Descoberta de fósseis moleculares desafia hipótese do “Mundo de ARN”

complexos_urzima_tRNA_Li_et_alModelos tridimensionais de complexos formados por urzimas e tRNA.
Crédito: Li Li, Christopher Francklyn e Charles Carter.

Antes do aparecimento da vida na Terra, os oceanos eram dominados por uma imensa variedade de moléculas. A certa altura, algumas destas moléculas especializaram-se ao ponto de se tornarem nos primeiros sistemas moleculares auto-replicativos. Os cientistas concordam que este terá sido um passo decisivo na transição entre a química pré-biótica e os processos bioquímicos que hoje observamos nos organismos vivos. No entanto, como tudo aconteceu exactamente – como essas moléculas começaram a produzir cópias de si próprias – permanece um dos mais insondáveis mistérios da ciência.

Um trabalho publicado na semana passada, na revista Journal of Biological Chemistry, vem agora propor uma nova visão de como os primeiros organismos vivos emergiram da sopa molecular primordial. Baseado em dados laboratoriais, o trabalho demonstra como um grupo de pequenos péptidos poderá ter desempenhado um papel vital no aparecimento da vida na Terra.

Nos anos 80, investigadores americanos descobriram que algumas moléculas de ácido ribonucleico (ARN) têm propriedades catalíticas. Denominadas ribozimas, estas moléculas demonstravam que o ARN poderia desempenhar duas funções fundamentais para a vida: o armazenamento de informação genética e a catálise de reacções bioquímicas. Esta descoberta foi um contributo decisivo para a hipótese do “Mundo de ARN”, que propõe as moléculas de ARN como precursores da vida, muito antes do aparecimento das proteínas e do ácido desoxirribonucleico (ADN).

Contudo, para a hipótese do “Mundo de ARN” estar correcta, os catalisadores de ARN ancestrais teriam de ser quase tão eficientes na replicação da informação genética como os actuais sistemas enzimáticos. Ora, para serem geradas aleatoriamente moléculas de ARN com este nível de sofisticação, seria necessário um período de tempo muito superior à idade do Universo. Como a idade da Terra é de cerca de 4,5 mil milhões de anos, os sistemas vivos gerados no “Mundo do ARN” nunca se reproduziriam com a rapidez e exactidão suficientes para darem origem à vasta complexidade biológica actualmente observada no nosso planeta.

Outra limitação a esta hipótese é o facto de, até hoje, não terem sido isoladas de organismos vivos ribozimas com actividade nos processos replicativos ou na aminoacilação do ARN de transferência (tRNA), a molécula responsável pelo transporte dos aminoácidos até à linha de montagem das proteínas nos ribossomas.

Para abordarem este problema, investigadores americanos da Universidade da Carolina do Norte e da Universidade de Vermont criaram modelos tridimensionais de enzimas pertencentes às duas super-famílias responsáveis pela tradução do código genético. Após analisar a sua estrutura, a equipa descobriu que todas estas enzimas têm regiões virtualmente idênticas, que podem ser extraídas para produzir pequenos fragmentos com actividade catalítica conservada. Denominados urzimas (contracção do alemão ur, que quer dizer primitivo, com a palavra enzima), estes fósseis moleculares são remanescentes das enzimas ancestrais que povoaram a Terra há milhares de milhões de anos.

“Assim que identificámos os núcleos conservados das enzimas, clonámo-los e expressámo-los”, afirmou Charles Carter, investigador da Escola de Medicina da Universidade da Carolina do Norte. “Depois quisemos ver se conseguíamos estabilizá-los e determinar se teriam alguma actividade catalítica.” Ambos os grupos de urzimas mostraram ser eficientes na aceleração das reacções de aminoacilação, reacções fundamentais na tradução do código genético.

“Os nossos resultados sugerem que existiam enzimas proteicas muito activas (…), muito antes de surgirem organismos vivos”, disse Carter. “Essas enzimas eram muito semelhantes às urzimas que produzimos.”

Esta descoberta sugere, ainda, que as urzimas evoluíram a partir de pequenos péptidos ainda mais simples. Com o tempo, estas moléculas co-evoluíram com o ARN para darem origem a formas de vida mais complexas. Neste cenário, o ARN armazenaria as instruções para a vida, enquanto que os péptidos acelerariam reacções químicas chave para a implementação dessas instruções.

Este trabalho deixa, no entanto, em aberto a questão de como se auto-replicavam estes sistemas primitivos. Para responder a esta limitação, Carter e colegas irão aplicar um procedimento semelhante para estudar as polimerases, um grupo de enzimas responsáveis pela montagem das cadeias de ARN.

Podem encontrar todos os pormenores deste trabalho aqui.

5 comentários

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  1. Interessante! voltarei sempre. Obrigado.

  2. Muito bom texto!!

    1. Obrigado, Luiz. 🙂

        • Helvis Costa on 03/12/2013 at 01:24

        Olá Sérgio, também me identifico muito com astrofísica e astro biologia por isso estou estudando biomedicina e não pretendo parar por aí, a cada dia tenho visto mais noticias empolgantes como esta que você publicou, parabéns um forte abraço.

      1. Obrigado pelo seu comentário, Helvis.

        Um grande abraço. 🙂

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