Crónica primeiramente publicada em diversos jornais regionais portugueses.
Vivemos numa sociedade científica e tecnológica. Por isso, o conhecimento científico deve estar acessível a todos para garantir uma melhor cidadania em democracia. De facto, o convívio com o pensamento científico desenvolve uma atitude crítica, uma opinião própria mais esclarecida e fundada na verdade dos factos.
A ciência permite aceder a um melhor conhecimento do mundo em que vivemos, permite erradicar as superstições, os obscurantismos e as crendices. Estas últimas sempre foram usadas por charlatões para enganar falaciosamente os outros, num aproveitamento vigarista da ignorância.
Os meios de comunicação social são veículos muito importantes para a comunicação do conhecimento científico. São uma ponte fundamental entre os cientistas e o público em geral. Contudo, verifica-se que o espaço por eles dedicado a assuntos científicos e tecnológicos é muito insuficiente tendo em conta o papel que a ciência e a tecnologia ocupam no nosso dia-a-dia.
Um caso melhor estudado é o da televisão. Segundo o relatório “Ciência no Ecrã”, realizado pela Entidade Reguladora da Comunicação Social e pelo Instituto Gulbenkian da Ciência, apenas 0,8% do tempo dos telejornais em horário nobre é dedicado à ciência, sendo que a duração média das peças de ciência no telejornal da RTP, por exemplo, é de cerca de três minutos.
Recorde-se que a televisão pública é financiada por todos os consumidores de electricidade em Portugal (através da contribuição audiovisual), incluindo os cegos e os surdos, para além das transferências do Orçamento de Estado, pelo que devemos ter, no mínimo, uma atitude de exigência de qualidade e seriedade no serviço público prestado.
Acontece que a televisão pública decidiu recentemente incluir no Telejornal das oito, não uma rúbrica de ciência, mas um espaço relativamente destacado para divulgar crendices e pseudociências (ou seja, actividades que, apesar de aludirem a uma pretensa base científica, de ciência não têm nada).
Em cinco rúbricas emitidas a televisão pública gastou 34 minutos e 39 segundos do Telejornal a fazer publicidade enganosa a produtos e serviços milagrosos. Como bem sintetizou o comunicador de ciência David Marçal, o Telejornal da RTP deu tempo de antena a: «um especialista em “medicina popular” que afirma fazer diagnósticos médicos medindo, aos palmos, a roupa dos pacientes; a um “endireita” que diz ter um “dom” que “herdou do pai”, que trata “males dos ossos e dos nervos de uma forma que não tem explicação”, mas que terá demonstrado, com um galo, a validade do seu tratamento em tribunal; a uma cartomante que diz acertar em 90% das vezes; a uma fitoterapeuta que afirma fazer diagnósticos de doenças graves através da leitura da íris, e que diz tratar o cancro de uma paciente com uma raiz que “tem a forma do corpo humano” e conclui dizendo que “a quântica pode determinar a data da morte do ser humano”; a um médium que afirma “incorporar” os espíritos “de quem partiu, geralmente santos” para curar diversos males».
Estas rúbricas, que a RTP apresenta com o título enganoso “acreditar” (nada do que é apresentado é credível!), são autênticas publicidades enganosas a actividades nada verosímeis, para além do que são apresentadas sem qualquer contraditório. Num serviço de natureza jornalística a televisão pública dá tempo de antena a um conjunto de aldrabices. Isto não é serviço público. Serviço público seria contribuir para desmistificar aquelas crenças.
Como comunicador de ciência, o mínimo que se me impõe é o de avisar o leitor para esta situação escandalosa. Não se deixe enganar e exija seriedade e profissionalismo jornalístico na televisão pública.
António Piedade
2 comentários
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Infelizmente as televisões, incluindo as públicas, orientam a sua programação em função dos seus telespectadores e o facto é que em Portugal há muito pouca cultura científica e muita ignorância o que leva as pessoas a acreditarem em tudo o que é charlatice e crendice.
Não nos podemos esquecer que em muitas regiões da país, a escolaridade ainda é muito baixa, sobretudo na faixa etária acima dos 40 ou menos.
É de facto escandaloso a transmissão desses programas por parte da TV pública que é paga por todos nós.
Mas impressionante é o número de pessoas que se deixam enganar por essas crenças absurdas. Ainda há dias conversando com uma pessoa amiga, com alguma cultura, sobre os “benefícios da transmissão de energia através das mãos” eu disse que não acreditava mas, em tom de brincadeira, acrescentei “até gostava de experimentar”. Resposta dela “em ti não fazia efeito porque não acreditas”
O ensino e a cultura no nosso País andam muito abandonados.
Cumprimentos.
[…] uma rubrica no telejornal onde apoiaram as vigarices para enganar os portugueses (aqui, aqui e aqui), a RTP agora promove as conspirações tolas sobre extraterrestres (podem ver aqui, a partir dos […]