O que eu entendo por tendência evolutiva

O subtítulo do meu blog original é “por que, em se tratando de evolução, não há destino nem retorno”. Para quem não sabe, o final dessa frase (no foresight, no way back) é de um biólogo britânico chamado Maynard-Smith. Acho que é hora de comentarmos um pouco mais detalhadamente o que isso quer dizer, pois trata-se de uma introdução essencial para o assunto deste post: a evolução não é teleológica, ou seja, as mudanças evolutivas não ocorrem visando um fim último, um destino predeterminado por qualquer força que seja; ela simplesmente ocorre – ou nem isso: a mudança em si não é uma necessidade natural, ou seja, uma população pode se manter por um tempo ilimitado sem mudanças evolutivas. A evolução ocorre, se dá; não é, contudo, uma necessidade.

Isso está bem claro para a maior parte dos biólogos evolucionistas. Mas, então, o que dizer sobre as tendências evolutivas? Trata-se de um termo extremamente comum em biologia, que a maioria de nós usa constantemente. Lembro-me de quando comecei a ensinar zoologia no ensino médio, falando sobre as tendências evolutivas no Reino Animalia: desenvolvimento de um sistema nervoso, desenvolvimento de um sistema muscular, especialização de órgãos sensoriais…

Antes de deixar claro o que eu entendo por tendências evolutivas, acho que é conveniente deixar claro o que me incomoda: associar tendência evolutiva a teleologia. Ou seja, imaginar que há uma força “puxando” aquele táxon em uma direção determinada: as aves reduziram seu peso corporal porque há uma tendência do grupo a reduzi-lo; as gramíneas reduziram o perianto porque há uma tendência a perdê-lo; os primatas aumentaram a massa cefálica porque há uma tendência a desenvolvê-la… isso não me parece adequado. Além de não explicar muita coisa, justifica os processos teleologicamente.

Outra coisa que me incomoda é o que se chama de biologia especulativa. Nunca gostei de pensar na biologia evolutiva como uma ciência de predições: o número de fatores e de inter-relações no mundo real é assustadoramente grande para que possamos tentar prever os caminhos evolutivos de um táxon, mesmo em intervalos de tempo relativamente curtos. Deixe-me explicar minha idéia com um gráfico: dada a trajetória de um objeto, até o presente, você pode facilmente traçar sua trajetória futura; no gráfico abaixo, é a linha tracejada vermelha.

trajetória antes do presente (linha preta); a partir do presente, duas trajetórias possíveis (linhas tracejadas)

trajetória antes do presente (linha preta); a partir do presente, duas trajetórias possíveis (linhas tracejadas)

Mas imagine agora que não se trata de um exemplo físico, mas sim de uma característica qualquer: desde o passado, essa característica está associada a um valor que vem diminuindo, até o presente; contudo, o que nos assegura que ela continuará a diminuir? E se condições mudarem, e ela passar a aumentar (linha tracejada azul)?

Há algum tempo, o Discovery Channel (e acho que também o Animal Planet, mas só me lembro do primeiro…) apresentou uma série chamada “the future is wild”. Não me lembro do título em português da série, se alguém souber e puder deixar um comentário eu agradeço. Eram episódios feitos em computação gráfica, mostrando como seria a vida na terra daqui a 5, a 100 e a 200 milhões de anos. Muito louco… um interessante exercício mental, mas até que ponto válido? E o pior, até que ponto passa, para os espectadores, uma visão correta da biologia evolutiva? Para mim, não foi uma ideia feliz. Me incomoda muito essa tentativa de prever o futuro evolutivamente, mais ainda num lapso tão grande de tempo. Se puderem, não sei se há algo no youtube, vejam os bichos propostos: como disse antes, é algo muito louco.

capa do dvd "the future is wild"

capa do dvd “the future is wild”

Então, finalmente, o que eu entendo por tendência evolutiva? O que significa esse termo, que o Futuyma usa tanto em seu livro de biologia evolutiva? Acho que a resposta nos pode ser dada pelo próprio Maynard-Smith, criador (não sozinho…) do conceito de ESS, ou estratégia evolutivamente estável.

Uma vez que certo caminho foi tomado, que certa estratégia foi traçada, e que a maior parte dos membros da população executa aquela estratégia, a seleção natural, sozinha, é capaz de prevenir o surgimento de estratégias alternativas. Assim, a população vai se comprometendo cada vez mais com aquela estratégia inicial, aprofundando-a e tornando-a mais e mais fixada (comum). Isso, contudo, se dá sem um destino previamente traçado.

Expandindo os limites do tempo e das populações, podemos pensar de forma semelhante: a história evolutiva das aves, ao associarem o vôo à perda de peso, não abre muito espaço para uma linha evolutiva em que o peso volte a aumentar… a história evolutiva das gramíneas, perdendo o perianto ao se comprometerem com a anemofilia, não abre muito espaço para o ressurgimento de uma flor vistosa. Entre os animais, o sistema nervoso associado ao sistema muscular torna-se cada vez mais complexo. Mas até mesmo aqui temos que tomar cuidado: quem, vendo o magérrimo ancestral das aves que voam, poderia imaginar que uma de suas linhagens daria origem ao pesado avestruz? E entre os animais, quantas e quantas linhagens não abandonaram o sistema nervoso e a musculatura por ele comandada?

Há certos termos que temos que usar com cuidado, criteriosamente. Acho que tendência, em evolução, é um desses termos…

2 comentários

  1. Curiosamente esse gráfico também descreve nosso possível futuro no universo

    • Graciete Virgínia Rietsch Monteiro Fernanbdes on 16/09/2014 at 20:19
    • Responder

    Não percebo muito, posso dizer nada, de biologia. Mas a evolução não estará também ligada à adaptação ao meio e à procura de condições mais favoráveis à seleção natural?
    Evolução programada ou previsível também não me parece muito credível.
    Cumprimentos.

Deixe um comentário

Your email address will not be published.

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.