A alfabetização científica é um processo fundamental. No entanto, durante a vulgarização de certos conceitos, mal-entendidos podem e vão acontecer, e o que chega ao público leigo é bem diferente do que partiu da comunidade científica. Boa parte dos vulgarizadores está bem consciente disso. Por exemplo, os livros-texto de genética ou evolução costumam alertar repetidamente que o conceito de herdabilidade que o público leigo possui (quantos por cento de uma característica se devem a fatores genéticos) difere substancialmente do conceito correto (quantos por cento das diferenças de uma característica, observadas numa população, se devem a fatores genéticos), e isso tem consequências sérias para a correta compreensão do conceito de herdabilidade, como se pode perceber na tão comum (e sem sentido) pergunta “quanto da inteligência se deve aos genes e quanto se deve à influência do ambiente?”.
O fito da presente nota é discutir sobre um mal-entendido semelhante, um conceito ou informação científica que, ao ser vulgarizada, foi deturpada de tal forma que levou a uma derivação absurda em meio ao público leigo.
Eis a informação: “O DNA de um ser humano (Homo sapiens) e o de um chimpanzé (Pan troglodytes) diferem em apenas 1%”.
O que isso significa?
Tentarei mostrar que essa informação, a não ser que você seja um(a) geneticista ou trabalhe com construção de filogenias, tem o seguinte significado: nenhum.
Devo alertar, antes de prosseguir, que o que passo a alegar logo abaixo não é nada inédito, muito menos conclusões de minha cabeça, lavra própria; diversos livros de evolução ou genética fazem o mesmo alerta, ou um alerta semelhante. Contudo, como uma das propostas deste blog é a vulgarização científica, creio ser pertinente falar desse assunto pois suspeito que infelizmente, entre o público leigo, paira uma conclusão fundamentalmente incorreta, derivada dessa informação sobre o DNA dos humanos e dos chimpanzés.
Primeiramente, vamos olhar mais de perto o dado. Um por cento, essa é a diferença entre o material genético de um ser humano e de um chimpanzé. Mas do que estamos falando aqui, precisamente? O material genético do ser humano é constituído por 30% de genes propriamente ditos e 70% de sequências intergênicas, ou seja, espaços entre os genes. Se o número 1% se refere ao total do material genético, então, considerando apenas os genes propriamente ditos, a diferença pode variar entre 0% (todas as diferenças nas regiões intergênicas) e 3,3% (todas as diferenças nos genes). Acontece que esses genes propriamente ditos são constituídos aproximadamente, em sua totalidade, por 95% de introns e por 5% de exons. Assim, se quisermos considerar apenas as sequências codificantes, que são as que de facto interessam para a manufatura das proteínas (enquanto não se estabelece devidamente o papel, se é que há algum, destes 98,5% do DNA humano constituído por sequências intergênicas e introns), vamos chegar ao intervalo entre 0% e 66,7% de diferença entre o material genético (codificante) de um humano e de um chimpanzé. Perceba que o caminho pode ser também o oposto: se esses 1% tão divulgados pela mídia referirem-se às sequências codificantes, então a diferença total entre o DNA humano e o DNA chimpanzé pode ser qualquer valor entre 0,015% e 98,515%, uma vez que não haveria qualquer informação sobre as sequências não-codificantes. Para piorar ainda mais as coisas, a percentagem do DNA de chimpanzés que é formada por genes não tem que ser a mesma (30%) que a do DNA humano, nem também a percentagem de exons. “Afinal de contas”, você se pergunta, “esse valor de 1% se refere a quê: à totalidade do DNA ou apenas aos genes, ou ainda apenas aos exons? Você não vai esclarecer esse ponto antes de prosseguir?” Não, porque não importa. Qualquer que seja o número, ele não terá significado prático.
Porquê? Vejamos. Imagine dois textos, cada um com 100 palavras, cada palavra com 100 letras. Temos, portanto, 10.000 (dez mil) letras em cada texto. Como você corretamente já antecipou, cada texto é o DNA de uma das espécies, seres humanos e chimpanzés, cada palavra corresponde a um gene e cada letra de cada palavra corresponde a um nucleotídeo. Nessa analogia não haverá sequências não-codificantes. Muito bem, eu digo pra você que há 1% de diferença entre os dois textos. Matematicamente, há 100 letras diferentes. Agora vem o interessante: é possível que entre estes dois textos apenas uma palavra seja diferente, com todas as suas 100 letras discordantes. Uma palavra em 100 não é muita coisa. Por outro lado, é possível que todas as palavras sejam diferentes! Basta que haja uma letra diferente em cada palavra, ou seja, 1% de diferença em cada uma das palavras. Vamos ter 100 letras diferentes no final (totalizando 1% de diferença), e 100% de palavras diferentes. No fim das contas, o que você percebeu de forma clara é que simplesmente não dá pra saber quantas palavras são diferentes comparando-se os dois textos, apenas por saber que 1% das letras difere. O 1% de diferença entre o DNA humano e o DNA de chimpanzés pode levar a 1% de diferença entre seus genes, ou 16%, ou 72%, ou 98%, ou mesmo 100%.
