Considerem o seguinte cenário: dois planetas no mesmo sistema solar, ambos com vida, ambos com uma espécie dominante inteligente formando o que poderíamos reconhecer como civilização. Já se fizeram livros de ficção científica com premissas mais modestas.
“Imaginem pegar num telescópio e observar um mundo com vida e apenas a alguns milhões de quilómetros do nosso. Ou ter a capacidade de viajar entre esses mundos de forma regular. Não posso imaginar maior motivação para formar uma sociedade de navegadores espaciais.”
O entusiasmo do astrónomo búlgaro Dimitar Sasselov é inspirado pela descoberta, em meados de abril deste ano, de dois planetas que orbitam a Kepler-62 na zona habitável, o –62e e o –62f.
A Kepler-62 é uma estrela a 1200 anos-luz de distância, classe K, mais fria, dois terços do tamanho do nosso sol e um quinto da luminosidade. À sua volta orbitam cinco planetas, mas para esta história de demandas científicas e vizinhos cósmicos só nos interessam os dois que espevitaram a imaginação de Sasselov, –62e e –62f, corpos rochosos maiores e de maior massa que o nosso — Super-Terras.
Se estivéssemos sentados na superfície de Kepler-62f (admitindo que tem uma superfície onde nos possamos sentar e que não seríamos esmagados pelo peso da gravidade), veríamos o planeta vizinho como uma espécie de estrela da manhã.
Não é a primeira vez que nos deixamos levar pelo entusiasmo ao considerar a possibilidade de a nossa casa não ser a única habitada e haver ocupantes nos edifícios mais perto. A ideia de uma civilização em Marte capaz de construir canais artificiais, por exemplo, chegou a ser muito popular nos finais do século XIX.
Os canais marcianos não passavam de ilusão de ótica — e tendo em conta a disputa científica entre os que defendiam a sua origem artificial ou natural, foi como observar dois rivais sedentos lutando por chegar primeiro à miragem de um lago no deserto.
O padre e astrónomo italiano Pietro Angelo Secchi (1818 – 1878), grande cientista, um dos primeiros a afirmar taxativamente que o Sol era uma estrela e a propor a classificação das estrelas pelo seu tipo espectral, entre outros feitos, também foi o primeiro a desenhar ilustrações coloridas de Marte, em 1863, e a chamar «canali» às estreitas faixas que vislumbrou na superfície do planeta.
Interessado pelas estruturas regulares vistas por Secchi, o astrónomo italiano Giovanni Schiaparelli (1835 – 1910) apontou o seu novo telescópio a Marte.
«Canali» foi também o termo escolhido por Schiaparelli para descrever o que julgou ver: uma série de linhas finas que uniam áreas escuras na superfície do planeta.
Canali é um termo ambíguo, pois também pode referir-se a uma construção artificial — o Canal do Suez, por exemplo; Schiaparelli descreveu-os como meras depressões naturais através das quais a água corre das calotas de gelo para as regiões equatoriais. Engenheiros marcianos? Nem tanto:
“Não é necessário assumir que é obra de seres inteligentes e, não obstante a aparência geométrica do sistema, estamos inclinados a acreditar que se originou durante a evolução do planeta.”
Schiaparelli foi dos primeiros astrónomos a reparar que os canais mudavam de forma, tamanho e em número durante um ano marciano. Explicou então que o fenómeno devia ser provocado por inundações causadas pelo degelo das calotes polares durante a primavera.
Marte, o planeta socialista
Mas o astrónomo italiano também gostava de «especular» – designação mais erudita do velho ato de «dar à palheta» e que por vezes costuma resultar em momentos bem passados. Por mais cientificamente inócua que seja a conversa, é quase sempre divertido.
Num artigo publicado em 1895 – La vita sul pianeta Marte – Schiaparelli não colocou de parte a possibilidade de vida marciana e, cheio de imaginação, lançou algumas hipóteses dignas de uma obra de ficção científica.
As mudanças observadas nos canali podiam resultar de um complexo sistema de irrigação usado pelos marcianos para transportar água às regiões secas do equador.
