas filosóficas cada capítulo de sua série, pois cada bloco de “Alpha Centauri” é introduzido e fechado por uma afirmação proverbial, um humor muitas vezes não tão fácil para os leigos, como as piadas do Monty Python autoreferidas, por exemplo, diga-se de passagem. O humor de Lesch é o sorriso cínico da Razão.
Giro Copernicano e o Ponto de Vista do Sujeito Transcendental na Astrofísica
Kant não só inaugurou um novo “ponto de vista transcendental” na sua “expositio”, ao “duplicar funcionalmente” o alfabeto da realidade, mas também foi astrofísico e um dos mentores da hipótese das nebulosas. A palavra “duplicar” aqui significa exatamente o seguinte e pode ser pensada com uma projeção de quase dois séculos do que seria a evolução da Astrofísica no século XX. “Pensar” e “conhecer” são duas atividades do Espírito totalmente distintas na nova metodologia, delimitadas pelo limite da “coisa-em-si”, uma zona limítrofe de visibilidade e legibilidade dos fenômenos. Você pode pensar objetos como “Deus”, a “Totalidade”, o “Big Bang”, a “Singularidade Nua”, pensar não é proibido, pelo contrário, é uma atividade espontânea, mas conhecer significa somente aquilo que as evidências da experiência sensível ( ou dos métodos científicos) nos reportam quando “testamos” nossos modelos diante da natureza.A ciência e a matemática são este alfabeto da soletração do real, mas seus signos e códigos não são “reais” em si. Muito bem. Este ponto de vista filosófico revolucionou não só as ciências humanas, mas sobretudo as naturais, pois ele radicalizou e aprofundou os limites da imaginação científica com novos modelos matemáticos, por exemplo. O fim do “teatro da metafísica” e seus fantasmas em Kant abriu a porta da ciência para objetos jamais antes imaginados, criou um espaço de liberdade quase infinito. Antes mesmo que existissem como objetos de evidência inconstetável, estrelas de nêutrons (Fritz Zwicky), pulsares, buracos negros (Karl Schwarzschild), quasares, muitos destes objetos já eram virtualidades perfeitamente consistentes dentro de modelos, como a radiação cósmica de fundo de Goergy Gamow, por exemplo,ou seja, Astrofísica revelou-se duzentos anos depois do gesto inaugural do “giro copernicano” preconizado por Kant um domínio particularmente revolucionário do conhecimento, no sentido de que pode até se dar ao luxo de que sua imaginação matemática possa até esperar algumas décadas pela evidência empírica e esta evidência sempre acaba aparecendo, mais cedo ou mais tarde, quando se investe arduamente na experiência, não importa se gerações depois. Como sabemos, os objetos da matemática não podem ser “conhecidos” e também não podemos fazer experiências com supernovas, mas temos programas de computadores cada vez mais precisos e este avanço em território tão abstrato e rarefeito somente foi possível porque a ciência manteve-sei fiel às regras do jogo estabelecido pelo Prefácio da “Crítica da Razão Pura”.
Overdose Expositiva e os Limites do Docuainment:
Justamente em função destes motivos metodológicos “rígidos”, durante muitos anos, imaginei como seria apresentar Harald Lesch ao um público lusófono, pois o que é anedótico, idiomático em Portugal, Brasil, Texas, ou na Califórnia depende da gravidade deste meio que chamamos de linguagem e muitas vezes não pode ser diretamente traduzido. Mas na revolução da Internet hoje, temos uma overdose expositiva de astrofísicos com uma dominância, é claro, do inglês, e do padrão show da mídia televisiva americana, que se transformou numa receita milionária nos History e Discovery Channels, na mescla que vem sendo denominada de “docuainment”, documentário e entretenimento, seja como uma ficcionalização do gênero no caso da narrativa histórica tradicional, seja na Astrofísica no emprego de efeitos especiais e uma exposição dinâmica, com figuras carismáticas, como na já consagrada série “The Universe” do History Channel com milhões de seguidores mundo afora. Há até uma nova musa ou “estrela” desta série, a bela Amy Mainzler do JPL.
