{Fotograma de uma simulação da explosão termonuclear de uma anã branca — uma supernova de tipo Ia. A superfície da anã branca (azul) é ainda visível mas está prestes a ser engolida por uma enorme bolha (laranja) de produtos da fusão explosiva do carbono. Da colisão da frente desta bolha resulta uma onda de choque que destrói a anã branca. Crédito: George C. Jordan, ASC FLASH CENTER, University of Chicago}
No final do século XIX, a humanidade poderia ter testemunhado um fenómeno celeste tão raro quanto espectacular — uma supernova. A estrela teria aparecido na constelação do Sagitário, muito próxima da confluência com as constelações do Escorpião e do Ofíuco, na direcção do núcleo da Via Láctea. No pico de brilho, poderia ter superado o planeta Vénus (magnitude -5) e ser mesmo visível durante o dia. Infelizmente, o facto de o Sol se situar no plano do disco da Via Láctea, implica que entre a Terra e o núcleo galáctico exista uma densa cortina de nuvens de poeira interestelar que ofusca mesmo o brilho sem par de uma supernova. O remanescente desta supernova só seria descoberto mais de 100 anos depois e a sua identificação como o mais jovem remanescente conhecido na nossa galáxia demoraria ainda mais 22 anos.
Em 1984, dois radioastrónomos da Universidade de Cambridge utilizavam o Very Large Array (VLA) para estudar remanescentes de supernovas. No decurso desse trabalho, descobriram um remanescente com propriedades singulares e muito mais pequeno do que o habitual — cerca de 1 minuto de arco (1/60 de um grau, 1/30 do diâmetro da Lua). A descoberta mereceu honras de publicação na prestigiada revista Nature e os autores realçam bem o carácter especial da descoberta no resumo do artigo:
O remanescente de uma supernova é formado por material da estrela que explodiu, projectado a grande velocidade para o espaço. O facto de um remanescente ser pequeno implica que o material não teve ainda muito tempo para se expandir e é, portanto, jovem. Apesar do interesse suscitado na altura pelo G1.9+0.3, o nome de catálogo que lhe foi atribuído, o assunto parecia ter morrido por ali, não havendo publicações sobre este objecto na literatura durante os 22 anos que se seguiram. [Nota: O G1.9+0.3 foi assim designado porque tem longitude e latitude galácticas de 1.9 e 0.3 graus, respectivamente. O núcleo galáctico tem coordenadas neste sistema de G0.0+0.0 pelo que, visto da Terra, o remanescente está localizado a poucos graus do núcleo da Via Láctea, na constelação do Sagitário.]
{A posição da supernova (estrela amarela) que deu origem ao remanescente G1.9+0.3 na constelação do Sagitário, junto ao centro galáctico (quadrado vermelho). Fonte: Stellarium.}
O interesse pelo G1.9+0.3 foi renovado quando, em 2007, uma equipa de astrónomos observou o remanescente com o telescópio de raios X Chandra, em órbita da Terra. Para surpresa, ou talvez não, da equipa, as imagens do Chandra mostraram um remanescente em forma de anel que se expandia para o espaço envolvente com uma velocidade muito elevada. Os raios X eram emitidos por material no bordo do remanescente, que estava em colisão com o material interestelar circundante, resultando no seu aquecimento até uma temperatura de milhões de Kelvin. Particularmente interessante era o facto de o seu tamanho ter aumentado 15% desde a descoberta com o VLA em 1984. Observações subsequentes, realizadas em 2008 com o VLA, confirmaram que o remanescente tinha aumentado o seu tamanho angular. A medição precisa da absorção dos raios X de diferentes comprimentos de onda pelo gás interestelar, permitiu estimar a distância do G1.9+0.3 em cerca de 25 mil anos-luz, correspondendo a um diâmetro real do remanescente de 6 anos-luz. Estes dados mostravam inequivocamente que a supernova tinha ocorrido a poucos milhares de anos-luz do centro da Via Láctea, a 27 mil anos-luz, na região densa do bojo da galáxia. Mais, a esta distância, o aumento do tamanho angular, medido nas imagens obtidas pelo VLA com um intervalo de 23 anos, corresponde a uma velocidade linear de expansão de 14 mil km/s — 5% da velocidade da luz!
