[Uma ruptura momentânea da crusta de um magnetar obriga a uma reorganização do campo magnético e à libertação de energia — uma erupção. Durante uma erupção o magnetar emite uma quantidade colossal de raios gama e raios X que podem ser observados por telescópios espaciais como o Fermi, o SWIFT e o Rossi X-ray Timing Explorer. Crédito: NASA Goddard Space Flight Center/S. Wiessinger.]
As estrelas de neutrões resultam do colapso gravitacional de estrelas maciças e luminosas. A certa altura na evolução destas estrelas, o seu núcleo deixa de produzir energia suficiente para suster o seu próprio peso. Quando isto acontece, e numa fracção de segundo, o núcleo sofre um colapso gravitacional, i.e., é esmagado pela sua própria gravidade, sendo comprimido até atingir uma densidade semelhante à de um núcleo atómico. O resultado é uma estrela de neutrões, com 20 km de diâmetro e uma temperatura de milhões de Kelvin. A conservação do momento angular durante o colapso faz com que a estrela de neutrões recém formada rode sobre si própria várias dezenas de vezes por segundo. A mesma lei de conservação é visível no dia-a-dia quando um patinador começa a rodar mais rapidamente à medida que fecha os braços.
[As estrelas de neutrões são extremamente pequenas à escala astronómica, com apenas 20 km de diâmetro. Numa tal esfera, no entanto, está concentrada uma massa entre 1.4 e 2 vezes a massa do Sol. A densidade resultante é enorme — 1 centímetro cúbico de material pesa tanto como toda a população mundial.]
Também o campo magnético do núcleo da estrela original aumenta de intensidade ao ser comprimido. Uma estrela de neutrões típica tem um campo magnético 1 milhão de milhões (1 seguido de 12 zeros) de vezes mais intenso do que o da Terra e conduz o plasma existente na sua vizinhança ao longo das linhas do campo até este colidir em 2 regiões opostas na superfície. A colisão aquece o plasma nestas regiões a temperaturas muito elevadas dando origem à emissão intensa de radiação em várias bandas do espectro electromagnético. Se a orientação da estrela de neutrões é adequada, a sua rotação vira estas regiões emissoras na direcção da Terra, uma vez por cada rotação, como se se tratasse de um farol. A estas estrelas de neutrões é dado o nome de “pulsar” (do inglês pulsating star).
[O campo magnético de uma estrela de neutrões está fortemente acoplado à sua superfície. Numa estrela de neutrões normal é 1 milhão de milhões (1 seguido de 12 zeros) de vezes mais poderoso do que o da Terra. Numa magnetar é mil vezes ainda mais intenso. Crédito: ESA.]
Quando certas condições durante o colapso gravitacional se conjugam, por exemplo, se o núcleo da estrela original tem uma velocidade de rotação inicial muito elevada, o campo magnético da estrela de neutrões que se forma cresce de forma exponencial, atingindo uma intensidade mil vezes superior ao de uma estrela de neutrões normal. Estas estrelas de neutrões têm propriedades especiais e são designadas por magnetar. Até à data conhecem-se apenas 23 magnetares na Via Láctea. Pensa-se que existem apenas durante algumas centenas de milhares de anos. Durante este período o campo magnético dissipa parte substancial da sua energia inicial até que o que resta é uma estrela de neutrões normal.
[Um modelo para o interior de uma estrela de neutrões. Existe forte evidência observacional apenas para a divisão em crusta e interior superfluido. Existem vários destes modelos teóricos que variam principalmente nos detalhes relativos à composição e dimensão do núcleo da estrela. O tipo de descoberta descrita neste artigo impõe restrições à estrutura interna das estrelas de neutrões e permite eliminar alguns modelos, inconsistentes com as observações. Fonte: Wikipedia.]
Tanto quanto foi possível determinar, através de modelos teóricos confrontados com observações, as estrelas de neutrões, e os magnetars também, têm uma estrutura relativamente simples. A uma atmosfera de poucos centímetros formada por um plasma a milhões de Kelvin, segue-se uma crusta de 2 km com uma estrutura cristalina formada por iões metálicos, de ferro e níquel principalmente, através da qual fluem com facilidade partículas como electrões. O interior da estrela é formado, suspeita-se, por um superfluído — um fluído com viscosidade zero — de partículas elementares, principalmente neutrões e, talvez, na sua região mais central, quarks — as partículas constituintes dos protões e dos neutrões. O campo magnético das estrelas de neutrões deve-se a um poderoso efeito de dínamo devido às cargas eléctricas em movimento, em especial na crusta cristalina, conjugadas com a rotação rapidíssima da estrela. O mesmo efeito, mas com uma intensidade muito menor, é observado na Terra. No nosso planeta, no entanto, não é a crusta que gera o efeito de dínamo mas antes uma camada exterior do núcleo, fluida e condutora de electricidade, constituída fundamentalmente por ferro, níquel e vestígios de outros elementos.