Uma contraponto ao futuro apocalíptico do universo com a dominância da energia escura
Mas Harald Lesch é careca e não são poucos alemães que o consideram um pouco “arrogante” na sua intransigência diante da bobagem e da superstição, sobretudo os ufólogos que o perseguem numa relação complexa de amor e ódio, mas mesmo estes admitem que ele é particularmente inteligente, rápido demais na argumentação, um “contador de histórias nato”, e sua relação de amor com câmera foi à primeira vista. A verdade científica é sempre profudamente desagradável para o bom senso e é sempre mais confortável ceder à preguiça mental. De qualquer maneira, na tradição luterana alemã, o papel de estrela da mídia não cabe muito bem, sobretudo porque Lesch sempre priorizou a hierarquia universitária e seu trabalho de pesquisa. Embora esteja falando aqui de um astrofísico e filósofo consagrado na televisão alemã, seria interessante, aliás, apenas como contraponto, compará-lo com outras celebridades. Tome-se o caso de Alexei Fillipenko. Não são poucas as pessoas que vivem se perguntando por que essa personagem extraordinária que une um talento nato e pop para a vocação espetacular show do “ethos” americano, à aura de uma cátedra em Berkeley, e ao fato de ser responsavel pelo time de uma descobertas mais radicais da ciência, por que, enfim, ele estaria sempre sorrindo, mesmo quando exercita em detalhes sua “Domsdey Science” e os dados incontestáveis de seu time farejador das Supernovas 1A apontem para o pior desfecho possível de nosso universo,
Alexei Fillipenko, entre as colinas ensolaradas de Berkeley e observatório Kek no Havaí sempre à caça de uma nova supernova Tipo 1A, sorrindo, antes de o universo acabar vá para a Califórnia
entre este estilo, e o “approach” de Lesch e seu ceticismo alemão, seu humor negro, elegante, esboça-se algo muito interessante e revelador sobre o futuro da divulgação cientifica, no caso de Lesch, ainda atrelado a um modelo de TV Estatal, a saber a urgência em nos confrontar diante dos piores cenários possíveis do futuro remoto do universo. Lesch, por exemplo, fala muito rápido que os demais utiliza frases um pouco mais longas, é extremamente difícil legendá-lo, fazer legendas caberem numa frase, tem um senso de humor típico da Baviera, também conhecida como o Texas da Alemanha, mas a gravidade de ceticismo da esfera publica alemã faz dele um porta voz muito duro contra a superstição, contra a criminalidade na divulgação profissional de bobagens na Internet e, além disso, ele consegue realmente, em quase todas as oportunidades, delimitar a linha divisória entre a exposição intuitiva dos conceitos e o espaço não leigo dos modelos matemáticos. Este é um detalhe importante de sua incrível honestidade intelectual também. Depois de muitos anos de observação, tenho a impressão de que o espectador ideal que ele pressupõe não vê outra alternativa a não ser enfrentar a matemática, sem que isto pareça uma capitulação.
O Futuro da Divulgação Científica e Verdade Histórica
Recomende a seus amigos a camiseta O que é Esclarecimento, muito boa para protegê-lo de ufólogos e profissionais da bobagem
Por fim, gostaria de de mencionar um outro lado também na exposição de Lesch que o aproxima a uma tradição mais ampla da história da ciência natural, sobretudo na avaliação do que seja a verdade histórica em seu campo e para exemplificar seu método postei e legendei no youtube um de seus melhores momentos. Na série “Alpha Centauri”, destaca-se um capítulo dedicado àqueles que põem em dúvida o “Projeto Apollo” na esteira das legiões de bobagens conspiratórias, algo que mexe, por exemplo, na ferida do orgulho alemão retrospectivamente, já que é verdade histórica que von Braun (não o tecnocrata estilizado por Kubrik) queria apenas chegar à Lua. Von Braun teve problemas seríssimos com a SS quando, um pouco alcoolizado, deixou isto escapar em círculos privados. Quando estava em baixa nos meados do anos 50, procurou os estúdios Disney para cativar a imaginação do publico americano.
Na série de Lesch, este seja talvez seu momento mais incisivo. Poucas vezes vi uma defesa tão apaixonada e intransigente da ciência em 15 minutos. Ele começa o programa lendo o parágrafo, “O que é Esclarecimento?”, no qual Kant discorre sobre o desejo de se permanecer na minoridade intelectual. O mote da intervenção é o medo e a covardia diante da evidência cabal e a comodidade das explicações fantasiosas, enfim, o “desejo de acreditar” a qualquer custo, conduzir-se por terceiros, permanecer na inocência da infância, pois o conhecimento é sempre culposo, responsável, belo nome, aliás, de um livro clássico sobre a mitologia de Roswell: “Inconvenient Facts and the Will to Believe” de Karl T. Pflock, Jerry Pournelle . Pois simplesmente muitos querem acreditar em contos de fada para adultos. É simplesmente um momento extraordinário desta série, de verdade moral, no qual as idéias que expus no início a respeito do método ganham um novo patamar. Espero que você divida esta opinião comigo.
Bem humorado, Lesch é também apaixonado pela série clássica “Stark Trek” e desenvolveu uma sequência de programas para analisar o caráter e as liberdades ficcionais de sua “Física”
15 minutos de defesa intransigente da ciência
“War die Miondlandlung Echt?”
“O pouso na Lua foi real?” Legendas em português
Parte 1
http://www.youtube.com/watch?v=Gwzk83G8Hso&feature=related
Parte 2
http://www.youtube.com/watch?v=mcMCtXvgNK8
Visitem também meu novo blog cultural da Alemanha!
http://urania-josegalisifilho.blogspot.com/
2 comentários
O vídeo não está mais no youtube, pelo menos no endereço original. Está em um novo endereço ou em outro site de vídeo?
A conta do youtube desse video foi encerrada 🙁