{Imagens do G1.9+0.3 obtidas com o VLA com um intervalo de 23 anos. A forma anelar e a expansão do remanescente são evidentes. Crédito: NSF, NRAO, VLA, Cambridge, D.Green et al..}
A velocidade de expansão do remanescente permitiu também, pela primeira vez, determinar a sua idade aproximada e portanto o período em que deveria ter sido vista a supernova que lhe deu origem. O resultado foi surpreendente pois apontava para a idade muito curta de 140±30 anos. Por outras palavras, a supernova deveria ter sido visível durante a segunda metade do século XIX. A 25 mil anos-luz, e sem interferência das nuvens de poeira interestelar, uma supernova de tipo Ia típica atingiria magnitude -5 no pico de brilho, superando em esplendor o planeta Vénus. Seria visível em pleno dia durante um curto período e no céu nocturno durante meses.
{À esquerda: imagem do remanescente G1.9+0.3, em raios X e ondas de rádio. À direita: a posição do remanescente (caixa) junto ao núcleo galáctico (círculo); nesta imagem é bem visível a densidade de nuvens de poeira interestelar na direcção de G1.9+0.3. Crédito: NASA, NRAO e 2MASS.}
Não há qualquer registo de uma supernova no final do século XIX, numa altura em que a astronomia observacional estava no auge. A explicação para essa ausência é simples: o remanescente, e portanto também a supernova que lhe deu origem, encontra-se por detrás de um manto de nuvens de poeira interestelar, que absorvem de forma muito eficiente a luz visível, diminuindo o brilho de qualquer objecto no espectro visível por um factor de 1 milhão de milhões de vezes. Felizmente para nós, no século XX e XXI, a tecnologia evoluiu e podemos hoje observar outras regiões do espectro electromagnético. Em particular, conseguimos captar raios X e ondas de rádio provenientes do G1.9+0.3, pois estes comprimentos de onda atravessam facilmente as nuvens de poeira interestelar, sendo depois detectados por observatórios espaciais como o Chandra, ou na superfície terrestre pelo VLA. Os astrónomos do século XIX não tiveram essa sorte.
{Imagem em raios X de baixa energia, obtida pelo observatório Chandra — uma exposição total de 362 horas! Crédito: NASA, CXC, NCSU, K. Borkowski et al..}
Novas observações com o telescópio Chandra, em 2013, permitiram estudar o remanescente com mais detalhe. Os dados obtidos permitiram concluir que se terá tratado provavelmente de uma supernova de tipo Ia — a explosão termonuclear de uma anã branca devido à fusão explosiva do carbono no seu interior — , o mesmo tipo de supernova observado por Tycho Brahe, em 1572, e por Johannes Kepler, em 1604. As observações em raios X confirmam também a riqueza elemental do material no remanescente: Ferro (resultante do decaimento radioactivo: Níquel-56 → Cobalto-56 → Ferro-56), Silício, Árgon, Enxofre, Cálcio e Escândio (resultante do decaimento radioactivo: Titânio-44 → Escândio-44 → Cálcio-44). Estes elementos, blocos básicos necessários para a construção de planetas do tipo terrestre e para as moléculas da vida, estão lentamente a disseminar-se pelo meio interestelar, enriquecendo a química interestelar da Via Láctea. A onda de choque, provocada pela colisão do material da estrela com o gás e poeira do meio interestelar, aquece o gás até temperaturas de milhões de Kelvin, provocando a emissão de raios X. O remanescente é tão jovem que o material no interior do anel não é visível em raios X. Daqui a alguns séculos, uma outra onda de choque, de ricochete, movimentar-se-á do bordo para o interior do remanescente, aquecendo o material aí existente e tornando-o visível em raios X. Nessa altura o remanescente deixará de ter o aspecto anelar actual e tornar-se-á mais parecido com os remanescentes de supernovas mais antigas como as de Tycho e de Kepler.
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[…] A frequência com que ocorrem supernovas nas galáxias não é muito bem conhecida. O valor depende de muitos factores, e.g., do tipo de galáxia, da luminosidade da mesma, do ritmo de formação estelar, da fracção de estrelas maciças. As melhores estimativas para a Via Láctea, baseadas na ocorrência de certos radio-isótopos disseminados pelas supernovas, sugerem que deve ocorrer uma em cada 50 anos. A maioria destes eventos não é observável a partir da Terra devido à grande quantidade de poeiras interestelares no disco galáctico (e.g., G1.9+0.3). […]