Construções tão gigantescas, prosseguiu Schiaparelli, precisavam de um governo central bastante forte de modo a puderem ser construídas e monitorizadas. Conclusão? Os marcianos eram uma comunidade pacífica e socialista.
É verdade que já os antigos egípcios costumavam chamar de «O vermelho» a Marte, mas Schiaparelli deu ao vermelho marciano um significado inesperadamente diferente.
A visão de um Marte socialista reapareceu treze anos depois num romance de ficção científica do físico, filósofo e escritor russo Alexander Bogdanov (1873 — 1928).
Em A Estrela Vermelha, passada durante a Revolução Russa de 1905, um cientista-revolucionário chamado Leonid viaja até Marte para aprender o sistema socialista dos marcianos e transmitir os ensinamentos aos conterrâneos. Era uma metáfora do percurso e das ideias políticas do próprio Bogdanov, um rival de Lenine. Ainda escreveu uma prequela, Engineer Menni, publicada em 1913.
O físico e filósofo também acreditava no poder curativo das transfusões de sangue: em 1924, depois de experimentar onze transfusões em si próprio, declarou que o sangue novo amenizara o seu problema de calvície e melhorara a sua visão.
Na época não se podia analisar a qualidade do sangue nem a compatibilidade entre tipos sanguíneos diferentes, pelo que em 1928 contraiu malária e tuberculose à conta de mais uma transfusão. Bogdanov morreu antes de conseguir terminar um terceiro livro sobre as aventuras socialistas em Marte.
Olá, está alguém em casa?
As especulações de Schiaparelli publicadas em 1895 não eram novidade, pois três anos antes Camille Flammarion (1842 – 1925) escrevera o livro La planète Mars et ses conditions d’habitabilité.
Há muito tempo que aquele astrónomo francês andava fascinado por tais assuntos: em 1884, escrevera Les Tierres du ciel, «viagem astronómica para outros mundos e descrição das atuais condições de vida nos outros planetas do Sistema Solar».
As ideias de Flammarion quanto à evolução dos planetas eram quase tão peculiares como o seu cabelo: todos partilhavam as mesmas fases de desenvolvimento, diferenciando-se uns dos outros pelo tamanho.
A Lua, por exemplo, era uma Terra morta – a água evaporara, a atmosfera dissipara-se e os seus habitantes tinham desaparecido há muito tempo. Júpiter, o gigante, era um sol em colapso e uma futura Terra, pois em milhões de anos haveria de encolher até formar um núcleo rochoso e possuir as mesmas características favoráveis à vida do nosso planeta.
Marte estava a meio caminho entre a Terra e a Lua. O planeta secava, perdia água e atmosfera, mas talvez ainda não estivesse completamente morto: os canais observados por Schiaparelli mostravam-nos o último suspiro de uma civilização moribunda que tentava desviar a água dos polos e oceanos para as zonas onde as cidades tinham sido construídas:
“As condições biológicas em Marte são muito semelhantes às da Terra – existem montanhas, oceanos, continentes e calotes polares; logo, pode assumir-se que existem seres, muito semelhantes aos humanos, por descobrir.”
As ideias de Flammarion influenciaram muitos autores de ficção científica, incluindo o mais famoso de todos, Edgar Rice Burroughs, que em 1912 deu início à longa série de aventuras de John Carter em Marte, Barsoom.
As ideias do francês também impressionaram um astrónomo americano, Percival Lowell (1855 — 1916), o homem em quem imediatamente pensamos quando se revisita a história desta ilusória existência dos canais e dos nossos vizinhos à beira da extinção.
Lowell construiu um observatório com o seu próprio dinheiro (era muito rico) e, durante quinze anos, dedicou-se a observar os canais de Schiaparelli e imaginar, tal como Flammarion, obras de engenharia que serviam para trazer água dos pólos e irrigar as regiões equatoriais.
A crença de que Flammarion estava correto baseava-se nas suas próprias observações: Lowell viu os canais e chegou a classificá-los em tipos diferentes, desenhando mapas das suas posições na superfície do planeta. Ao notar claras diferenças na extensão dos canais entre observações, achou que encontrara a prova de que uma grande obra de engenharia estava em curso em Marte.
