Imaginem que astrónomos extraterrestres de um planeta semelhante à Terra se dedicam a descobrir exoplanetas usando, como nós, o método de trânsito.
Algures num planeta da nossa galáxia, um grupo de alienígenas diligentes, meticulosos e provavelmente mal pagos analisa os dados da luz de uma estrela – ou de centenas delas – à procura da «sombra» de um planeta que se coloca entre a estrela e o observador.
Os astrónomos apontam o telescópio para uma estrela da classe G localizada no sovaco da galáxia – o nosso sol. Depois de meses de estudo, observação e recolha de dados, detetam planetas.
Não sendo picuinhas como os senhores da União Astronómica Internacional, acabam por chegar à conclusão de que por aqui existe um sistema planetário contendo nove planetas. Nove!
(trânsito de Vénus, em 2012. Vénus a passar à frente do Sol, pela nossa perspetiva)
Espera. Método de trânsito?
É uma designação esquisita, eu sei. Quem a inventou nunca andou por Lisboa em hora de ponta: teria descoberto logo que não existe qualquer método possível no trânsito.
Mas não é assim tão difícil de explicar.
Quando o objeto planetário passa diante desse sol distante, é possível detetar pequeníssimas variações na luz. E podemos determinar se essas variações se repetem de forma periódica, se a alteração no brilho da estrela é sempre igual e dura o mesmo tempo.
Com estes dados confirmados e a ajuda de cálculos astrofísicos que nem com cinco reencarnações seria capaz de perceber, os astrónomos podem determinar quanto tempo leva o planeta a dar uma volta completa à estrela, qual o tamanho e a que distância se encontra, entre outras informações.
E pronto, já temos mais um candidato a planeta.
Não percebi nada!
Bem, sendo assim sou obrigado a usar a arma secreta dos leigos: a analogia!
Dado que os especialistas em escrita na web dizem sempre que é preciso entrecortar lençóis de texto com uma foto gira, socorro-me deste bonito cartão postal da Super-Lua tirado pelo fotógrafo espanhol César Manso para explicar melhor o método do trânsito: nesta analogia, a estrela é a lua cheia e o exoplaneta o casal de pombinhos.
Estão a ver como a luz da «estrela» captada pelo fotógrafo é menor por os dois estarem diante dela?
Pois substituam os pombinhos da fotografia por um casal de mosquinhas românticas e terão uma ideia de como o alvo é cosmicamente insignificante e a luz bloqueada ténue; de quão difícil é detetar corpos distantes através deste método, sobretudo planetas de menor dimensão, os rochosos, os que mais interessam por serem potencialmente mais parecidos com o nosso.
Mas consegue-se.
Meu irmão, és tu?
Agora voltemos ao assunto do post e imaginemos que o primeiro planeta que os alienígenas descobrem é Vénus.
Vénus capta imediatamente as atenções: além de ser um planeta rochoso e de dimensões semelhantes às do planeta-natal dos ET, encontra-se dentro da chamada «zona habitável», ou seja, a uma distância tal da estrela que não faz demasiado frio nem demasiado calor. Nessas condições, é plausível imaginar que água líquida pode existir à superfície. Se calhar, Vénus até irá parar ao catálogo galáctico dos planetas potencialmente habitáveis.
Imaginem agora que jornalistas alienígenas noticiam a descoberta de Vénus chamando-lhe «planeta gémeo» ou «planeta como o nosso».
Sabemos há muito tempo que Vénus é uma estufa venenosa com mais de 460 graus de temperatura à superfície, pelo que haveríamos de achar graça se pudéssemos ler as notícias deles.
E foi isto o que se passou com a generalidade da imprensa aqui na Terra, quando foi anunciada a descoberta do planeta Kepler-186f.
A talentosa Danielle Futselaar ilustrou para a NASA e o Instituto SETI uma visão artística do novo planeta, imaginando um ambiente à superfície de Kepler-186f e fazendo algumas extrapolações com bases científicas.
O sol surge maior no céu do planeta, por comparação ao que acontece na Terra; o sistema planetário tem cinco planetas, logo o céu está embelezado com os restantes quatro; havendo um sol vermelho, pintou as hipotéticas plantas de um amarelo-escuro, porque assim absorvem melhor a luz ténue da estrela.
Não sei se terá sido por influência desta ilustração demasiado idílica de Futselaar, mas a verdade é que na interpretação da notícia os media deram um salto gigantesco – e não no sentido Neil Armstrong da expressão.
De um planeta sobre o qual apenas sabíamos ser mais ou menos do tamanho da Terra, demorar 130 dias terrestres a dar uma volta completa ao sol e estar localizado na «zona habitável», passámos a imaginar «um planeta como a Terra», «um irmão gémeo».
Um irmão gémeo filho de mães diferentes, pois o seu sol em nada se assemelha ao nosso: Kepler-186f orbita uma estrela anã vermelha a 500 anos-luz de distância, a Kepler-186.
Nem sequer temos a certeza se é rochoso, pois ainda não conseguimos determinar-lhe a massa – chamar-lhe primo distante já seria abusar, quanto mais irmão.
