O caráter especulativo da biologia evolutiva

Como é bem sabido, a biologia evolutiva é eminentemente uma ciência histórica, ou seja, uma ciência que se debruça sobre o que já ocorreu, que observa eventos passados e, a partir desses eventos, tenta estabelecer a história evolutiva dos seres vivos. É certo que se trata de uma ciência capaz de estabelecer previsões, testar hipóteses e, coisa que poucos percebem, elaborar e conduzir experimentos (em laboratório ou em campo). Mas, não podemos negar, o aspecto historiográfico da biologia evolutiva é o que mais prevalece, é o que mais se sobressai.

Não é impossível reconstruir um processo histórico a partir de um número limitado de evidências e de factos atuais, às vezes bem escassos e complexos. De geólogos a peritos criminais, o processo é relativamente semelhante. Quando olhamos os destroços resultantes de um acidente aéreo espalhados sobre o solo só conseguimos ver um monte de metal retorcido e de plástico esmigalhado. Tudo é coletado e levado para um hangar, onde, num trabalho demorado e árduo, a aeronave é “remontada” e os peritos conseguem, com boa dose de certeza, relatar etapa por etapa o que aconteceu, onde existiu a primeira explosão, que peça partiu depois, que pedaço da fuselagem foi atingido, que fragmento colidiu com que fragmento… Tudo isso ante os olhos incrédulos de nós, leigos. Da mesma forma, um bom geólogo, ao contemplar uma paisagem, é capaz de detalhar a história daquele relevo, indicando os soerguimentos, as erosões, as sedimentações e outros processos na sequência correta.

A biologia evolutiva também é eficaz em reconstituir processos históricos, em contar a história evolutiva de um determinado grupo. Aliás, pode-se dizer que a biologia evolutiva é excelente nisso: estamos a apenas 150 anos do surgimento da biologia evolutiva e a apenas 50 anos do surgimento da sistemática filogenética, e já somos capazes de reconstituir a quase totalidade da árvore da vida, indicando o parentesco entre tais e tais grupos, delimitando grupos monofiléticos, determinando apomorfias e caracterizando homologias. É claro que ainda há buracos no plano geral (como a relação de parentesco entre os protostomados, que vira e mexe é revisada e modificada) e nos níveis mais detalhados da árvore filogenética, mais próximos dos ramos terminais; mas, de forma geral, já temos uma boa noção do quadro completo. A história evolutiva de determinados grupos, com um registro fóssil extenso, é bem completa. Por fim, a análise do material genético, com técnicas cada vez mais eficazes e algoritmos cada vez mais poderosos, adiciona uma quantidade formidável de informações ao panorama histórico.

Uma coisa é reconstituir o passado histórico, outra bem diferente é explicar porque os factos ocorreram da forma que ocorreram (já escrevi anteriormente sobre isso nessa postagem). E aqui, penso eu, a biologia evolutiva se depara com um problema que não ocorre com o perito criminal, com o geólogo, com o historiador ou com outras áreas que tratam da reconstituição de eventos. Podemos facilmente dizer que aquele determinado grupo animal não tinha asas, que as asas surgiram há tantos milhões de anos, que há tantos milhões de anos se deslocaram para a posição tal e tal, que há tantos milhões de anos aumentaram de tamanho, que no grupo tal desapareceram há tantos milhões de anos e que no grupo tal foram duplicadas há tantos milhões de anos, etc… Isso é apenas a reconstituição de um passado histórico. Outra coisa é explicar por que razão as asas surgiram, que vantagens elas trouxeram (se é que se trata de evolução adaptativa, poderíamos também questionar), de que maneira elas alteraram a taxa reprodutiva de seus portadores, etc. Podemos facilmente listar as vantagens de um inseto alado sobre um inseto áptero, uma lista exaustiva e completa. Contudo, isso não nos ajudaria a saber o que ocorreu, por que essa característica foi selecionada (novamente, se é que se tratava originalmente de uma seleção). Além disso, a própria função atual de uma determinada estrutura pode ser bem diferente da função que supomos.

Tomemos como exemplo o inseto da foto abaixo, que apareceu aqui em casa na época dos maracujás. O facto de estar sempre perto dos maracujás, por sinal, me permitiu identificá-lo: trata-se do percevejo do maracujazeiro, um hemíptero do Gênero Diactor, provavelmente Diactor bilineatus.

