As estrelas nascem em nuvens moleculares gigantes, na mais absoluta escuridão e frio extremo. As nuvens são formadas principalmente por hidrogénio molecular, hélio e poeira interestelar formada por elementos mais pesados e com uma química complexa. A densidade das nuvens não é homogénea. Pequenas regiões mais densas têm mais gravidade e começam a colapsar sobre o próprio peso, iniciando a fragmentação da nuvem e formando várias nuvens protoestelares.
O colapso de uma nuvem protoestelar dá-se ao longo de milhares de anos até esse fragmento da nuvem se espalmar num disco rotativo, cujo centro é ocupado por uma protoestrela ainda em contracção. A certa altura, é atingida a temperatura crítica no centro da protoestrela e inicia-se a fusão do hidrogénio em hélio — uma nova estrela acaba de nascer. A radiação intensa que emite liberta-a do gás e poeira que ainda a envolvem, até que por fim se torna visível.
Durante este processo de fragmentação, no entanto, é frequente que uma nuvem protoestelar dê origem a duas ou mais protoestrelas, as quais ficam ligadas pela gravidade, originando sistemas binários ou múltiplos. A menos que tenham uma estrutura hierárquica particular, sistemas múltiplos de estrelas são altamente instáveis e tendem a dispersar-se em poucos milhares de anos. Sistema binários, no entanto, podem manter a sua estabilidade ao longo de todo o ciclo de vida das suas componentes. Por estas razões vemos no firmamento um grande número de estrelas duplas. De facto, uma percentagem muito significativa — as estimativas variam quanto ao número exacto — das estrelas da Via Láctea fazem parte de sistemas binários. A solidão do nosso Sol poderá ser algo atípica.
As estrelas num sistema binário estão demasiado próximas, e a sua distância à Terra é demasiado grande, para poderem ser vistas individualmente a olho nu. Foi por isso necessário esperar pela invenção do telescópio para que os astrónomos começassem a aperceber-se de que algumas estrelas simples à vista desarmada, eram na realidade duas ou mais, quando as suas imagens eram ampliadas. Foram designadas de estrelas duplas, um termo que ainda hoje tem uso generalizado em linguagem mais informal. A primeira estrela dupla descoberta foi Mizar, a estrela zeta da constelação da Ursa Maior, pelo monge beneditino Benedetto Castelli, colega de Galileu, em 1617. Alguns autores atribuem a descoberta a Giovanni Battista Riccioli, mais tarde, em 1650, mas é um facto que Castelli e Galileu já conheciam a duplicidade de Mizar.
A estrela era conhecida desde a antiguidade pela sua aparente associação com uma estrela muito próxima, Alcor, e as duas eram frequentemente utilizadas como um teste (não muito convincente, diga-se) de acuidade visual. Quando Benedetto observou Mizar com um telescópio, reparou que em vez de uma, a estrela tinha duas componentes. Sabe-se hoje que cada uma dessas componentes são elas próprias duplas, uma descoberta que estava muito para lá da tecnologia ao dispor de Castelli — Mizar é uma estrela quádrupla! Mais, Alcor, que durante muito tempo se pensou formar um alinhamento fortuito com Mizar, é também dupla e provavelmente ligada gravitacionalmente a Mizar. Castelli ficaria certamente surpreendido em saber que a sua estrela dupla é na realidade um sistema sextuplo!
Durante um século e meio, as estrelas duplas foram encaradas como simples alinhamentos fortuitos. Foi já no final do século XVIII que William Herschel, famoso pela descoberta de Urano, descobriu e catalogou centenas destes sistemas. Tendo em conta o brilho das componentes, o número de sistemas observados por Herschel era demasiado grande para poder ser explicado por alinhamentos (a probabilidade de duas estrelas com brilho semelhante aparecerem tão próximas no céu é muito baixa). O astrónomo inglês de origem alemã, com a curiosidade despertada, registou cuidadosamente as separações e ângulos de posição de centenas destes sistemas.
