A 4 de setembro de 2008, na Galeria Voss, em Dusseldorf, Alemanha, a japonesa Mihoko Ogaki apresentou uma instalação a que chamou Milky Ways – Vias Lácteas.
As esculturas ocupavam posições centrais na sala como deuses da criação, iluminando-a e criando um imenso céu nas paredes. Ogaki chamou-lhes «Breath».
Quando a sala era iluminada, silhuetas desenhadas nas paredes representavam uma vasta e diversificada gama de emoções humanas, positivas e negativas. Neste dia criado por Ogaki, a Humanidade era parte do Universo mas não estava unida com o Universo. Era na noite que o mistério se revelava, quando as esculturas se iluminavam a partir de dentro, a partir de nós, e projetavam um céu estrelado.
As esculturas iridescentes – moldadas a partir do próprio corpo da japonesa, o que tornou o assunto ainda mais pessoal – captaram a atenção de visitantes e fotógrafos.
Chamaram a atenção por serem visualmente espetaculares e intrigantes, como o bebé cósmico de 2001: Odisseia no Espaço, mas também por incorporarem uma espécie de verdade inata que acompanha a Humanidade desde que os seus indivíduos mais curiosos tentaram desvendar o mistério dos céus: somos feitos do pó das estrelas. Somos aquelas esculturas.
Não admira portanto que uma das mais famosas frases atribuídas ao astrónomo e comunicador Carl Sagan seja a que ele proferiu no episódio 9 da sua fabulosa série de televisão Cosmos: «A Terra e todos os seres vivos são feitos da matéria das estrelas», uma alusão aos elementos químicos que existem nos corpos dos seres vivos, forjados no interior das estrelas.
Tal é a notoriedade deste grande comunicador que a alusão passou a confundir-se com a própria figura de Sagan, dando origem a inúmeros tributos na Net, como este:
Na verdade Sagan citava um livro que o próprio escrevera sete anos antes, em 1973, As Ligações Cósmicas – uma perspetiva extraterrestre:
O nosso sol é uma estrela de segunda ou terceira geração. Todo este material rochoso e metálico onde assentamos, o ferro no nosso sangue, o cálcio nos nossos dentes, o carbono nos nossos genes foram produzidos há milhares de milhões de anos no interior de uma estrela gigante vermelha. Somos feitos de matéria estelar.
Star-stuff, quase tão antigo como os telescópios (ou os deuses)
Sagan não foi a primeira pessoa a falar desta relação umbilical entre a Terra, os seus habitantes e as estrelas. Na edição de 15 de junho de 1913 do Greensboro Daily News, uma desconhecida colunista chamada Ellen Frizell Wyckoff escreveu uma crónica intitulada Star Land:
A análise espectrográfica da luz mostra do que esta é feita. Qual terá sido a surpresa dos cansados investigadores quando descobriram metais comuns da Terra ardendo no poderoso Sol!
Uma vez, uma menina chorou de alegria quando, por um breve momento, percebeu que a Terra é realmente um corpo celestial e que seja o que for que nos aconteça, vivemos de facto entre as estrelas. O Sol é feito de matéria estelar, e a Terra é feita do mesmo material.
A 29 de janeiro de 1918, Albert Durrant Watson, médico, astrónomo e poeta com uma atração especial pelos fenómenos do espiritismo, então presidente da Real Sociedade de Astronomia do Canadá, afirmou, num discurso muito apaixonado e espiritual, que «os nossos corpos são feitos de matéria estelar».
É verdade que um primeiro vislumbre detalhado do Universo é passível de desencorajar-nos perante a evidência da nossa própria insignificância.
A Astronomia (…) ajuda-nos a compreender que os nossos corpos são parte integral do grande universo físico e que através daqueles se manifestam leis e forças em consonância com as manifestações do Ser Cósmico.
Chegámos assim à conclusão de que se os nossos corpos são feitos de matéria estelar – e não há nada mais, diz o espectroscópio –, as mais elevadas qualidades do nosso ser são constituintes necessários da substância universal de que são feitos os deuses.
Somos feitos de ingredientes universais e divinos, e o estudo das estrelas dar-nos-á um conhecimento final e robusto desse facto.
Em 1929, o New York Times entrevistou o astrónomo Harlow Shapley, diretor do Observatório de Harvard, para um artigo intitulado «The Star Stuff That Is Man».
Shapley foi o primeiro cientista a fazer uma estimativa correta do tamanho da Via Láctea e da posição do nosso sol na galáxia, bem como o criador dos pressupostos teóricos que deram origem ao conceito de «zona habitável». Eis o que ele disse:
Somos feitos da mesma matéria que as estrelas, portanto quando estudamos Astronomia investigamos a nossa remota ancestralidade e o nosso lugar neste universo de matéria estelar.
Os nossos corpos consistem dos mesmos elementos químicos encontrados nas mais distantes das nebulosas e as nossas atividades são guiadas pelas mesmas regras universais.
Quando Carl Sagan associou todas as coisas vivas à matéria das estrelas, limitou-se a recapitular conclusões científicas estabelecidas praticamente desde o princípio do século XX. Isto é ainda mais evidente consultando este artigo do Quote Investigator: não só apresenta estes como outros exemplos.
Mas tendo esta profunda associação entre a nossa natureza e as estrelas tanto de científico como de religioso, é fácil ver que o problema anda na mente dos homens desde que começaram a olhar para os céus – e para além destes.
Num magnífico ensaio escrito pelo professor, escritor e poeta João de Mancelos, alude-se ao «pó das estrelas» como uma verdade científica mas, também, à verdade que escritores, poetas e filósofos tinham intuído há muito tempo.
Mesmo em 1969, no festival de Woodstock, Joni Mitchell já cantava: We are stardust. We are golden. And we’ve got to get ourselves back to the garden. (Suspeito que, no caso de Woodstock, a canção fosse mais sobre pó do que sobre estrelas).
O artigo de João de Mancelos foca-se sobretudo na poesia de Walt Whitman e de Eugénio de Andrade, mas recorda também que milhares de anos antes de qualquer astrónomo já a escola budista T’ien-T’ai afirmava que «o ser humano se liga a todas as coisas, numa relação de interdependência. Assim, o mais simples ato tem o potencial de desencadear uma série de acontecimentos, afetando o Outro e o universo.»
Uma verdade científica que pode ser tão corretamente descrita como equação ou poema ou canção, eis como se decifra um mistério da Natureza de uma forma que nos pode tocar a todos.
No cérebro ou nas entranhas, a profundidade da questão revela-se-nos mal temos oportunidade de observar um céu salpicado de estrelas – não são apenas gigantescas bolas de gás incandescente, mas pautas, páginas, promessas de vida, um céu de onde viemos e para onde os nossos átomos eventualmente poderão regressar.
São símbolos de vida, como as esculturas da japonesa Mihoko Ogak, símbolos da nossa vida e das vidas que um dia descobriremos noutros planetas.
Mas tantos foram os seres humanos a declamar às estrelas – através da Música, da Literatura ou da Matemática – que o melhor é ter em conta o aviso final do ácido Dino Segrè, escritor e jornalista italiano também conhecido pelo pseudónimo Pitigrilli:
Se se pudessem interrogar as estrelas perguntar-lhes-ia se as maçam mais os astrónomos ou os poetas.
Portanto é melhor não exagerar e acabar aqui o post, não vão as estrelas acusar os bloggers.
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