Este artigo é uma pequena fracção de um trabalho muito maior, relativo ao Observatório Astronómico do Vaticano, que teve na sua origem, a preocupação que visava a reforma do calendário Juliano.
1. O calendário
A preocupação concreta que fez com que no passado se estudasse as estrelas e planetas, refere-se à necessidade de criar um calendário que fosse o mais preciso possível, para que as pessoas se pudessem orientar no que diz respeito às estações do ano, época das sementeiras, das colheitas, entre outros.
Um calendário, de uma maneira geral podemos dizer que consiste em um conjunto de unidades de tempo – dias, semanas, meses, anos – organizadas com o propósito de medir e registar eventos ao longo de grandes períodos.
Um calendário conta os dias em unidades de semanas, meses e anos. O desafio de fazer um calendário, nasce do facto de que o mês lunar não tem um número exacto de dias. Do mesmo modo, o ano (civil) como o conhecemos não tem um exacto número de dias nem de meses (lunares). As diferenças, as fracções de dias e as fracções de meses, vão-se acumulando ao longo do ano e no fim é necessário acrescentar ou subtrair dias de modo a que o calendário esteja em harmonia com a sequência anual das estações .
A semana, constituída por sete dias, que provavelmente teve origem na Babilónia, e que foi precedente à história escrita, segundo uma das teorias que estuda o calendário, era um modo concreto para contar os dias que separavam os dias de feira. O mês era originariamente baseado nas fases da lua. Conhecer o período em que a lua estava cheia (e portanto iluminava o céu de noite), era particularmente importante para caçadores e feirantes. Por sua vez, o ano era um período muito importante para as sociedades agrícolas, pela importância que tinha conhecer os períodos da sementeira e da colheita .
2. O Calendário hebraico
Para os hebreus, o calendário não era simplesmente um conjunto de números que os homens tinham estabelecido, mas era baseado sobre determinados fenómenos celestes que estes atribuíam a Deus. E vemo-lo no modo como a Bíblia descreve a tarefa última do criador na criação dos corpos celestes. No livro do Génesis (1, 14-18) é dito que Deus disse: «Haja luzeiros no firmamento dos céus, para separar o dia da noite e servirem de sinais, determinando as estações, os dias e os anos; servirão também de luzeiros no firmamento dos céus, para iluminarem a Terra.» E assim aconteceu. Deus fez dois grandes luzeiros: o maior para presidir ao dia, e o menor para presidir à noite; fez também as estrelas. Deus colocou-os no firmamento dos céus para iluminarem a Terra, para presidirem ao dia e à noite, e para separarem a luz das trevas. E Deus viu que isto era bom» . Também no salmo 104, versículo 19 “A lua cumpre as várias estações” . Isso indica-nos que o calendário judaico era portanto de base lunar, atendendo ao facto de se tratar de um fenómeno celeste facilmente visível.
O tamanho real de um mês lunar, o tempo durante o qual a lua atravessa todas as suas fases (lua nova, primeira falcada, primeiro quarto ou quarto crescente, primeira giba, lua cheia, segunda giba, segundo quarto ou quarto minguante e segunda falcada ) é de vinte e nove dias e meio (29.53085). Segundo os hebreus, o ano consistia em doze meses que se alternavam com o tamanho de 29 e 30 dias. O problema é que este “ano lunar” tem apenas 354 dias e, por isso é 11 dias mais curto que o ano solar que segue as estações. Os agricultores porém precisavam de ter em mente as estações para regular as actividades que levavam a cabo, nomeadamente as sementeiras e as colheitas. Assim, em cada calendário destinado a seguir a lua e o sol (calendário lunissolar), é necessário introduzir um mês extra, intercalado a cada dois ou três anos .
No ano 432 a. C. o matemático grego Metão (Meton of Athens), observou que 19 anos solares correspondiam a 235 lunações. Tratava-se de uma diferença de um par de horas, que equivaliam a cerca de um dia no arco de 300 anos. É possível portanto coordenar os calendários lunares e solares inserindo sete meses intercalares neste período de 19 anos. Este calendário era bastante acessível, mas os hebreus não o conheciam, e à falta de uma regra precisa, era bastante complicado inserir um mês extra intercalado. Com um simples gnómon, qualquer astrónomo poderia facilmente estabelecer a posição do sol, observando a mudança do cumprimento da sombra do sol, projectada por um pau colocado na vertical ou por um obelisco. No entanto o Sinédrio, a assembleia dos anciãos que regulava a vida dos hebreus, não era particularmente sistemático no cálculo do progresso das estações. Era portanto difícil estabelecer com certeza a primeira lua (ou mês) do ano e os meses intercalados eram inseridos todas as vezes que se retinha necessário. Preferiam assim assumir acontecimentos importantes que decorriam ao longo do ano, ao invés de começar a contar desde o início do ano.
