Eu já devia ter aprendido que quando me chega aos ouvidos um disparate anti-científico divulgado na televisão o melhor é desligar e seguir em frente.
Para quê chatear-me? O Universo continuará a ser regido por leis físicas, independentemente das tretalogias medievais que nos dizem o contrário; o Universo permanecerá indiferente à nossa presença, sejam quais forem as convicções egocêntricas sobre a importância central da nossa espécie.
Eu já devia ter aprendido, mas não aprendo. Fico furioso. Passo-me da cabeça.
A última irresponsabilidade televisiva teve como protagonista uma astróloga, Maya. Também é uma «tárologa» – chamam-na assim por ser uma especialista em cartas Tarot, mas eu prefiro definir uma tárologa como uma pessoa que é tarada, tarada por astrologia.
Tarada no sentido Alcina Lameiras do termo: não sei se lembram (eu não – e tive de corrigir o post), Alcina é uma espécie de astróloga que durante demasiado tempo surgiu num spot televisivo a dizer-nos «não negue à partida uma ciência que não conhece».
Infelizmente, a especialista em calos cósmicos Maya não seguiu o conselho da guru Alcina e decidiu, em direto na televisão, negar à partida uma ciência que não conhece: a medicina.
Depois de receber um telefonema de uma mulher que estava acamada por ter fraturado a bacia, Maya aconselhou-a a ir a uma clínica, pois precisava de «ser operada para ser tratada convenientemente. A sua situação tem solução, mas não está a ser bem conduzida, de todo».
Depois sugeriu à mulher que contrariasse as ordens do médico e saísse da cama: «O repouso absoluto não está a pôr as coisas no lugar. E agora como é que o osso cola? É estando deitadinha? E se o osso ganha calo no sítio errado?»
Eu não sou médico e não estou obviamente qualificado para explicar seja o que for na área da ortopedia, mas não é preciso ser muito inteligente para perceber que a Maya também não é especialista na matéria.
Para esta “médica”, se uma boneca se parte, cola-se com cola UHU; com uma pessoa é mais ou menos a mesma coisa: se um osso se parte, é preciso colá-lo – a única diferença é que as clínicas, ao contrário dos hospitais públicos, usam uma cola mais profissional que não se encontra à venda no mercado.
Esqueçam o papel dos osteoclastos, células de «limpeza» dos ossos fraturados, ponham de parte os angioblastos, células de reparação responsáveis pela formação de novos vasos sanguíneos dentro do osso; nem sequer se atrevam a pensar nos osteoblastos, as células que dão origem a novo tecido ósseo e que levam à formação de calo ósseo nas zonas afetadas; em suma, não se informem.
Esqueçam essas trapalhadas medicinais e confiem no doutor Júpiter que tirou um diploma na Universidade de Kuiper: para Maya, uma fratura não passa de um joanete mais complicadinho. Dito por outras palavras: cara fratura, não negue à partida um joanete que não conhece.
Enfim, para quê chatear-me? Deveria ficar surpreendido por ver astrólogos na televisão e raramente ver astrónomos?
Maya é uma astróloga, ou seja, partilha da irracional convicção de que corpos celestes localizados a milhares ou milhões de quilómetros de distância têm uma misteriosa e determinante influência sobre o nosso destino, a nossa personalidade e as nossas escolhas. E sendo a especialista em interpretar esses sinais, é ela quem acaba por influenciar o destino, a personalidade e as escolhas de quem acredita em Astrologia.
Terão essas pessoas assim tanto medo de fazer as suas próprias escolhas ou de serem livres que até preferem deixar as suas decisões nas mãos de astrólogos, cartomantes e outros pseudos?