Anos mais tarde, ao repetir as observações reparou que alguns sistemas apresentavam alterações nestes dois parâmetros. Herschel tinha observado pela primeira vez o movimento orbital em sistemas binários. Desde então, as estrelas duplas foram tratadas como um objecto respeitável de estudo e não como meras curiosidades. Astrónomos famosos como Friedrich G. W. von Struve, James Dunlop, Sherburne W. Burnham, Robert G. Aitken dedicaram parte significativa das suas carreiras à observação e ao estudo destes sistemas. O objectivo era conseguir determinar os parâmetros orbitais, e.g., período, semieixo maior, excentricidade, etc.
Esta “Corrida às Estrelas Duplas” tinha uma razão de ser. A aplicação da teoria da gravitação de Newton a um sistema binário produz uma variação da 3ª Lei de Kepler que permite calcular, sabendo o semi-eixo maior da órbita (a) e o período da mesma (P) a massa total de um sistema binário (G é a constante da gravitação de Newton).
De facto, a observação de sistemas binários é a única forma que os astrónomos têm de medir directamente, e com precisão, a massa das estrelas. A massa de uma estrela é o seu parâmetro mais importante, dela dependendo a sua evolução nuclear, que por sua vez influencia parâmetros como a luminosidade, raio e temperatura. Quando enfrentavam uma longa vigília nocturna, frequentemente em condições difíceis, para adicionar mais um ponto na órbita de um sistema, os astrónomos tinham consciência da importância do seu trabalho para as gerações vindouras.
Por vezes, as componentes de um sistema binário estão demasiado próximas para poderem ser separadas por um telescópio. Nestes casos não é possível fazer o estudo da órbita pelo método acima descrito. No entanto, a análise da luz proveniente do sistema permite detectar as linhas espectrais das componentes separadamente. As linhas (riscas negras verticais no arco-íris) de uma componente movem-se ligeiramente para o azul quando esta se aproxima da Terra no seu movimento orbital, e ligeiramente para o vermelho quando se afasta. A análise desta informação espectral permite determinar, entre outros parâmetros, o período orbital do sistema e um valor mínimo para a massa total do sistema (o valor real depende da inclinação do sistema, que não é possível determinar apenas com esta técnica).
Alguns sistemas binários têm a particularidade de terem o seu plano orbital quase perfeitamente alinhado com a nossa linha de visão. Isto quer dizer que, ocasionalmente, as componentes passam uma em frente da outra, quando vistas a partir da Terra. Neste caso, diz-se que se trata de um sistema binário com eclipses.
Num tal sistema, a periodicidade dos eclipses permite determinar o período orbital das estrelas. O impacto dos eclipses na luz total do sistema (a profundidade dos eclipses) permite determinar a luminosidade relativa de cada uma das componentes. A duração dos eclipses permite determinar os seus tamanhos relativos. Combinados com informação sobre a distância da estrela, estes dados permitem calcular as dimensões e luminosidades absolutas das componentes. Mais, se o sistema for também um binário espectroscópico, como a inclinação da órbita é conhecida é possível calcular também as massas exactas das componentes.
O primeiro destes sistemas a ser identificado foi Algol, a estrela beta da constelação de Perseu, pelo astrónomo amador inglês John Goodricke, em 1783. A variabilidade do brilho da estrela, devida aos eclipses periódicos, era já conhecida desde a antiguidade, mas Goodricke apresentou pela primeira vez esta explicação para o fenómeno que veio a ser corroborada por gerações posteriores de astrónomos.
Mais recentemente, foi possível obter imagens notáveis de Algol que mostram o movimento orbital e os eclipses das componentes do sistema. As componentes de Algol estão demasiado próximas para serem separadas por qualquer telescópio convencional na Terra ou no espaço. As imagens foram obtidas pelo interferómetro CHARA, no Observatório de Monte Wilson, nos Estados Unidos. O CHARA é composto por 6 telescópios móveis, de 1 metro de diâmetro, com uma separação máxima de 330 metros. A luz recolhida pelos 6 telescópios é combinada por hardware e software sofisticado permitindo obter imagens capazes de mostrar objectos do tamanho de uma pessoa na Lua!
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Excelente postagem. Como é bom adquirir conhecimento com ciência de verdade. 😀
[…] dominante da estação. Mas Spica não está só! A análise da sua luz revelou que se trata de uma estrela binária espectroscópica. Num tal sistema, as componentes estão demasiado próximas para poderem ser observadas com […]