Nas magnetares, a intensidade do campo magnético é tão grande, e este está de tal forma ancorado na crusta da estrela, que alterações no campo magnético provocam tensões na crusta da estrela, e vice-versa, ajustes na forma da crusta provocam a reconfiguração do campo magnético. Este fenómeno assemelha-se aos “tremores de terra” no nosso planeta, mas não é devido à fricção de placas tectónicas, como na Terra, mas antes à interacção da crusta com o campo magnético. Forçada pelo campo magnético, a crusta tem rupturas momentâneas que reorganizam o campo magnético e provocam a dissipação de energia — sismos estelares. A energia libertada é tão grande que toda a estrela vibra depois de um destes eventos. Em teoria, estas vibrações deveriam deixar uma impressão detectável nos raios X e gama libertados pela magnetar. Isto foi precisamente o que uma equipa de cientistas observou numa magnetar utilizando o telescópio Fermi, que observa fontes de raios gama.
[O Telescópio Espacial Fermi com as respectivas dimensões e componentes. O Fermi observa o firmamento em raios gama, a forma mais energética de radiação. Crédito: NASA.]
Em 2009, o Fermi detectou várias erupções de raios gama provenientes da magnetar SGR J1550−5418, localizada a 15 mil anos-luz na constelação do Altar (latim Norma). O magnetar manteve-se quiescente até Outubro 2008. Nessa altura entrou num período de grande actividade, com numerosas erupções, que terminou em Abril de 2009. As erupções mais intensas libertaram tanta energia como a produzida pelo Sol em todos os comprimentos de onda durante 20 anos! A actividade da estrela foi visível também em raios X de alta energia, detectados pelos telescópios SWIFT e Rossi X-ray Timing Explorer, ambos da NASA, que observaram centenas de erupções de raios X e gama. Analisando os raios gama libertados pela magnetar durante este período, os cientistas detectaram um padrão que mostra que as erupções foram acompanhadas por vibrações na crusta da estrela equivalentes a um tremor de terra de magnitude 23. Por comparação, o tremor de terra mais intenso de que há registo foi no Chile, em 1960, com magnitude 9.5. Note-se que esta escala é logarítmica e, no caso, uma diferença de 2 magnitudes corresponde a mil vezes a energia dissipada. Assim, um tremor de terra de magnitude 23 corresponde a uma dissipação de energia mais de um trilião de vezes (1 seguido de 18 zeros!) superior ao tremor de terra do Chile.
[Este vídeo mostra o eco de luz provocado pelos raios X emitidos pela magnetar SGR J1550–5418 durante a sua fase eruptiva em 2009. Os raios X emitidos são dispersados por nuvens de poeira na vizinhança da magnetar. As nuvens de poeira mais próximas da Terra produzem os arcos maiores. Crédito: NASA/Swift/Jules Halpern, Columbia University.]
Esta descoberta é de importância capital no estudo das estrelas de neutrões e das magnetars em particular. Os teóricos desenvolveram vários modelos para descrever a estrutura interna das estrelas de neutrões mas sem observações como esta, em que foi possível quantificar as vibrações provocadas na superfície da estrela em função da energia libertada pela reconfiguração do campo magnético, seria difícil determinar qual dos modelos está correcto. As densidades que prevalecem no interior das estrelas de neutrões não podem ser reproduzidas em laboratório na Terra pelo que este tipo de observações indirectas fornecem pistas importantes para compreender a sua estrutura interna.
(fonte: Fermi)
2 comentários
Caro Luís Lopes, tenho uma dúvida! (que pode parecer um pouco parva)
Qual é o estado da “inner” e da “outer crust”? Decerto não é sólida como a crusta terrestre, mas tendo em conta a densidade das estrelas de neutrões também não pode ser plasma como na nossa estrela, o Sol… Se eu pudesse “tocar” – vamos imaginar, um pequeno exercício mental – a superfície de uma estrela de neutrões, sem ser antes esmagado pela gravidade ou morto pela radiação, esta seria sólida?
Sei que a pergunta pode parecer estranha, mas pergunto-me como é que as partículas reagem num meio com uma densidade tão forte.
Abraço 😉
Author
Olá Jérémy,
Tanto quanto é possível saber sem uma observação directa, a crusta das estrelas de neutrões é sólida. Os modelos sugerem que é constituída por núcleos de átomos, Ferro principalmente, que formam uma estrutura cristalina muito dura e condutora de electricidade. De facto a crusta tem de ser suficientemente dura para suportar a gravidade tremenda da estrela – as as maiores elevações têm apenas alguns milimetros. Existem evidências observacionais para a existência desta crusta dura, nomeadamente os chamados “glitches” em pulsares em que ocasionalmente estes passam a rodar mais depressa. Uma teoria explica estes ajustes na velocidade de rotação com ajustes pequenos na superfície da crusta e é consistente com as observações. As erupções dos magnetares são igualmente explicadas assumindo a existência de uma tal camada exterior sólida. A crusta interior corresponde a uma região em que a estrutura cristalina da crusta exterior se vai diluindo num superfluido de particulas elementares até que na região do núcleo deixas de ter núcleos atómicos e tens apenas um superfluido constituído principalmente por neutrões. Os núcleos atómicos na crusta interior serão progressivamente mais ricos em neutrões e mais pequenos devido à compressão gravitacional. Tudo isto é algo especulativo pois há vários modelos possíveis para o interior das estrelas de neutrões — chamados de Equações de Estado — e só através de observações de fenómenos como o relatado no artigo é possível inferir algo sobre a estrutura interna destas estrelas, e qual dos modelos teóricos existentes melhor se ajusta à realidade.