A Matrix Conceitual – Entrevista com Manfred Geier sobre o volume “Kants Welt”

Original de minha entrevista publicada pelo Caderno Mais!, da Folha de São Paulo, de 30.05.2004

Publicado na Alemanha, “O Universo de Kant”, de Manfred Geier, defende que o filósofo construiu um modelo de universo mecânico que busca superar a intervenção divina

Deus não joga dados”, afirmou kantianamente Albert Einstein ao estabelecer as regras do jogo de seu modelo do universo. Se a vida inteligente é uma febre de matéria auto-reflexiva na tentativa de afirmar sua identidade provisória no contínuo espaço-temporal, a pergunta sobre as condições de possibilidade e validade de seu conhecimento não está apenas na base de sua atividade mental espontânea, mas, sobretudo, de sua natureza moral.
Em outras palavras, o conhecimento científico é um corretivo dessa febre metafísica na construção e desconstrução de modelos verossímeis do mundo dentro dos limites de experiência sensível. “Kants Welt” (O Universo de Kant, ed. Rowohlt, 9,90 euros), de Manfred Geier, ilumina os fundamentos empíricos da cosmologia subjacente à arquitetura dos críticos como uma gigantesca “matrix” espontânea, expandindo-se na diferença entre pensar e conhecer. Geier é professor de literatura alemã moderna na Universidade de Hanover.

O que significa o sistema kantiano como “matrix” de um universo fractal?

Ao observar o firmamento e com base na literatura astronômica mais avançada de seu tempo, Kant construiu um modelo próprio do universo mecânico de Newton, tentando superar um de seus dilemas, a saber, a intervenção providencial do “dedo de Deus”, como causa última que justificasse a origem do movimento.

Kant não estava satisfeito com essa intervenção “ex-machina” e encontrou uma saída: “Dêem-me matéria e construirei um universo”. Esse ato de criação quase demiúrgico se assemelha a uma gigantesca “matrix” conceitual em que o micro e o macrocosmo se espelham, subtraindo-se a qualquer conjectura metafísica do que estaria antes ou fora desse universo.

Kant foi um dos primeiros a formular esse problema da simulação de um ponto de vista essencialmente moderno em sua “Teoria do Firmamento”, a experiência da percepção de um mundo no qual as fronteiras entre a virtualidade de um modelo do universo, subjacente a qualquer construção teórica matemática, e o universo real se diluem.

Até então, o conhecimento astronômico descrevia apenas nosso sistema solar e não se sabia ainda que aquelas manchas nebulosas, ainda difusas para o alcance dos telescópios do tempo, eram “ilhas-mundo”, galáxias, provavelmente povoadas, como já supunha Kant. Kant acreditava, com base nos pré-socráticos, que, no início desse universo, haveria um caos da matéria primordial em seus elementos constituintes em “movimentos conflituosos”, que se seguiria ao nada, mas esse caos não poderia ser totalmente homogêneo, pois, se assim fosse, não haveria como justificar, em última instância, o movimento.

O que me parece que não foi percebido até hoje é que essa manobra de Kant já antecipava o que somente 200 anos depois se tornaria a outra revolução copernicana da cosmologia no século 20: o modelo do universo inflacionário, como hoje o compreendemos desde Hubble, quando a cosmologia rompeu definitivamente suas fronteiras metafísicas e se tornou ciência, com a prova irrefutável do desvio para o vermelho das galáxias que se afastam de nós e das flutuações da radiação de microondas de fundo, um vestígio fóssil de como o universo era 300 mil anos depois do instante zero.

Na trilogia “Matrix”, Morpheus abre para Neon a porta do “deserto da realidade”. Mas a tessitura da realidade é muito mais aparente do que imaginamos e a “matrix” cria simulações simultâneas “ad infinitum”. Para Kant, esse limite do caminho seguro da ciência não seria também uma última artimanha da “matrix” do pensar?

Não, porque é o único recurso de que dispomos para conhecer. Para decepção de muitos, o “happy end” hollywoodiano terminou com um retorno à velha metafísica que Kant desconstruiu. É nesse sentido que tomo de empréstimo a metáfora em relação à primeira parte da trilogia. A diferença entre pensar e conhecer estabelece para o pensamento o limiar da coisa em si como fronteira de inteligibilidade do texto do mundo.

Kant soube contornar habilidosamente a censura de ateísmo, pois o assim chamado arquiteto da “matrix”, para Newton, o “dedo de Deus”, é apenas um sonho, uma exorbitância da experiência sensível no “espaço vazio das categorias do entendimento puro”, na remissão da “Crítica da Razão Pura” ao mundo das idéias puras de Platão. A guinada copernicana consiste na pergunta: “O que posso conhecer?”, “quais são, enfim, as condições de possibilidade desse conhecimento?”.
Esse seria um programa de uma “meta-física”, que não visa a ultrapassar a física como experiência científica nos limites do mundo natural, não criaria uma hiper-realidade com base num sujeito transcendental que pensa a totalidade ou a eternidade de Deus, mas de um pensamento que se auto-engendra e cria para si um novo território como “caminho seguro da ciência”. O que é essencialmente moderno nisso é que o nomadismo do pensamento metafísico encontra seus limites numa espécie de nova aurora.
A filosofia kantiana busca um limiar no horizonte de uma clareza que se anuncia como a manhã, dissipando os fantasmas do submundo das sombras, das crendices, do fantástico, que nos mantêm atrelados ao medo por meio de conceitos e juízos claros.

