Como disse na primeira parte, a natureza na sua evolução teve que aprender a “viver” com o ruído e, claro, de um ponto de vista evolucionista, é natural que as “mutações que dessem origem a organismos” (é possível e provável que tal selecção tenha acontecido a um nível mais elementar) que soubessem “viver” melhor com o ruído, seriam aquelas que seriam “escolhidas”. A questão é então: como é que a natureza usa o ruído para seu próprio proveito?
Não querendo entrar em demasiados pormenores técnicos, observem a figura 1:
Figura 1: Representação de ressonância estocástica (limiar). A tracejado tem-se um “limiar”, a partir do qual um dado sistema consegue reconhecer sinais. A negro, por baixo, na forma de uma onda, tem-se um sinal sub-limiar. A este sinal é adicionado ruído (a cinza). Em cima está representado o que o sistema reconhece, isto é, as vezes em que o ruído mais o sinal atravessam o limiar, produzem uma risca em cima [1].
Na legenda digo que é a representação de ressonância estocástica limiar, pois este fenómeno também se pode verificar sem a existência de um limiar. Para que possam compreender melhor a imagem, vou dar um exemplo. Imaginem que o tal sinal ondulado a negro é um som que varia em intensidade (de tal modo que a amplitude que se observa no sinal da imagem é a intensidade, a variar ao longo do tempo). O vosso ouvido é o sistema em causa, o qual só consegue captar sons com um certo mínimo de intensidade – sons com intensidade inferior a esse valor mínimo (limiar, linha a tracejado) não são por vós ouvidos. Isto significa que a música não é por vós percepcionada, se estiver sem aquela parte cinza (ruído), pois a música (linha negra) está sempre abaixo do vosso limiar mínimo de intensidade para ouvir (linha a tracejado). Ao adicionar-se ruído (intensidade variável e aleatória) ao sinal, verifica-se que o sinal composto pelo som+ruído é modulado pelo sinal (isto é, tem a forma do som) e além disso consegue atravessar por vezes o limiar, quando a amplitude do som era máxima. Assim o vosso ouvido consegue reconhecer as diferenças de intensidade no som, o que só foi possível por causa da existência de ruído. Apesar de não ser “informação completa” sobre o sinal, é melhor que “nada”. Permitam-me ainda que acrescente algumas considerações que vos devem parecer óbvias, se compreenderam bem o que disse anteriormente: o ruído não pode ter uma intensidade qualquer, pois como podem pensar ao olhar para a Figura 1, se o ruído fosse muito reduzido, o limiar não era “atravessado”, pelo que o sinal não era reconhecido; por outro lado, se o ruído fosse muito forte, faria com que se perdesse a tal “modulação”, e o que seria reconhecido era meramente ruído.
Passo agora a expor um exemplo mais prático, no sistema sensorial visual humano (e que à partida ocorre na visão de qualquer animal):
Figura 2: Imagem do Big Ben com diferentes níveis de ruído: na do lado esquerdo o ruído é nulo (ou seja, considerem que é esta imagem que está representada em todas as fotos, mas com ruído adicionado no caso das outras), na do meio têm-se um nível óptimo de ruído para o qual a percepção é significativamente melhorada, e na do lado direito o ruído já está em excesso, sendo mais difícil reconhecer o monumento [2].
As imagens representadas estão numa escala de cinza (256), isto é, cada pixel da imagem pode tomar um valor entre zero (branco) e 255 (preto) (valores intermédios correspondem a diferentes intensidades de cinzento, indo do muito claro, para o muito escuro, à medida que o número aumenta). O ruído é basicamente um número aleatório entre zero e 255. Neste caso o ruído tem um valor médio (pois segue uma distribuição gaussiana, mas não vou explicar aqui o que isso significa), pelo que maior nível de ruído, significa um valor médio maior, ou seja, mais próximo do 255 (preto). Como podem observar, a imagem do meio é a que se percepciona melhor para um dado valor de ruído. Se ficaram confusos como é possível que ruído adicionado à primeira imagem tenha melhorado a vossa percepção, só vos posso dizer: a natureza funciona assim, em particular os vossos olhos, neste caso.
Este fenómeno já foi observado em muitos sistemas de percepção sensorial, um dos primeiros, por exemplo, foi nos lagostins, no seu sistema para evitar predadores. Do “outro lado” da batalha pela vida, observou-se o mesmo fenómeno em tubarões, no seu sistema de reconhecimento de presas (nesse caso tem mais a ver com um sistema que reconhece o movimento de outros animais através da “ondulação” que eles produzem na água, “apesar” da água, como podem deduzir, não ser um sistema “estático”, onde essas ondulações se possam propagar por longas distâncias sem sofrerem atenuação e interferências, ou seja, ruído).
Embora seja só uma assumpção, pode-se afirmar que a ressonância estocástica deverá ser o fenómeno de eleição da natureza a ser aplicado no processamento de informação. Se se lembram do meu artigo sobre o Cérebro, este não é mais que um “aglomerado” de células especialistas no processamento de informação. Sendo assim, não é de admirar que este fenómeno já tenha sido observado em redes neuronais. Muitos cientistas estão convencidos (e eu também) que este fenómeno deverá ter um papel preponderante na dinâmica neuronal – qual? Ainda não se sabe bem, para lá do óbvio, de servir para o cérebro usar o ruído neuronal para seu melhor funcionamento. O que não se sabe é qual será o papel no funcionamento “macroscópico” do cérebro (memória, aprendizagem, pensamento, etc.), já que a nível microscópico o cérebro deverá ser semelhante a um enorme processador de sinais (visto que os neurónios comunicam entre si através de sinais electroquímicos).
Para concluir, acrescento ainda que não existem aplicações tecnológicas que usem a ressonância estocástica, mas é possível que tal venha a mudar num futuro próximo. Para já o fenómeno ainda só é bem conhecido no mundo da biologia, é preciso que chegue à engenharia (ainda que já haja demonstrações experimentais do fenómeno em circuitos eléctricos e noutros sistemas feitos pelo homem, no entanto, note-se que demonstração experimental é diferente de aplicação, claro). Certamente que os físicos farão a ponte “um dia destes”.
Figura 3: “Diga-nos em termos para leigos, o que significa a sua descoberta.” – “Certamente. K- 4n^3…” Embora este cartoon apenas ilustre a dificuldade que é passar a ciência nova ao público em geral, na verdade, mesmo entre cientistas, a dificuldade existe, basta claro, que sejam de áreas diferentes. Cientistas de áreas diferentes usam por vezes linguagens técnicas diferentes para se referirem a um mesmo fenómeno.
_________________________________________
[1] Moss, F. et al., Clin. Neurophysiol. 115, 267-281 (2004).
[2] Simonotto, E. et al., Phys. Rev. Lett. 78, 1186-9 (1997).
Últimos comentários