O pensamento científico utiliza algumas ferramentas, como a Navalha de Ockham, que nos permitem dizer que o resultado desse pensamento científico é probabilístico. Poucas pessoas entendem isto adequadamente, apesar de o utilizarem, inconscientemente, todos os dias e sempre com grande sucesso.
É muito importante que compreendamos esta caraterística da ciência, até porque devemos refletir sobre o meio social no qual essa ciência está inserida. Nestes casos, é preciso saber distinguir as conclusões cientificas que poderíamos tirar numa situação particular das conclusões que se baseiam nas nossas interpretações daquilo que conhecemos agora (e não nas condições que poderiam existir na altura e às quais não temos acesso). Dizendo de outra forma, quando não temos todos os dados históricos daquilo que se passava, podemos cair em explicações racionais para o dia de hoje, mas que não serão as mais corretas no ambiente em que os fenômenos aconteceram.
Na biologia evolutiva, devemos ter presente que o facto de uma hipótese explicar a ocorrência de uma estrutura no presente não necessariamente explica o surgimento daquela estrutura. Estruturas e funções mudam o tempo todo.
Por exemplo, pensemos nas penas das aves. Com exceção das aves que não voam (e todas as aves que não voam vêm de ancestrais que voavam), as penas têm uma clara função, que é de facilitar o vôo. Qualquer pessoa poderia pensar que as penas, portanto, surgiram evolutivamente porque facilitavam o vôo. Mas as penas surgiram por causa de outra função: termorregulação. Muitos dinossauros, não só as aves (aves são dinossauros), tinham penas, inclusive o T. rex. Daí a pessoa imagina “ok, as penas surgiram evolutivamente com a função de termorregular”, e ele estará novamente errado. Antes disso, as penas possuíam função de exibição sexual.
Assim, é preciso cuidado quando em assuntos científicos pensamos numa vertente de área social (como a histórica), porque podemos pensar de forma racional/científica e mesmo assim cairmos em falácias (confundindo correlação e causalidade).
Vejamos dois exemplos populares:
Carl Gustav Jung teceu uma excelente análise do fenômeno OVNI em seu livro “Um mito moderno sobre coisas vistas no céu”. Lá, Jung analisa esse fenômeno, típico do início do século XX, em seus aspectos simbólicos: ele está interessado em entender o que querem dizer os símbolos repetidamente trazidos pelos envolvidos nesses fenômenos. Uma abordagem diferente nos traz um outro Carl, Carl Sagan, em seu “O Mundo Assombrado pelos Demônios: a ciência vista como uma vela na escuridão”. Sagan defende a ideia de que a natureza básica do fenômeno OVNI, ou seja, as alterações neurológicas e sensoriais que eventualmente ocorrem nos seres humanos, são eventos comuns, e que em diferentes épocas suscitavam diferentes explicações, de acordo com as particularidades psicológicas do momento em questão. Assim, esses fenômenos mentais, durante a idade média, eram associados a criaturas sobrenaturais, monstros e demônios, típicos do imaginário daquela sociedade; no ocidente do início do século XX, os mesmos fenômenos mentais estavam agora associados a outras criaturas típicas daquela época: alienígenas e naves espaciais. O que Carl Sagan nos alerta, não explicitamente, é que as explicações para um mesmo fenômeno podem variar de época a época, a sabor das zeitgeists.
Os dois Carls, Jung e Sagan, trabalham o mesmo fenômeno com problemáticas completamente distintas e interesses bem diferentes. Ambos, porém, se preocupam em explicar um fenômeno social relativamente comum, trazendo à tona elaborações e evidências que podem dar conta dessa interessante questão, digamos, antropológica. As explicações que ambos tecem fazem sentido, e podem ser certamente aplicadas para tentar se explicar e se compreender o fenômeno OVNI. Contudo, saber se tais explicações são corretas ou não — em outras palavras, saber se tais hipóteses podem ganhar o status de teoria, é algo um pouco mais complicado. Em áreas do saber como antropologia, psicologia, sociologia, arqueologia e outras, o “teste” de hipóteses e a aceitação de teorias não é tão simples assim. Explicações bem construídas podem ser tentadoras, elucidando e esclarecendo fatos com uma precisão impressionante, de forma que chegamos até a dizer “sim, é claro! É isso mesmo!”… Mas, nem por isso precisam estar necessariamente corretas. O exemplo que trabalharei a seguir é bastante ilustrativo.
Vampiros são criaturas comuns na mitologia literária atual. Apesar de muitas criaturas folclóricas das civilizações da idade antiga terem certas características dos vampiros, esse mito, tal como o conhecemos hoje em dia, vem do início do século XVIII, quando certas tradições orais dos Bálcãs passaram a ser escritas. A clássica imagem do vampiro (como uma criatura morta-viva, que necessita se alimentar de sangue, que tem aversão à luz do dia, ao alho e à cruz, com uma aparência desfigurada e cuja condição é contagiosa) foi construída ao longo do século XIX, culminando no “Drácula”, de 1897.
Histórias de vampiros, componentes do folclore e da mitologia dos Bálcãs, levantam uma série de questionamentos e curiosidades: como essas histórias surgiram? Há algum fundo de verdade, algum fenômeno natural conhecido, que possa ter se transformado e se metamorfoseado na atual tradição dos vampiros?