Em Outubro de 1907, um astrónomo chamado Alfred Russell Wallace (1823 – 1913) sabotou esta demanda, refutando ponto por ponto as alegações de Lowell num livro chamado Is Mars habitable? A critical examination of Professor Percival Lowell’s book.
Além de considerar Marte demasiado frio para existir água líquida à superfície, Wallace também afirmou que o desmesurado tamanho dos canais, bem como a incrível velocidade a que estavam a ser construídos, mostravam que era impossível o envolvimento de alguma inteligência. Para ele, os canais tinham uma causa natural.
Quem acertou em cheio foi o astrónomo Vincenzo Cerulli (1859 — 1927), que observou Marte entre 1894 e 1896 e concluiu que os canali de Schiaparelli não eram mais do que ilusões de ótica. Não parece que as conclusões de Cerulli tenham sido levadas a sério por Powell ou Wallace, demasiado embrenhados em desacreditar a origem natural ou artificial dos canais para prestar atenção à possibilidade de nem sequer existirem.
Mas as fotografias tiradas em meados da década de 60 do século XX pela sonda Mariner haveriam de mostrar muitos pormenores da superfície — exceto os canais em Marte. O ignorado Cerulli sempre estivera certo: ilusões provocadas pela atmosfera, pelas limitações dos telescópios da época e por um fenómeno psicológico conhecido como Pareidolia eram responsáveis pelo que os astrónomos tinham visto, não as engenharias extraterrestres.
Percival Lowell escreveu três livros sobre o assunto e acreditou no vizinho marciano até morrer, em 1916. Percival era também o nome de um dos cavaleiros da lenda do rei Artur. Tornou-se famoso pela sua participação nas buscas pelo Santo Graal. Lowell foi, de certa forma, um cavaleiro da Távola Redonda que nunca chegou a descobrir que o cálice sagrado nunca existira.
Admiráveis e oceânicos mundos novos
Mais de 100 anos depois, com os nossos ultra-sofisticados equipamentos capazes de detetar a sombra de um planeta a 1200 anos-luz de distância, eis-nos a imaginar vizinhos cósmicos outra vez.
Os dois planetas encontram-se dentro de limites a partir dos quais a água líquida pode existir à superfície. O primeiro, Kepler-62e, sessenta por cento maior do que o nosso planeta, demora 122 dias a dar uma volta completa à estrela e possui uma temperatura de equilíbrio de –3 graus Celsius; o segundo, Kepler-62f, quarenta por cento maior do que a Terra, dá a volta em 267 dias e tem uma temperatura de equilíbrio de –65 graus Celsius.
A temperatura de equilíbrio obtém-se sem ter em conta o efeito da atmosfera. Por exemplo, a Terra tem uma temperatura de equilíbrio de –18 graus Celsius, mas todos sabemos – sobretudo nos últimos dias – que a capacidade de reter o calor (o efeito de estufa da atmosfera) eleva as temperaturas a valores superiores.
Na melhor das hipóteses, o clima dos dois planetas deve dividir-se entre «está um frio do caraças» (-62f) e «está um calor que não se aguenta» (-62e).
Como não fazemos ideia sequer se possuem atmosfera, quanto mais detetar-lhe a composição, só nos podemos fiar nos valores que temos.
Talvez possamos saber muito mais a partir de 2017, ano em que a NASA planeia lançar o TESS — Transiting Exoplanet Survey Satellite, versão 2.0 do Kepler – que escolherá alvos para o James Webb Space Telescope (JWST), cujo lançamento está previsto para o ano seguinte. O JWST será capaz de estudar atmosferas de exoplanetas através de luz infravermelha.