E por que nós damos tanta importância às palavras nessa analogia? Porque os genes, determinando as proteínas que são produzidas em diferentes tecidos e em diferentes momentos, são o principal (mas não o único) componente responsável por determinar aquilo que chamamos de características de um organismo vivo. A informação de que “a diferença entre o DNA humano e o DNA chimpanzé é de 1%” não nos ajuda em nada a determinar quantos por cento das proteínas de um ser humano são diferentes das de um chimpanzé. E, mesmo que a análise de proteomas não envolvesse coisas tão complexas como quando, onde e quanto (ao contrário do genoma, que é sempre presente e sempre igual, o local onde uma proteína é sintetizada, o quanto dela é produzida e em que época do desenvolvimento ocorre tal produção são fatores fundamentais), mesmo assim, mesmo que soubéssemos, isso pouco adiantaria. Porquê?
Uma proteína é uma estrutura muito complexa, cuja função é determinada por uma topografia tridimensional bastante elaborada. Dizer que x% ou y% dos aminoácidos entre duas proteínas dadas difere não é informação suficiente: qual a posição de cada aminoácido? Qual aminoácido específico foi trocado por qual aminoácido específico? Trocar um aspartato por um glutamato pode não ser muita coisa, mas trocar um aspartato por uma lisina pode ser fatal. Dependendo da localização, você pode trocar 5 ou 10% dos aminoácidos de uma proteína e a função dela continua quase inalterada; ou então, como no famoso exemplo da siclemia, você pode trocar um só aminoácido entre centenas e alterar totalmente o funcionamento protéico.
A conclusão, portanto, é que não é possível relacionar um dado sobre a diferença genética entre duas espécies às diferenças de facto entre elas (seja isso o que for), ou seja, em relação às suas morfologias, fisiologias, comportamentos, particularidades bioquímicas… enfim, àquilo que chamamos de fenótipo. Um ser humano não é 1% diferente de um chimpanzé… Uma frase como essa não só é errada mas também um desserviço à construção de um saber científico. Os seres humanos e os chimpanzés são organismos que compartilham uma série de características (o termo correto é estruturas) devido à sua história evolutiva comum, e que, cada um por seu lado, possuem uma série de características únicas, exclusivas. Muitas delas são genéticas, algumas são hereditárias e não-genéticas, algumas até mesmo nem hereditárias nem genéticas… Não faz sentido (nem é possível) quantificá-las. Imagine a frase “os seres humanos são 4,7% diferentes dos cavalos”, ou “os caranguejos são 16,8% diferentes das gaivotas”. O que isso quer dizer? Qual o significado biológico disso?
Esse famoso 1% de diferença entre o DNA humano e o DNA de chimpanzés na verdade tem significância, pois para geneticistas e biólogos evolutivos que trabalham com comparações moleculares essas informações são importantes para a construção de filogenias e outros estudos evolutivos. Daí a dizer, como dizem por aí, que os chimpanzés são 1% distintos dos seres humanos há uma grande distância…
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Que matéria especular!
E a analogia com os dois textos foi excelente…
Parabéns!
Mas já tentaram (cientistas alemães na época de Hitler) fazer o cruzamento de seres humanos e gorilas e outras espécies mas nosso sistema espermatozóides tem um sistema de segurança que não aceita fecundar com nenhuma espécie diferente de nós, uma trava de segurança, que só fecunda humano com humano entendeu??? isso está descartado
O segredo da sabedoria é saber interpretar e ir a fundo na informação. Nessas últimas pesquisas envolvendo DNA humano foram comparados apenas *97 genes,* o ser humano tem aproximadamente *mais 30 000* , ou seja, nosso DNA é insignificantemente apenas 0,03% idêntico. Toda informação é facilmente manipulada e maleável, um bom escritor e interlocutor consegue usar a informação conforme lhe apraz, cabe a nós, utilizarmos nosso conhecimento e esmiuçamos os detalhes. Usemos o nosso cérebro, caso contrário, nós brasileiros teremos um futuro tão consistente quantos os discursos da Dilma ou corretíssimos como o roubo desculpado do temer.