O ano começava sempre com o primeiro dia do mês lunar. Normalmente, o primeiro mês do ano coincidia com o início da primavera. O mês lunar começava sempre com a lua nova. O dia da lua nova era uma festa que contemplava o rito de alguns sacrifícios junto do templo (Nm 28, 11.15: «No primeiro dia dos meses, oferecereis um holocausto em honra do Senhor […] Este será o holocausto do começo do mês para cada mês do ano»).
Não foi sempre fácil fixar o início do mês. A juntar-se ao mau tempo, quando começa o mês lunar, na lua nova, o sol encontra-se em conjunção com a lua, o que impossibilita a visão da mesma, e só se sabe que foi lua nova, no dia seguinte, ao ver a lua em quarto crescente, baixa no horizonte. Os próprios muçulmanos, ainda hoje, devem esperar a primeira lua crescente da lua nova para regular o calendário religioso e assim usam a observação directa para estabelecer os inícios do mês e do ano.
Para determinar a data da Páscoa, os hebreus seguiam a lei mosaica (de Moisés) estabelecida no Êxodo (12, 1-8), Números (28, 16) e Levítico (23, 5): «No décimo quarto dia do primeiro mês, ao crepúsculo, é a Páscoa do Senhor ». Assim, a décima quarta noite do primeiro mês equivale à primeira lua cheia do ano, porque a lua cheia acontece sempre catorze dias depois da lua nova. Note-se que com esta definição a festa da Páscoa não era para eles móvel, mas sempre fixa no mesmo dia, do mesmo mês de cada ano. A escolha de qual mês fosse o primeiro do ano dizia respeito ao Sinédrio. Era ele a decidir da utilidade ou não de acrescentar um mês num dado ano.
Depois da destruição de Jerusalém no ano 70 d. C. e a consequente diáspora do povo hebraico, deixou de ser possível manter este sistema. Deixara de existir a autoridade de um templo que anunciasse o início dos meses e dos anos. Assim começou a usar-se o ciclo de Metão de 19 anos, que já não era baseado na observação directa da lua. Assim, toda a comunidade hebraica na diáspora poderia celebrar a Páscoa no mesmo dia.
3. O Calendário Cristão
No início, os primeiros cristãos seguiram os hebreus no cálculo do dia de Páscoa, mas bem cedo as suas estradas se separaram, atrasando a celebração da Páscoa para o dia imediatamente a seguir ao Sábado – Domingo. Esta festa tinha também um significado diferente para os cristãos: não mais a libertação da escravidão do Egipto, mas a promessa da Ressurreição (que teve lugar num Domingo) e a libertação do pecado.
Como para os hebreus, as várias igrejas cristãs eram longe umas das outras e a comunicação não era fácil. Assim as igrejas tiveram que encontrar o modo de estabelecer a data da celebração da Páscoa de maneira completamente autónoma. Esta decisão comprometia a unidade da igreja Cristã, um problema que foi bem cedo afrontado desde o concílio de Niceia que teve lugar no ano 325 d. C..
Já neste período, o calendário de Júlio César estava em uso em todo o império romano (Calendário de Júlio César também dito Juliano – O ano juliano dividia-se em 12 meses de 30 ou 31 dias. Começava sempre no mês do equinócio da primavera. Março era o primeiro dos meses, do deus da guerra, Marte. Abril, virá de aperire, abrir, relativo ao “despertar” das flores na primavera boreal. Maio, em homenagem às deusas Maia e Flora, reponsáveis pelo crescimento das flores. Junho, em homenagem à deusa Juno. Julho, o mês inicialmente chamado quintilius, por ser o quinto, passou depois a ter o nome de Julho em homenagem a Júlio César, que dá também nome ao calendário. Agosto, sextilis, em honra ao imperador César Augusto. Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro advêm dos originais latinos, assim: septem, octo, novem e decem. Janeiro era o décimo primeiro mês, em honra de Jano, o porteiro celestial, e Fevereiro advém de februmm que significa purificar pois era o mês em que se fazia um ritual de purificação romano).
