O verdadeiro peso de Gravity

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Em 1935, os irmãos Lumière apresentaram na Academia Francesa de Ciências uma nova versão de L’Arrivée d’un Train à La Ciotat, um dos primeiros filmes da história do Cinema, exibido originalmente em janeiro de 1896.

Um artigo da revista Spiegel escrito em 1994 pelo jornalista Hellmuth Karasek menciona reações «de medo, terror, mesmo pânico» nessa exibição em 1896, com algumas pessoas na audiência a fugir de um comboio que se aproximava perigosamente.

Não é um dado adquirido que o episódio tenha acontecido como o descreveu a revista Spiegel: Martin Loiperdinger, estudioso dos media e professor de História do Cinema na Universidade de Trier, desqualifica-o como um mero mito.

Talvez o que se tenha passado em 1935 tenha também contribuído para o mito de que fala Loiperdinger, pois foi nesse ano que os irmãos apresentaram na Academia de Ciências uma versão em 3D de L’Arrivée d’un Train à La Ciotat. Posso imaginar a comoção que deve ter causado e como as reações de espanto e deslumbramento devem ter divertido os irmãos.

Desde pelo menos 1900 que os Lumière procuravam o que então era conhecido como Cinema Estereoscópico: nesse ano patentearam mais uma invenção, um dispositivo chamado «Disco Estereo Octagonal» cuja função era possibilitar a exibição de filmes em 3D.

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Entre a exibição de um L’Arrivée d’un Train à La Ciotat estereoscópico e do tridimensional Gravity, de Alfonso Cuarón, passaram 78 anos.

Se isolar estes dois de tudo o que foi feito entretanto no Cinema, fico com a ideia de que os filmes não mudaram assim tanto: tal como a experiência estereoscópica dos irmãos Lumière no século passado, também aqui a intenção é pôr-nos com o rabinho apertado ao acompanhar a vertiginosa história de astronautas apanhados num catastrófico embate com detritos de satélites e deixados à deriva no Espaço, indefesos mas não vencidos.

Gravity proporciona o mesmo tipo de experiência que costumávamos ter na Feira Popular, uma viagem espetacular na maior montanha russa de todas, tão elevada como uma estação espacial, uma montanha em cujos carris invisíveis deslizam câmaras que não cessam de vaguear de um lado para o outro, colocando o espectador suspenso no Espaço em longas sequências que devem ter sido incrivelmente complicadas de se fazer.

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Na verdade não retive muito de Gravity para além dos fabulosos efeitos especiais: George Clooney faz a sua própria versão Nespresso de um Clooney astronauta, caso se tivesse decidido por uma profissão menos arriscada.

Sandra Bullock, uma excelente atriz que carrega o argumento do filme às costas (vá lá que não é muito pesado), acaba por despir o fato espacial como antes fizera Sigourney Weaver em Aliens – O Oitavo Passageiro, com os mesmos resultados agradáveis, embora aqui combata a sua própria solidão e desespero em vez de um serial-killer alienígena.

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E tal como nas histórias de amor e de vingança, o que não faltam nos filmes americanos são histórias em que o tema é a luta pela sobrevivência de um indivíduo ou grupo de indivíduos, against all odds.

É mesmo visualmente que Gravity sobressai – imagino que os irmãos Lumière teriam ficado extasiados se o pudessem ver, nem que seja pelo orgulho de testemunhar o que ambos tinham iniciado tantos anos antes.

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Como alguns cientistas reagiram a Gravity

Quando os filmes de ficção científica causam impacto (além de uma hipotética ameaça de meteoritos), não é apenas a sua arte e mestria que é escrutinada, mas também a sua Ciência.

O maior crítico da Ciência de Gravity tem sido Neil deGrasse Tyson. O astrofísico é um picuinhas quando vai ao cinema à cata de erros científicos e Gravity tem sido o tema principal de uma série de tweets através dos quais vai apontando as asneiradas sem dó nem piedade. As observações incluem, por exemplo,

Por que razão Bullock, uma médica, está de serviço no Telescópio Espacial Hubble?

O astronauta Clooney informa à médica Bullock o que acontece em termos médicos quando se é privado de oxigénio.

Quase todos os satélites orbitam a Terra de oeste para a este; no entanto, os detritos orbitam de este para oeste.

Por que razão o cabelo de Bullock, ao contrário de outras cenas em gravidade zero convincentes, não flutua livremente?

Por que razão as pessoas gostam mais de ver um filme de ficção científica com astronautas num Espaço faz-de-conta do que verdadeiros astronautas no Espaço real?

Missão Apollo 11: Buzz Aldrin a bordo do módulo Eagle, 21 de julho de 1969

Missão Apollo 11: Buzz Aldrin a bordo do módulo Eagle, 21 de julho de 1969

Nem todos os homens da Ciência ficaram assim tão dececionados. Buzz Aldrin, agora com 83 anos, o segundo homem a pisar a Lua e um dos «verdadeiros astronautas» de Tyson, escreveu uma crítica a pedido do The Hollywood Reporter e mostrou-se muito impressionado com o filme, considerando os efeitos visuais «memoráveis».

Não o impressionou tanto a vista da Terra – «demasiado perfeita, poucas nuvens, o recorte do planeta demasiado bem delineado» – nem se identificou com a «forma ligeira» com que o astronauta Clooney lida com o perigo, mas louvou o filme pelo retrato realista da dinâmica de um ambiente sem gravidade.

