Como Dissecar uma Galáxia

Em meados do século XX, os pioneiros da radioastronomia descobriram várias fontes intensas de ondas de rádio no céu. Hércules-A, uma delas, é a fonte mais luminosa da constelação de Hércules. Durante anos, os astrónomos tentaram em vão determinar qual o objecto responsável pela emissão observada. O problema era complicado porque os primeiros radiotelescópios tinham uma visão pouco nítida do céu, não permitindo determinar com precisão as coordenadas das fontes. Finalmente, usando uma técnica engenhosa, a posição de Hércules-A foi determinada com precisão suficiente para permitir fotografar essa zona do céu e tentar identificar a fonte de ondas de rádio na região do espectro visível. Os astrónomos ficaram surpreendidos — tratava-se de uma galáxia elíptica gigante, mil vezes mais maciça do que a Via Láctea e situada a cerca de 2.1 mil milhões de anos-luz. Muitos anos mais tarde, com radiotelescópios mais sofisticados e telescópios espaciais como o Hubble e o Chandra, os astrónomos puderam estudar o sistema em pormenor. A imagem seguinte mostra Hércules-A em ondas de rádio observada com o Karl G. Jansky Very Large Array, um grupo de 27 radiotelescópios organizados numa configuração em forma de Y, situado numa região desértica do Novo México.

Six images that combine Chandra data with those from other telescopes.
[Crédito: NSF/NRAO/VLA.]

A galáxia elíptica propriamente dita está no centro da imagem mas dela pouco se vê para além de um ponto luminoso. Desse ponto saem dois jactos estreitos, com grumos brilhantes, que gradualmente se alargam e dão lugar a lobos, como se de rios se tratasse, cuja corrente vai perdendo força e que acumulam sedimentos na foz. A figura seguinte, obtida com o telescópio Hubble, mostra a galáxia na região visível do espectro electromagnético. É de imediato evidente que os jactos não são visíveis. Hércules-A parece apenas uma de entre muitas galáxias elípticas no Universo, mas não é bem assim. Para começar, a galáxia é gigantesca e ocupa a região central de um pequeno enxame de galáxias. Por outro lado, é possível ver também uma outra galáxia muito próxima — o pequeno disco branco junto ao centro — o que faz pensar num cenário de uma colisão entre galáxias.

Six images that combine Chandra data with those from other telescopes.
[Crédito: NASA, ESA, S. Baum, C. O’Dea (RIT), e Hubble Heritage Team (STScI/AURA).]

Quando combinamos as imagens no visível e no rádio, como na figura seguinte, o efeito é extraordinário. Os jactos, brilhantes em ondas de rádio, têm origem precisamente no centro da Hércules-A e prolongam-se por uma distância enorme no espaço intergaláctico — mais de 1 milhão de anos-luz!

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[Composição da imagem em ondas de rádio (usando uma cor diferente) e no visível. Note-se a escala. Crédito: NASA, ESA, e Z. Levay (STScI).]

Os jactos são formados por plasma, composto por iões e principalmente por electrões, acelerados por um campo magnético muito intenso até velocidades próximas da da luz. Amarrados pelo campo magnético os electrões são obrigadas a descrever trajectórias espirais, libertando radiação no processo — as ondas de rádio observadas pelos radioastronomos. À medida que percorre o espaço interestelar, guiado com precisão pelo campo magnético, o plasma no jacto colide com o plasma em outros jactos anteriormente emitidos pelo buraco negro. As colisões dão origem a ondas de choque que são visíveis como grumos brilhantes nos jactos. Estas colisões dissipam a energia do jacto que deixa de ser estreito, ou colimado, e forma lobos gigantes.

As décadas de investigação sobre galáxias activas como a Hércules-A sugerem que os jactos têm origem num buraco negro, neste caso particular com cerca de 2.5 mil milhões de massas solares, localizado no núcleo da galáxia e no qual cai abundantemente gás proveniente da colisão galáctica em decurso.

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[Diagrama representando um buraco negro e o respectivo disco de acreção. O gás orbita o buraco negro e perde gradualmente energia orbital que é convertida em radiação aquecendo o gás a temperaturas muito elevadas e ionizando-o. O gás, carregado electricamente, em movimento dá origem a um campo magnético intenso ancorado no disco, junto ao horizonte de eventos. Este campo magnético é responsável pela formação dos jactos observados na Hércules-A e muitas outras galáxias activas.]

O gás não cai imediatamente no buraco negro. Antes, forma um disco de acreção em torno do horizonte de eventos (a superfície de não retorno do buraco negro) onde perde gradualmente energia orbital que é transformada em radiação. Como consequência o gás é aquecido a temperaturas que atingem milhões de Kelvin, transformando-se num plasma rico em iões e partículas carregadas electricamente. O movimento deste plasma em órbita do buraco negro gera um campo magnético poderoso que por sua vez acelera partículas ao longo de um eixo perpendicular ao disco. O mecanismo exacto que dá origem aos jactos não é ainda compreendido mas recentemente uma equipa de cientistas conseguiu criar jactos em laboratório utilizando campos magnéticos intensos aplicados a um plasma.

Seria de esperar que toda esta energia produzida pelo buraco negro central tivesse impacto no resto da galáxia. A figura seguinte, resultado de observações realizadas pelo telescópio Chandra, mostra uma névoa de plasma que brilha suavemente em raios X que envolve toda a galáxia e se estende para o espaço intergaláctico que a circunda. A região central desta névoa coincide com o ponto de emissão mais intensa de raios X, o covil do buraco negro. Neste plasma as partículas movem-se rápido demais para poderem condensar-se em nuvens de hidrogénio molecular como as que existem na Via Láctea e que são as maternidades das estrelas. Assim, o buraco negro super maciço da Hércules-A condiciona a evolução a longo termo da galáxia, impedindo a formação de novas gerações de estrelas.

Six images that combine Chandra data with those from other telescopes.
[Crédito: NASA/CXC/SAO.]

Finalmente, juntando as três peças do puzzle podemos ver a Hércules-A em todo o seu esplendor e, simultaneamente, perceber porque é fundamental estudar um objecto astronómico em várias regiões do espectro electromagnético, sob vários pontos de vista. Não é por acaso que os astrónomos passam parte significativa do seu tempo desenhando novos instrumentos e observatórios espaciais capazes de observar regiões do espectro que são inacessíveis a partir da superfície da Terra.

Six images that combine Chandra data with those from other telescopes.
[Composição de imagens da galáxia activa Hércules-A nas regiões radio, visível e raios-X do espectro electromagnético. Crédito: NASA/CXC/SAO, NASA/STScI, NSF/NRAO/VLA.]

(Fontes: STScI e Chandra)

2 pings

  1. […] que tem de especial com esse buraco e com o seu jato? Esse é o maior jato expelido por um buraco negro no universo […]

  2. […] não sabe, considere-se desafiado: leia este artigo e tente responder por […]

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