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É o problema de sempre: o analfabetismo científico e epistemológico da sociedade em que vivemos torna possível que ignorantes como a Maya tenham acesso aos órgãos de comunicação social, simplesmente porque tem audiência.
http://osexoeacidade.com/2011/10/maya-4/
http://www.sabado.pt/Multimedia/FOTOS/-span–b-Sociedade-b—span–%281%29/Fotogaleria-%28217%29.aspx
” (…) Na manhã do dia anterior, no seu novo programa na SIC, O Dilema, Maya havia dito a uma mãe, numa consulta por telefone, em directo, que a sua filha, toxicodependente, de 37 anos, não iria chegar aos 40 anos. Quando a polémica rebentou, com uma notícia no Diário de Notícias falando em críticas dentro do próprio canal de televisão, a taróloga desmentiu, dizendo que não falou em morte.
(…) Vai ter de ser mais mercantilista. Se não formos mercantilistas… Eu também só faço os horóscopos para as revistas para ter segurança. Ninguém gosta de fazer horóscopos… Não é que os horóscopos sejam mentira, mas é muito vago.
(…) um mundo de charlatães.
(…) o segredo do seu sucesso não vem no oráculo.
(…) é a primeira vez que nos pedem uma factura. (…)”
Código Penal, Artigo 358.bº – Usurpação de funções:
Quem exercer profissão, para a qual a lei exige título ou preenchimento de certas condições, arrogando-se, expressa ou tacitamente, possuí-lo ou preenchê-las, quando o não possui ou as não preenche
É punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Não sou jurista, mas o Código Penal parece-me bastante explícito.
Ora bem, está tudo dito. 😉
Há vários “agentes” envolvidos nessa história.
Está clara a falta de responsabilidade civil e social da emissora de tv ao abrir espaço a uma pessoa leiga para dar conselhos médicos sem ter conhecimento tecnico comprovado para tanto. Antes de tudo é bom que fique claro que ela é uma leiga no assunto, e qualquer pessoa ou empresa “adulta e responsavel” sabe que já é um risco pegar pessoas capacitadas para dar conselhos de saúde por telefone ou à distãncia, sem que o entrevistado tenha acesso a prontuários e historicos medicos, saber do problema em detalhes, etc.. imagine então isso tudo chamando a responsabilidade da opinião de um leigo.
Obviamente que a aspirante à “curandeira de Quiron” também tem sua culpa no cartório, falta-lhe humildade para saber das suas limitacoes e tem ignorância da lei ao nao saber que pode ser processada judicialmente pela classe médica. Ela pode ser uma pessoa simplesmente simplória, quer ajudar, quer fazer o bem, e acha que pode, mas na verdade não pode, a não ser que prove que seja um novo avatar encarnado que ressuscita mortos e voa sem asas.
A “paciente”, coitada, tem sua culpa também, cabe à paciente a minima consciencia de saber procurar respostas nos lugares certos e com pessoas capacitadas. Ela tem consciencia de que astrologia e tarot não tem nada a ver com o problema dela? De onde ela tirou essa impressão? Por que ela aceitou isso? Falta-lhe condicoes cognitivas ou realmente sempre acreditou que essas coisas funcionam? Isso é pessoal, as crenças pessoais são um “baú de surpresas”. Vai demorar muito para que as artes divinatorias percam importancia no imaginário popular, a ciencia só não tem bastado, por enquanto, mas as pessoas precisam perceber que onde não tem ciencia, onde tem um vácuo ainda, nada mais serve. Crenças e artes divinatórias não resolvem o vácuo da ciência, mas as crenças na pré-historia eram a única fonte de esperança e de “cura”, talvez isso esteja ainda arraigado no nosso inconsciente, e por isso muitos procuram essas coisas, assim como procuram a cura na fé, em algo superior que as faça se livrar do problema de falta de saúde de forma inexplicável.
E quando uma pessoa sai de uma situação médica monitorada para buscar referencias de ação em crenças, o problema não poderia estar na forma como os médicos estão conduzindo a situação? Mesmo que o médico seja o melhor especialista, ela está confiando nele? Na capacidade dele? Ela já trocou de médico e o problema não foi resolvido? A medicina não estaria sendo eficiente? Os médicos não estariam sendo eficientes na sua forma de educar e ensinar o contexto de “desarranjo” da saúde da paciente, deixando-a sem esperanças por mera falta de informação? Não sei, estou colocando hipoteses plausiveis das possiveis situacoes de culpas dos médicos para quem sabe entender porque a paciente resolveu apelar para os astros ou cartas.