Sabemos pouco, mas o pouco que sabemos faz de Kepler-186f um objeto histórico: pela primeira vez, descobrimos um planeta do tamanho da Terra a «cirandar» na zona habitável de outra estrela que não o Sol, e a importância dessa descoberta já ninguém nos tira.
Dr. Jekyll ou Mr. Hyde?
Mas o dilema Vénus subsiste, como bem notou o professor de Física e Astronomia Stephen Kane, da Universidade Estatal de São Francisco. Por isso, no que respeita às chamadas zonas habitáveis, propõe uma abordagem capaz de separar as águas: criar uma «zona venusiana».
Kane sabe do que está a falar, pois fez parte da equipa que descobriu o planeta Kepler-186f e deve ter acompanhado as especulações desenfreadas na imprensa e na Internet.
Vénus é o planeta mais enganador do Sistema Solar, talvez até mais do que Marte e os seus falsos canais.
Durante muitos anos – antes das missões soviéticas Venera, no final da década de 60 – foi um planeta quente e hospitaleiro, fervilhante de vida, uma estância de férias no Sistema Solar à espera de ser explorada por empreendedores terrestres, um irmão tropical da Terra.
Se nos pudemos enganar estando tão perto, o que dizer de planetas a centenas, milhares de anos-luz de distância?
Vénus e a Terra – planetas cujas atmosferas começaram por evoluir de forma semelhante – acabaram por sofrer destinos opostos. «Alguma coisa mudou, em certa altura, e estamos convencidos de que a diferença óbvia entre os dois é a proximidade do Sol», explicou Kane.
A missão Kepler procura sobretudo planetas semelhantes à Terra, sensivelmente do mesmo tamanho.
E isto é um problema.
Como distinguir uma potencial Terra de um potencial Vénus? Nunca poderemos perceber quem é «o Dr. Jekyll e o Mr. Hyde» desta história baseando-nos apenas em tamanhos semelhantes. «Quantos ‘Vénus’ a missão Kepler tem estado a encontrar?», pergunta Kane.
Associar uma «área Vénus» à descoberta de exoplanetas na zona habitável ajudará os astrónomos a separar mais facilmente um planeta potencialmente semelhante ao nosso de um mundo provavelmente parecido com Vénus, pelo menos enquanto não tivermos mais dados para analisar.
Um planeta na «zona venusiana» nunca será visto como um irmão gémeo, mesmo por esotéricos que imaginam marcianos em todo o lado ou jornalistas convencidos de que as estrelas nascem no cinema.
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Bom, pela lógica, não tem como o Kepler-186f (que, em meus contos, prefiro chamar de “Vassilissa” xD) ser um “gêmeo de Vênus” (se vc estiver se referindo à Vênus contemporânea, e não à Vênus de até uns 700 milhões de anos atrás, que, de acordo c/os mais recentes estudos, ainda possuía oceanos e boas condições de habitabilidade), literalmente falando; quando muito, poderia ser uma “Super-Europa”, ou um “Super-Marte”, simili modo ao exoplaneta da Estrela de Barnard. Isto porque o Kepler-186f orbita próximo à borda externa da zona habitável, ou “ecosfera”, e não (como Vênus) próximo à borda interna, ou ligeiramente aquém da mesma; e o fato de possuir 1,1 vez o tamanho de nosso próprio planeta, mesmo sem conhecer-lhe a massa, sugere fortemente que deve ser um mundo rochoso, não tem como ser gasoso; quiçá, faltando-lhe uma atmosfera suficientemente espessa para produzir um efeito de estufa capaz de aquecê-lo, não seria impossível que fosse um globo de gelo (tipo a “Terra Bola de Neve”) ou um oceano global encerrado sob uma quilométrica carapaça congelada. O efeito estufa de uma atmosfera espessa c/dióxido de carbono, vapor d’água e/ou metano, no caso de um planeta circulando na periferia externa da ecosfera, bem ao contrário do que ocorre presentemente com Vênus, produziria condições ambientais mais propícias à habitabilidade para formas de vida como nós conhecemos, no sentido terráqueo (água líquida etc), ainda que um tanto mais frias do que aquelas que reinam em nosso próprio planeta. No mais, concordo com suas restrições e ressalvas, no tocante a um certo sensacionalismo e superficialidade na divulgação, por parte da mídia, das descobertas dos exoplanetas e do pouco que se sabe acerca dos mesmos (em se tratando do Kepler-186f, p/ex., é certo que não conhecemos sua massa, estrutura interna, composição da atmosfera, se existente, se possui ou não magnetosfera etc).
Espero, com todo o meu corpo (com capacidade) cruzando os dedos, que o planeta Kepler 22 b seja um planeta realmente potencial Terra, porque sou deverás fã dele e já baseei muitas histórias nele.
[…] de Vénus (que é basicamente do tamanho da Terra). E nada nos diz que pode ser como Vénus. Pode ser ou pode não ser. Publicar artigos de que este planeta é como Vénus – com rios de lava e muito vulcanismo […]
[…] precisamos que Kepler-186f seja mais parecido com a Terra do que com Vénus. De muito longe, Terra e Vénus são igualmente […]