Há várias tentativas nesse sentido, desde explicações puramente psicológicas até hipóteses de patologias (como a catalepsia). Entre essas últimas, a que mais se destaca é a das porfirias.
Porfirias são um conjunto de doenças genéticas (apesar de que, em certas condições, como no comprometimento hepático, um indivíduo geneticamente normal possa desenvolver os sinais e sintomas) em que o organismo é incapaz, pela ausência de diferentes enzimas, de sintetizar o grupamento heme da molécula de hemoglobina. Os precursores do grupamento heme, denominados de porfirinas, acumulam-se no sangue, levando a uma série de sinais e sintomas. Os principais tipos de porfiria são a porfiria aguda intermitente, a porfiria congênita eritropoiética, a protoporfiria eritropoiética, e a porfiria cutânea tarda. A página sobre porfiria do MedlinePlus é bastante completa, para quem queira se aprofundar.
O bioquímico David Dolphin, uma das maiores autoridades em porfirinas, foi um dos primeiros a propor, em 1985, uma relação entre esse grupo de patologias e os mitos balcânicos de vampiros (antes dele, um artigo de 1963 propôs a relação entre as porfirias e os mitos de lobisomem, uma vez que essas patologias promovem um certo hirsutismo). Essa relação salta aos olhos quando se estuda os sinais clássicos das porfirias:
– A luz promove reações nas porfirinas circulantes pela pele, provocando fotodermatite, com lesões e desfigurações sérias. Assim, os pacientes evitam a luz.
– As lesões podem levar à necrose das gengivas, tornando os dentes proeminentes.
– O alho contém dialil-dissulfeto, componente que agrava bastante os sintomas das porfirias.
– Há crescimento de pêlos pelo rosto, que assume uma aparência cadavérica.
– Os sinais podem ser melhorados com injeções de heme. Assim, o consumo de sangue aliviaria bastante os sinais.
– Alelos mutantes de certas porfirias são particularmente comuns nos Bálcãs.
Todas essas informações são bastante interessantes, e parecem levar a uma surpreendentemente clara relação entre as porfirias e a origem dos mitos de vampiros. Porém, há algumas questões a serem discutidas.
Em primeiro lugar, temos muitos pesquisadores que discordam da veracidade desta relação. Segundo esses, as dermatites são bastante comuns nas porfirias, e de fato os pacientes evitam a luz do sol. Contudo, apenas na porfiria congênita eritropoiética, uma forma mais rara, há desfigurações mais severas. Além disso, não há evidências que o consumo de sangue alivie os sinais das porfirias (apesar do heme obtido poder ser utilizado na construção da hemoglobina, resta saber quanto heme chegaria íntegro às mucosas intestinais, e se ele seria absorvido), nem há evidências de danos em pacientes com porfirias causados pelo alho. Por último, temos problemas com a evolução do mito em si: apesar dos vampiros do fim do século XIX evitarem o sol e terem um aspecto pálido, os vampiros dos mitos originais não só saíam à luz do dia, como tinham um rosto bastante corado, devido ao consumo de sangue.
Em segundo lugar, contudo, temos o que nos interessa particularmente aqui: nem sempre uma explicação, apenas porque se encaixa “quase” que perfeitamente nos factos, deve estar correta. Sim, nesse caso temos uma doença que parece explicar com perfeição a origem dos mitos de vampiros. Mas até que ponto isso nos permite dizer que as porfirias são a condição patológica que levou à elaboração popular desse mito? Mitos devem ser analisados sob várias perspetivas: o conhecimento dessas patologias sanguíneas é sem dúvida interessante, mas devem-se buscar dados históricos, literários, linguísticos, arqueológicos e uma série de outros, para se saber com maior precisão a origem desse mito europeu.
O que estou tentando defender aqui é algo que todo estudante, pesquisador ou interessado em biologia evolutiva bem sabe: quando vemos uma estrutura, quando nos deparamos com uma característica ou com um comportamento qualquer de um organismo, tentamos imediatamente explicar por que aquela estrutura existe, quais são as vantagens que confere, em que cenário evolutivo foi fixada. Contudo, costumamos esquecer que muitas estruturas não são adaptações. E mesmo em relação às que são, a tarefa não é mais simples: o fato de criarmos uma hipótese que explica com perfeição as possíveis vantagens adaptativas de uma estrutura ou de um comportamento, recriando até mesmo as etapas de seu desenvolvimento, não nos obriga a aceitar necessariamente aquela hipótese, e alçá-la à condição de verdade científica… E isso é tão comum em biologia evolutiva! “a simetria bilateral facilitou a locomoção”, “a lignina permitiu o crescimento vertical”, “as mandíbulas aumentaram a variedade alimentar”, “a metameria tornou mais eficaz a formação de galerias”, “a respiração traqueal permitiu a economia de água”, “os estômatos permitiram a economia de água”, entre outras. São explicações adequadas, baseadas em evidências fisiológicas concretas, mas em organismos atuais. Podemos apenas conjeturar a respeito de quais vantagens permitiram a fixação de uma dada estrutura.
1 comentário
Muito elucidativo.