Até lá, imaginamos. Por exemplo, eis a austro-americana Lisa Kaltenegger, astrónoma do Instituto Max Planck, a cavalgar com as rédeas de Stanislaw Lem:
“Esses planetas são diferentes de qualquer outro no nosso Sistema Solar. Têm oceanos sem fim. Poderá haver vida lá, mas uma vida baseada em tecnologia como a nossa? A vida nessas mundos aconteceria debaixo de água, sem acesso fácil a metais, eletricidade ou fogo para a metalurgia. Seja como for, tais mundos serão belos, planetas azuis circundando uma estrela laranja – e talvez a inventividade da vida para atingir a fase tecnológica nos surpreenda.”
Kaltenegger não especula a partir do nada, baseia-se em modelos computacionais feitos por investigadores do Centro Harvard-Smithsonian de Astrofísica que «sugerem» (palavra usada pelos cientistas quando não sabem, mas têm uma grande fezada) que os dois mundos estarão completamente cobertos por um oceano.
Kepler-62e, mais perto da estrela e portanto mais quente, teria mais nuvens que a Terra; o –62f, mais frio e distante do seu sol, necessitaria do efeito de estufa (e dióxido de carbono) para aguentar um oceano – se tal não acontecer, é um mundo coberto de gelo.
O astrónomo de Harvard Dimitar Sasselov, outra vez:
“Kepler-62e tem provavelmente um céu repleto de nuvens, é quente e húmido; Kepler-62f é mais frio, mas ainda assim um planeta potencialmente amigável para a vida.”
É de mim ou os ecos de Camille Flammarion e Percival Lowell acabaram de atravessar mais de uma centena de anos e são agora reverberações nas vozes destes cientistas?
Não tem problema nenhum! Especular é como saborear um copo de bom vinho tinto: desde que não se abuse, entorpecendo o raciocínio e caindo no vício, costuma até fazer muito bem à digestão. E estes dois planetas são um excelente aperitivo para acompanhar.
Fontes e leituras:
Bitaites: Meu caro vizinho Kepler-62e, como tem passado?
AstroPT: Missão Kepler Descobre 3 Super-Terras na Zona Habitável
AstroPT: Descobertos os planetas mais pequenos dentro da zona habitável
AstroPT: Conversa de café sobre alienígenas em Gliese 667Cc
AstroPT: Mais de 60.000.000.000 planetas potencialmente habitáveis na nossa galáxia?
Scientific American: The Earth-like Mars
PopSci: The Math: What Life On Kepler-62e Would Be Like
The Daily Galaxy: Two Alien Planets With ‘Endless Oceans’
M.Bennardo: Setting the record straight on the canals of Mars
6 comentários
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Interessantíssimo esse assunto. Muito me fascina essas “Terras”, com seus segredos e mistérios. Mas independente do quão parecido um exoplaneta seja com a terra, é impossível, hoje, qualquer tipo de visita por nossa parte. Talvez daqui há alguns anos conseguiremos enviar sondas para algum planeta assim. Só espero estar vivo para ver isso!
Mudando de assunto, a Lisa Kaltenegger é uma mulher surpreendentemente linda, me impressionei.
Porquê surpreendente? 😉
Tbm concordo com você, mais a imagem do planeta Kepler-62f mostra que nao é coberto de oceano!
Não existem imagens do planeta… só ilustrações artísticas 😉
Muito Bem Detalhado, Eu sou Cientista Da Univ. De São Paulo é Gostei Muito do seu blog.
tem um pequeno detalhe é que tem uns Asteroides está na rota do planeta Kepler-62f, e arcada 22 anos os Asteroides Era em Colisão como o planeta “Kepler-62f “
Gostei bastante deste texto.
Muito se especula! Não deixa de ser útil quando se pode chegar a conclusões que a Ciência comprove. O pior é quando vem lá a pseudociência com os seus conhecimentos absolutos!!!
Cumprimentos.
[…] Vénus é o planeta mais enganador do Sistema Solar, talvez até mais do que Marte e os seus falsos canais. […]
[…] (aqui), Kepler-10b, Kepler-11, Kepler-16b (Tatooine), 2MASS0103(AB)b, Kepler-20e e 20f, Kepler-22b. Kepler-62e. Kepler-62, Kepler-69. Kepler-78b (aqui). Kepler-90. Kepler-91b. KIC 12557548. KIC 8435766b. […]