Não se questionava no calendário a necessidade de inserir ou não meses lunares uma vez que estes foram substituídos por meses de 30 ou 31 dias. A vantagem deste sistema era a harmonia que havia entre o calendário e as estações do ano e assim, o movimento da terra à volta do sol (translação). Seguindo a interpretação feita dos textos vetero-testamentários, o concílio de Niceia fixou a data da Páscoa para o primeiro Domingo, depois da primeira lua cheia, a seguir ao equinócio da primavera. Se a lua cheia ocorresse no Domingo, pois a festa da Páscoa seria no Domingo seguinte, para que se evitassem confusões entre a Páscoa hebraica e a Cristã. Com esta definição o calendário deixava de depender de uma autoridade que anunciasse, cada ano, de maneira solene, a data da Páscoa, com as consequentes arbitrariedades e incertezas. Cada igreja, por mais isolada que estivesse, podia assim calcular com precisão quando poderia celebrar a Páscoa. Bastava procurar o primeiro Domingo, depois da primeira lua cheia a seguir ao equinócio de primavera. A lua de Páscoa – lua cheia – era assim, sempre, o dia catorze do mês lunar. A lua nova pascal ocorria entre o 8 de Março e o 5 de Abril, e assim a lua cheia, catorze dias depois, entre 21 de Março e 18 de Abril. Atendendo à possibilidade que os dias 21 de Março ou 18 de Abril fossem Domingo, as datas da Páscoa, iam, e vão todavia, do dia 22 de Março ao 25 de Abril – sendo que o 25 de Abril seria a data da Páscoa sempre que o primeiro Domingo após a primeira lua cheia de primavera acontecesse a 18 de Abril como previamente explicado.
4. O Calendário Gregoriano
Os padres do concílio de Niceia (325 d. C.) aperceberam-se certamente que o calendário Juliano não era perfeito. A duração do ano solar era ligeiramente maior que o “tamanho” efectivo do ano, o que levantaria problemas em pouco tempo, uma vez que estes pequenos desfasamentos se iam acumulando. Este “defeito” introduzia um erro de cerca de um dia a cada 133 anos, e bem cedo se levantaram vozes pedindo uma reforma do calendário. No ano 1500, já a soma dos vários erros ia nos 10 dias, demasiado uma vez que o calendário se quereria o mais preciso possível. Era necessário adoptar um valor do ano que fosse o mais aproximado possível ao seu tamanho efectivo. O tamanho dos anos, estipulado nos tempos de Júlio César como tendo 365.25 dias não era suficientemente preciso, e mesmo com os anos bissextos a cada quatro anos o problema não estava resolvido porque mesmo assim havia um erro de um dia a cada 133 anos .
Os concílios da igreja, nomeadamente o de Constança (1414-1418) e Trento (1545-1563), pediram o empenho dos Papas para que corrigissem o calendário. O atraso na correcção não se deveu à negligência dos Papas, mas antes à falta de uma solução priva de ambiguidades e que fosse ao mesmo tempo simples e válida, em sintonia com quanto havia sido determinado pelo concílio de Niceia.
É elucidativa a preocupação expressa pela igreja, em particular nas palavras do Papa Leão XIII no exórdio à carta de motu próprio Ut Mysticam :
«A empurrar os pastores da igreja a procurar o progresso desta ciência e a favorecer os cultores, foi além do mais a possibilidade, que apenas ela oferecia, de estabelecer com certeza em quais dias se devia celebrar as principais solenidades religiosas do mistério cristão. E assim os padres tridentinos, bem sabendo que a reforma do calendário feita por Júlio César não tinha sido perfeita e por isso o cômputo do tempo era alterado, pediram instantemente ao pontífice romano para que, depois de ter consultado expertos na matéria, preparasse uma nova e mais perfeita reforma do calendário.»
A solução apareceu por Pietro Pilati, num tratado publicado em Verona em 1560 que resolvia a questão dos dias “a mais” que surgiam a cada 133 anos. Pois 133 vezes 3 dá 399, ou seja, praticamente 400. E, por isso, a solução passaria, e passa, por subtrair três dias a cada 400 anos: sugeria manter o ano regular de 365, os anos bissextos a cada quatro anos, excepto para os anos que acabavam com dois zeros, a menos que fossem múltiplos de quatrocentos. E este foi apenas o primeiro passo em direcção à reforma do calendário.
Outras mudanças foram operadas de modo a que o calendário fosse o mais preciso possível. Em 1577 o novo calendário com as novas regras foi enviado a todas as autoridades civis da Europa, nomeadamente às academias e universidades. Depois de verificadas as respostas, a comissão para o calendário preparou a bula Papal Inter Gravissimas, que em 1582 decretou a adopção do novo calendário.(Devido ao desfasamento que se foi acumulando no calendário, (dez dias no total) no mês de Outubro de 1582, passou-se do dia 4 de Outubro para o dia 15. Assim o equinócio no calendário, correspondia de facto, e pela primeira vez em séculos, com o equinócio de 21 de Março, o tido em conta, desde Niceia, para a marcação do dia de Páscoa.)