A imaginação de Kant colonizou esses outros mundos com habitantes, segundo a idéia de que, quanto maior a distância do centro, menor a gravidade e, portanto, menor seria o efeito sobre a inteligência e a moralidade desses seres imaginários. Não seria exatamente o contrário, como observamos sobre a superfície deste planeta?

De fato, trata-se de uma mera especulação imaginativa, mas a argumentação kantiana é rigorosamente antitética. Ele parte da contradição entre os limites de nossa existência material corpórea, quase insignificante diante da infinitude em sua experiência sensível, nossas faculdades de conhecimento, mas sobretudo de nosso sonho de eternidade espiritual nesta ilha do universo. O modelo de que ele dispunha era ainda Newton, no qual a gravitação exigiria de nós uma consistência física robusta que faria o sangue circular de maneira mais lenta, nossa massa e nossos músculos teriam de ser necessariamente mais fortes para sobreviver nessas condições.
A argumentação busca demonstrar que nossa espécie se encontra num estágio intermediário do desenvolvimento cósmico, pois é o confronto com essa infinitude esmagadora que destrói, como afirma, “minha importância como uma criação animal”. No século 18, muitos acreditavam que o cosmo era povoado. A suposição de que apenas um planeta como a Terra fosse povoado ia de encontro ao princípio do descentramento do pensamento, o homem não poderia estar necessariamente mais no centro desde Galileu. Esse descentramento do homem seria compensado por uma colonização estelar imaginária.

Se o projeto homem, nessa arquitetura, só se justifica em razão de sua liberdade, como uma obra de arte da natureza, o desenvolvimento das novas tecnologias genéticas não estabeleceria um limite a essa racionalidade?

Kant não descartaria por completo a intervenção nesse material genético, mas partiria do princípio de que a liberdade, no limite, não pode ser deduzida empiricamente. O homem é, nesse sentido, uma obra de arte da natureza, mas não de si mesmo. Ele está na posição de se auto-educar do ponto de vista moral, questionar se os princípios de sua ação têm ou não validade universal, mas haverá sempre um limite nessa intervenção, sem o qual não podemos mais definir a fronteira do que seja humano. Podemos mudar nossa moral, mas não nosso genoma.

O terceiro capítulo da “Dialética do Esclarecimento”, de Horkheimer e Adorno, sobre “Juliette”, de Sade, ou a moral burguesa kantiana sedimentou uma interpretação do imperativo categórico como protótipo do fascismo. Qual é o sentido atual do imperativo categórico, diante de uma maximização hedonista da sensibilidade?

Para mim, trata-se de uma interpretação essencialmente falsa. O imperativo categórico não é a expressão estática e gélida de um olhar “pervertido” desse sujeito, ele não paira acima de nós como uma ameaça, mas como uma promessa de liberdade. É preciso ler Kant literalmente para entender como na “Dialética do Esclarecimento” três coisas incompatíveis se misturam, como se fossem uma “prova histórica” inequívoca do projeto, para Adorno e Horkheimer, “totalitário” da razão. “Aja como se seu agir fosse uma máxima universal.” Em primeiro lugar, não se trata aqui de uma moral coercitiva, mas de uma moral da consciência, como se aquilo que desejamos para nós também se estenda aos demais e mantenha inviolada sua liberdade de agir. Em segundo, é uma moral da responsabilidade da consciência que reconhece o outro. Em Sade ocorre o contrário, pois a moral libertina vive parasitariamente, pela violência, ou seja, pela poder coercitivo, às custas da consciência e da liberdade do outro para anulá-lo. O sadismo exige a vítima, para descartá-la como sujeito, e nenhum dos libertinos se coloca no papel da vítima.
Por outro lado, a moral da fraternidade libertina é exclusivista, privada, não extensiva aos demais grupos. Em terceiro lugar, o conceito de esclarecimento do capítulo sobre Ulisses desliza num equívoco grosseiro sobre o próprio sentido do ato de esclarecer como reconhecimento do outro. Kant diria, provavelmente, que o protótipo de Ulisses não tem nada a ver com a auto-emancipação do sujeito esclarecido.
Ulisses seria muito mais um aventureiro, um ilusionista dos sentidos, quando muito um jogador do destino, pois trapaceia com os troianos, seu truque com o cavalo não é um ato de esclarecimento em relação ao outro, isto é, de reconhecimento do outro, ou seja, os troianos, mas uma simples trapaça de sua astúcia. Se entendi bem o que Kant formula com o imperativo categórico, o esclarecimento é um ato que permite ao outro expressar livremente seu juízo com base nesta universalidade da razão. Para Kant, a trapaça do cavalo não seria, provavelmente, uma mentira defensável no jogo do livre diálogo.

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