Phil Plait, astrónomo, blogger e divulgador científico, também apontou as diversas falhas científicas do filme. Ao contrário de Tyson, contudo, soube separar as suas experiências cinéfilas da sua formação científica. Um breve resumo:

O filme é incrível. Intenso, tenso, emocionante. Claro que todo este amor não vem sem reservas. Recomendo-o de todo o coração, mas há coisas que um übernerd picuinhas como eu é obrigado a apontar. Mas não há nada a esse nível que possa prejudicar a experiência de o ver. Eleva a fasquia no que respeita aos elementos visuais de um filme.

Tão excecional é Gravity do ponto de vista técnico que há quem defenda que o principal contributo que o filme deu ao Cinema foi a imposição definitiva da tecnologia 3D, elevando-a de simples fenómeno passageiro a recurso tão consistente como o som surround. Terá sido, então, mais importante que o insípido Avatar, de James Cameron, ou o divertido A Invenção de Hugo, de Martin Scorsese.

Este excelente artigo da Wired é revelador:

Namit Malhotra, CEO da Prime Focus World, a empresa que converteu certos elementos 2D de Gravity para 3D, louva a decisão de Cuéron de fazer do 3D «uma ferramenta completa no processo de contar uma história» e não um mero artifício para sacar mais uns dólares aos espectadores, como denunciaram muitos críticos.

Jon Landau, um dos produtores de Avatar, elogia a «integração perfeita do 3D em efeitos especiais que são, por si, dos mais marcantes alguma vez criados».

Ao contrário dos ingénuos telespectadores dos tempos dos irmãos Lumière, as pessoas agora são mais sabedoras, defende John Fragomeni, supervisor de efeitos especiais:

Se o 3D é usado como mero fogo de artifício, provoca uma reação negativa porque as pessoas sabem ver a diferença entre o que melhora, ou não, uma história.

Para Fragomeni, uma aplicação bem feita do 3D «ajuda a audiência a viver uma experiência mais profunda, íntima e pessoal».

Mas nem tudo são rosas no Espaço faz-de-conta

Fellini costumava explicar a sua afeição pelo cinema de Kubrick pelo facto de ver nos filmes do realizador de 2001: Odisseia no Espaço que o dinheiro estava ao serviço das ideias, e não o contrário, mas é precisamente esse o risco que identifica Keith Simanton, um dos editores do sítio IMDb:

A perceção da profundidade não conduz necessariamente à perceção do bom gosto ou do erro.

Gravity tem sido apresentado por muitos como um passo em frente na arte de filmar, o que deixa também muita gente desconfiada, sobretudo os que se preocupam com pormenores relevantes como a originalidade da história e a ausência de personagens estereotipados.

Um crítico, Jeffrey Overstreet, propõe uma recapitulação sarcástica dos feitos cinematográficos de filmes em que a tecnologia de ponta foi grandemente usada e, por isso, receberam mais elogios do que provavelmente mereciam:

Podemos dar vida a dinossauros? Bem, então precisamos de uma série de filmes mostrando-os a destruir tudo o que está à vista (não é para isso que os dinossauros servem?). Podemos criar um modelo fotorealista de um navio de cruzeiro? Desenhemos o Titanic e maravilhemos as pessoas com a sua espetacular destruição!

Sabem o que isso significa? Podemos começar a fazer explodir marcos históricos do nosso país, filme após filme, usando invasões extraterrestres e ataques terroristas. Podemos mostrar um tsunami a engolir Nova Iorque? Então vamos contratar uns argumentistas para arranjar um pretexto para o fazer.

George Clooney e Sandra Bullock

George Clooney e Sandra Bullock

Não admira, por isso, que este crítico reveja os méritos de Gravity com pouco entusiasmo:

Quando ocorre a crise inicial, dei por mim a pensar que as vastas possibilidades do filme seriam reduzidas a uma previsível maratona de desastres, à metódica reação em cadeia de explosões, avarias e crises, enquanto seres humanos fazem uma corrida contra o tempo para arranjar as coisas e garantir a sobrevivência.

A minha suspensão da descrença foi capturada pela gravidade de uma história pouco imaginativa, acabando por despenhar-se na sua brutal superfície.

1 comentário

2 pings

    • Miguel Montes on 23/01/2014 at 13:27
    • Responder

    – Lamento que o autor deste artigo não tenha retido muito mais que os efeitos visuais, especialmente quando por diversas vezes são aparentes as metáforas visuais do director/guionista (o tema da morte, do renascimento, da evolução da vida, etc.):
    http://io9.com/gravitys-ending-holds-a-deeper-meaning-says-alfonso-c-1442690788
    http://nbclatino.com/2013/10/04/jonas-cuaron-hopes-gravity-pulls-in-audiences-its-a-ride/
    http://en.reddit.com/r/movies/comments/1o6qwi/the_allegory_of_gravity_spoilers/

    – Lamento que apenas tenha colocado os “tweets” iniciais de Neil DeGrasse Tyson, sem colocar o texto que escreveu depois, elogiando o filme:
    https://twitter.com/neiltyson/statuses/387079136629358592
    https://www.facebook.com/notes/neil-degrasse-tyson/on-the-critique-of-science-in-film/10151673927570869

    – Finalmente, e esta não é uma crítica dirigida ao autor, mas no geral, lamento que as pessoas tenham ficado a pensar que a personagem da Sandra Bullock era médica, e que como tal não devia estar a trabalhar no Hubble. Ryan Stone é uma ENGENHEIRA médica ( http://www.imdb.com/character/ch0285607/ ), que trabalhou e investigou na área relacionada com o instrumento a ser colocado durante o filme no telescópio espacial. Depois disso, vai trabalhar para a NASA e é lá que desenvolve o protótipo. Resumindo, ela não é médica, é engenheira.

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