Este novo calendário, bem mais preciso, não se tratou tanto de uma reforma, mas sim de uma correcção. Para ela contribuiu como nenhum outro o padre Cristóvão Clávio (Jesuíta de origem alemã, encarregado pelo Papa Gregório XIII de orientar os trabalhos que viriam a culminar com o estabelecimento das novas regras do calendário Juliano reformado, que ficou com o nome do seu impulsionador, Gregório. O nome Clavius foi latinizado sendo que originariamente o seu nome é Christoph Clau. O seu nome, de tão proeminente e ilustre que foi para as ciências e para a astronomia, tem uma cratera homónima, na lua: Clavius. Com ele, mais 31 Jesuítas partilham essa honra, e há portanto outras tantas crateras com nomes de jesuítas, que partilham assim lugares com nomes proeminentíssimos como Tycho Brahe, Copernicus, Galileu, Ptolomeu, etc.), professor de matemática no colégio Romano, conhecido pelas suas publicações de Geometria, Aritmética e Astronomia, foi encarregue pelo Papa Gregório XIII de descrever e defender o novo calendário .
O novo calendário ou o antigo calendário, agora reformado, foi aceite por todos os países católicos de então, com naturais resistências políticas e religiosas nos países protestantes. Assim, só no início do século XVIII a reforma foi aceite por toda a Europa com excepção dos cristãos ortodoxos. Apesar da precisão dos cálculos, haverá o desfasamento de um dia cerca de 3000 anos depois de aplicada a reforma. Por isso mesmo, já se fala na reforma da reforma, ou seja, se o calendário gregoriano mais não é que o calendário juliano reformado, fala-se já de uma reforma do calendário gregoriano, ainda que estejamos a mais de dois milénios da necessidade de alterar seja o que for para que o ano sideral, coincida com o ano civil .
Sendo a festa da Páscoa central no âmbito do calendário litúrgico cristão, todas as festas móveis são associadas à Páscoa, assim:
Domingo de Carnaval (ou Domingo gordo): 7º domingo anterior ou 49 dias antes;
Terça-Feira de Carnaval: 47 dias antes da Páscoa.
Quarta-Feira de Cinzas: 46 dias antes da Páscoa.
Domingo de Ramos: 1º domingo anterior ou 7 dias antes da Páscoa.
Sexta-Feira da Paixão: 2 dias antes da Páscoa.
Domingo do Espírito Santo: 7º domingo posterior ou 49 dias depois da Páscoa.
Santíssima Trindade: 8º domingo posterior ou 56 dias depois da Páscoa.
Corpus Christi (Corpo de Cristo): 60 dias depois da Páscoa, tradicionalmente, e até 2018 por causa da Troika, no domingo sucessivo a essa Quinta-feira. Se continuará depois a ser na quinta-feira ou no domingo sucessivo (e portanto 63 dias depois da Páscoa), terá que ser discutido pelo executivo então em Funções, nunciatura apostólica e conferência episcopal.
Aquando da aprovação da constituição conciliar sobre a sagrada liturgia Sacrossanctum Concilium em Dezembro de 1963, no apênice, ficou em aberto o estabelecimento de uma data fixa para a Páscoa, e portanto um calendário fixo onde as festas ligadas à Páscoa e a própria celebração da Páscoa fossem em datas fixas, mas nada se determinou desde então.
Espero que tenhais ficado mais esclarecidos sobre os porquês de não se celebrar sempre no mesmo dia a festa da Páscoa, ao contrário do que acontece com as demais festas como o Natal, Todos os Santos, Fieis defuntos, entre outros.
Para saber mais:
Consolmagno, Guy (2009), “L’Infinitamente Grande, L’Astronomia e il Vaticano”, Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana.
Máximo Ferreira e Guilherme de Almeida, (2004), “Introdução à Astronomia e às observações astronómicas”, Lisboa: Plátano Editora.
Maffeo, Sabino (2001), “La Specola Vaticana – Nove Papi Una Missione”, Città del Vaticano: Pubblicazioni Della Specola Vaticana.
Carta de motu próprio Ut Mysticam a propósito da refundação e ampliação do observatório do Vaticano de Leão XIII de 14 de Março de 1891, XIV do pontificado.
Casanovas, Juan S.J., “Determinación de la Pascua”, Rivista Liturgica, 2001.
Constituição conciliar Sacrossanctum Concilium sobre a sagrada Liturgia, (1963).
6 comentários
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Simplesmente adorei este artigo! Embora eu já conhecesse genericamente a história do nosso calendário, isto veio acrescentar vários pormenores interessantes de pessoas e datas que me faltavam conhecer. Obrigado e boa continuação.
Luís
Author
Não tem nada que agradecer. Ainda bem que gostou. Procurei ser exaustivo. Cumprimentos.
Muito interessante!
Author
Obrigado Carlos. Abraço
Uma verdadeira aula de História, jovem Cristóvão.
Grazie.
Author
Prego carissimo Cavalcanti 🙂
Abraço
[…] Foi no concílio de Niceia, realizado no ano 325, que o Imperador Constantino estipulou esta regra (leiam aqui, aqui, aqui, aqui). […]