Sem querer desmerecer a ciência,mas existe um algo e supremo que transcende o tempo e a nossa própria existência criador do céu e da terra e de tudo que há nela inclusive os seres humanos.
A história do Pai Natal é fantasia… só para enganar as criancinhas 😉
Tem pessoas que preferem acreditar outras saber… Os dois caminhos são válidos se te satisfaz..
Acredito que os que se posicionam no sentido de tentar afastar nossa semelhança com os chimpanzés, têm muito mais medo de desacreditar o Gênesis do que se parecer com um macaco.
Excelente texto. E esse ensinamento deveria ser divulgado com muita frequência, principalmente no youtube, onde muitos “intelectuais” desonestos estão a divulgar que esse 1% é na verdade um elo de aproximação efetiva.
Isso prova que sempre estive certa perante minha família teimosa, o chimpanzé é “só” 1% diferente dos humanos, mas para ter uma diferença tão insignificante a ponto de ser bem difícil separar em dois teria que ter 0,00000000000000001% de diferença, ou quem sabe mais, perdão, menos.
E os outros animais que apresentam uma porcentagem maior é muito mais diferente de nós.
Não é bem assim, as pesquisas que compararam os DNAs das espécies examinaram no máximo até hj 97 genes, o ser humano tem mais de 30 000, logo o que foi examinado equivale a meros 0,03%. A distância é descomunal.
Até podia ser apenas 0,01%, não deixaria de ser uma enorme diferença que nos distingue dos macacos.
A racionalidade é um dos gap´s que está por explicar. Os processos cerebrais são enormemente diferentes dos chamados seres “irracionais”, até podem ter outros atributos mais desenvolvidos, no entanto, não são tão complexos.
Apenas gostava de perceber qual será a próxima evolução natural do Homem. Sendo natural que o Homem evolua como espécie, gostaria de perceber como (nada melhor que a ficção cientifica para nos dar a 1º pista)?
Apenas por curiosidade natural. 😉
Os processos cerebrais nos animais são bastante semelhantes aos nossos, daí que se possam usar ratinhos e outros mamíferos em laboratório para testar novos tratamentos a serem usados em nós (depois de devidamente testados também em cobaias humanas). Simplesmente temos um neocortex mais desenvolvido, o que nos permitiu desenvolver um raciocínio mais abstracto sobre o mundo que percepcionamos.
Logo no arranque digo que o chimpanzé tem a capacidade de detetar mais imagens por segundo que eu e que tem uma memória de curto prazo com a probabilidade de ser superior à minha.
Pontos comuns são: gostar de bananas, coçar a cabeça e não só….
… e a mesma moral.
E a religião também!
Agora imagine uma espécie com 1% de diferença de nós. Seriamos os macacos..
… e os civilizados são os humanoides que nos “visitam” em discos voadores.
Há grande distância, mas ao mesmo tempo a maior proximidade biológica entre nossa espécie e outra, entre milhões de espécies existentes, mostrando alto grau de parentesco evolutivo inequívoco.
Bom, ao fim e ao cabo, somos todos primatas. 🙂
Exato.
Contribuição de Dawkins para a Fundação Edge que perguntou a cientistas sobre fatos que poderiam transformar a humanidade:
“Um cruzamento bem-sucedido entre homem e chimpanzé. Isso é um enorme tabu, mas não é impossível. Poderíamos criar um embrião experimental. Mesmo que gerasse uma criatura estéril, como o jumento, isso teria um impacto salutar sobre a sociedade, pois nos faria redefinir o que vem a ser humano. Hoje, nós encaramos as células humanas como se elas tivessem algo de especial ou sagrado, e fossem eticamente diferentes das células animais (mesmo quem é contra a eutanásia em humanos, por exemplo, não se oporia a colocar para dormir um bichinho de estimação que estivesse sofrendo). E isso vai contra a Teoria da Evolução. Mas uma demonstração prática da evolução, com o cruzamento entre homem e chimpanzé, mudaria tudo. Como já conhecemos inteiramente o DNA do homem e do chimpanzé, outra possibilidade é usar a engenharia genética para reconstruir nosso ancestral comum. Traríamos o australopiteco de volta à vida. E isso poderia (posso dizer que vai?) mudar tudo.”
[…] Fiz algumas pesquisas, e por coincidência encontrei um bom texto em um site que já conhecia, o texto pode ser lido aqui – e recomendo que leiam, para continuarmos o assunto por aqui -: 1% de diferença entre Humanos e Chimpanzés. O que isso significa? […]