Aliás, a classe médica não deveria interpelar judicialmente a tv e a astrologa? Ficaram sabendo do caso?
Os “agentes” dessa barbaridade estão todos nominados, a astróloga não é a única irresponsável, ela agiu conforme acredita ser seu “breviario profissional”. Agora, no momento que cada um souber da parte que lhe toca, a coisa se resolve. Enquanto isso, cabe aos profissionais responsaveis, no caso, da saude, chamar a justiça e interpelar quem promove tais situacoes publicas e quem “receita” sem diploma. A hora que alguém for bem $$$$ processado judicialmente, a responsabilidade aparece. Não, não sou advogado.
Há um lapso que queria corrir no comentário anterior:
Onde se lê osteosintese (é quando se faz cirurgia) queria dizer ortopedia.
Para juntar a injuria ao disparate a Maya responde que a Ordem dos Médicos recebe muitas queixas e ela não.
Se ela não recebe queixas é algo que não está em debate, mas sim a capacidade dela de fazer diagnósticos e instaurar terapêuticas. E por várias razões ,a única maneira de aferir a precisão dela não é com evidencia anedótica e auto-elogio mas sim por avaliação duplamente cega e sistemática. Ou então fazendo o curso de medicina.
Depois está a tentar justificar uma atitude dela com erros dos outros. O facto de os médicos errarem, mais uma vez não diz nada acerca da capacidade dela de fazer diagnósticos e saber algo de osteosintese. É apenas uma maneira de tentar justificar erros com erros, algo que apesar de ser ilogico é uma distração que mascara a ausencia de uma justificação lógica.
Para informação de quem quiser o calo osseo não se vai formar onde não há fractura. Um calo osseo é o resultado de lesão e regeneração -se houver proximidade entre os topos osseo (ver mais aqui: http://www.medipedia.pt/home/home.php?module=artigoEnc&id=419)
Se por exemplo houver muito movimento entre os topos osseos, como ela propoe que haja, e estes estejam perto o suficiente, o mais provavel é formar-se uma falsa articulação que significa dor crónica. ver aqui:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pseudartrose
Em resumo, atacar os outros como defesa é quase sempre uma falácia. Ela teria sempre de mostrar primeiro que tem uma taxa de sucesso maior que a dos ortopedistas para validar esse argumento. Altura em que ele se tornaria desnecessário.
Claro que os médicos erram, são humanos. Mas basta ver o aumento da esperança média de vida e a redução da mortalidade infantil (e já agora a quantidade de dentes que temos aos 60 anos) para perceber que fazem muito mais bem que mal. A Maia, apesar de dizer que não tem queixas, é capaz de dizer publicamente uma asneira médica, dizendo que a paciente tem de se mexer e sugerindo que se não o calo osseo vai se formar noutro sitio (!!!???)
. Por esse andar, a Maya poderia trabalhar na engenharia civil, resolver a questão dos neutrinos do Cerne e distribuir dinheiro ganho no euromilhões pelos pobres.
E eu, como o Cristiano Ronaldo também falha golos, deveria ir para o Real MAdrid ganhar o que ele ganha. Ou pilotar aviões já que os pilotos também erram. Ou… Bem acho que dá para perceber que o contra-ataque não é válido como argumentação. Cria apenas uma discussão paralela sem relevancia para o caso em questão.
http://fama.sapo.pt/noticia/maya-em-guerra-com-medicos
“o Bastonário da Ordem dos Médicos veio a público condenar o comportamento “leviano, abusivo e irresponsável” da taróloga.
“Dizer a uma paciente, em direto, que está a ser mal seguida é errado, principalmente vindo de uma pessoa sem formação médica. É muito grave passar um atestado de incompetência ao médico sem conhecer o historial da paciente”, referiu José Manuel Silva.”
[…] Já no passado, outra taróloga, Maya, aconselhou outra mulher a contrariar as ordens do médico. […]
[…] [3] Sobre esta notícia, ler também a análise de Marco Santos, Maya é médica? […]