O percevejo do maracujazeiro, “Diactor bilineatus”

O percevejo do maracujazeiro, “Diactor bilineatus”

Uma característica interessante desse inseto é a projeção laminar que ocorre no terceiro par de patas, claramente visível, bem maior que a cabeça e o tórax do inseto combinados. Trata-se de uma característica adaptativa, não-adaptativa ou maladaptativa? Se adaptativa, para que serve essa projeção? Que função ela desempenha para o percevejo, a ponto de ter se tornado uma adaptação do gênero? Minha opinião é que, por mais que sejamos capazes de listar as funções possíveis dessa estrutura e de testarmos hipóteses de seu funcionamento, estaremos sempre no terreno da especulação. Ou seja, não saberemos se aquela função que atribuímos à estrutura, mesmo que real, foi de facto a função que, em sua origem, proporcionou uma maior taxa de reprodução aos organismos que a possuíam (mesmo porque, como bem sabemos, nenhuma função é eterna). Posso dar um exemplo radical disso que acabei de defender: todos nós, tetrápodos, temos patas. Para que servem as patas? Para andar, você responderia. Porém, não há indício algum de que a função das patas quando de seu surgimento fosse permitir que os tetrápodos andassem. Andar parece ser, muito provavelmente, uma exaptação. Ou seja, não sabemos qual a função das patas, não sabemos explicar porque elas surgiram. O que sabemos é quando isso se deu, em que grupo isso se deu, quais seus descendentes, quais os genes responsáveis por tais estruturas etc…

Eis outro exemplo, que apareceu aqui em casa mais recentemente (peço perdão pela má qualidade da foto, pois tive que focar e disparar com uma mão só). Esse outro hemíptero, cujo gênero fui incapaz de identificar, apresenta, também de forma bem visível, duas massas esferoidais bem no meio de suas antenas. Para que servem?

Curiosas massas negras no meio das antenas.

Curiosas massas negras no meio das antenas.

Já o vi voando, e ele voa de forma bastante interessante, com seu eixo ântero-posterior perpendicular ao plano horizontal, como uma pessoa em pé. Será que essas projeções servem para alterar seu centro de gravidade, e permitir o voo dessa forma? Esse é um caminho possível, mas a explicação pode ser bem diferente: a função dessas massas nas antenas seria outra, e o voo “em pé” seria uma consequência dessas massas, que alterariam o centro de gravidade do animal. Nada feito…

Em minha opinião, essa percepção do caráter especulativo de nossas explicações sobre a função ou a existência de tal ou tal estrutura é importante porque nos mantém atentos sobre o que essas explicações de facto são: especulações. É impressionante o número de biólogos (poderei dizer a esmagadora maioria?) que afirma sem titubear “a função disso é x”, “isso serve para y”, “essa é uma adaptação que permite z”, e assim por diante. Penso que convém um pouco mais de cautela.

Não poderia findar essa breve nota sem falar dele, o maior problema da biologia evolutiva, a pedra no meio do caminho, o calo no sapato: o sexo. Por que o sexo surgiu? Quais as funções do sexo? Há diversas hipóteses interessantes, desde a Hipótese da Rainha Vermelha até à Catraca de Muller. Não quero aqui discuti-las, e o leitor, se estiver interessado, pode achar uma grande quantidade de boas leituras e excelentes materiais na internet. O que quero defender é outra coisa: quer privilegiemos a hipótese x ou y, quer num futuro próximo uma das hipóteses se mostre tentadoramente correta, ainda assim, a atribuição de uma função para a reprodução sexuada, a elaboração de uma explicação para a razão de ser dessa adaptação será apenas uma especulação.

Mas não há razão para desapontamentos: especulações não são inerentemente ruins. Aliás, as ciências trabalham com probabilidades e não com certezas absolutas.

1 comentário

    • Dinis Ribeiro on 25/08/2015 at 12:54
    • Responder

    Comentando esta parte do texto:

    … estamos a apenas 150 anos do surgimento da biologia evolutiva e a apenas 50 anos do surgimento da sistemática filogenética, e já somos capazes de reconstituir a quase totalidade da árvore da vida…

    Sugiro este artigo:

    https://en.wikipedia.org/wiki/Texas_Longhorn

    Portuguese cattle breeds, such as Alentejana and Mertolenga, are the closest relatives of Texas Longhorns.

    https://en.wikipedia.org/wiki/Alentejana_cattle

    https://en.wikipedia.org/wiki/Mertolenga_cattle

    Texas Scientist With a Thing for Longhorns
    http://www.nytimes.com/2015/07/07/science/david-hillis-texas-scientist-longhorns.html?_r=0

    We know that Columbus had cattle with him during his second voyage. But here’s the rest of the story: In the early 1500s, the Spanish introduced them into Mexico, where they broke free of captivity and eventually formed feral herds.

    It was those that migrated into what would later become the American Southwest and that lived in the wild for hundreds of years. Then, in the 1860s, Texans returned home from the Civil War, broke and starving.

    Because there was nothing else, they rounded up these wild animals. That’s when redomestication began.

    How did the longhorns get their long horns?

    From that feral period. Today’s longhorns have much longer horns than the animals brought over from Spain. In the wilderness, these animals, which had been bred for docility, were forced to contend with bears, wolves and coyotes. The mothers had to protect their young from predation.

    That’s when the principles of natural selection came into play. The females with the longest horns proved the best defenders of their young. Their offspring survived, and they were able to pass their genes on to the next generation, which is how you got selection for those long horns.

    When you look at this breed today, you can actually see differences between what humans select for in cattle and what nature does.

    Farmers select for docility, high meat and milk production. Those traits are not necessarily an advantage in nature.

    However, because of their second bout in the wild, longhorns are usually far more resistant to disease, live longer, have more calves than domesticated cattle.

    They generally need less water and feed on more diverse types of grasses and brush.

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