No auge do Inverno, Castor e Pólux caminham pelo firmamento com os pés mergulhados no rio celeste, a Via Láctea. O amor fraternal dos gémeos, filhos de Leda, rainha de Esparta, é eternizado numa constelação com objectos repletos de interesse para os astrónomos.
Leda era a rainha de Esparta, esposa do rei Tíndaro. A sua beleza despertou a luxúria de Zeus que certa noite se aproximou dela sob a forma de um cisne, um estratagema para escapar aos olhos atentos da esposa Hera e chegar junto da rainha sem causar alarme. Zeus possuiu Leda que nessa noite se deitou também com o marido. Meses mais tarde Leda pôs dois ovos, dos quais nasceram quatro gémeos: Pólux e Helena — sim, a de Tróia—, filhos de Zeus e imortais, e Castor e Clitemnestra, filhos de Tíndaro e mortais.
Criados por Tíndaro, Castor e Pólux tornaram-se inseparáveis. Na tradição de Esparta, Castor ficou conhecido pela sua mestria nas artes da guerra e como domador de cavalos; Pólux, por seu lado, era o mais exímio dos lutadores. Os gémeos eram conhecidos por dioskouroi, literalmente “filhos de Zeus” — as várias fontes não são consistentes quanto à paternidade de Castor.
Os gémeos participaram em várias campanhas fantásticas com outros heróis seus contemporâneos. Uma delas envolveu a caçada ao javali de Cálidon, um enorme animal libertado por Ártemis nos férteis campos que rodeavam a cidade, como vingança pela incúria dos habitantes no seu culto. Mais tarde, Castor e Pólux, e vários outros envolvidos nesta caçada, integraram os argonautas, um grupo de heróis que acompanharam Jasão numa expedição à Cólquida, uma região no sul do Cáucaso. Desta vez, o objectivo era roubar o Tosão de Ouro, um símbolo de poder e autoridade cobiçado por muitos e à guarda do cruel rei Eetes. O Tosão era a lã de ouro do carneiro alado Crisómalo, filho de Poseidon e da ninfa Téofane, criatura que está na origem da actual constelação do Carneiro.
No regresso desta viagem, Castor e Pólux participaram com os seus primos e rivais de longa data — querelas familiares que não são para aqui chamadas — Idas e Linceu, eles também argonautas, num roubo de gado que rendeu uma boa manada. Um desentendimento na divisão dos despojos pôs rapidamente fim à frágil aliança. Idas e Linceu tentaram enganar Castor e Pólux e ficar com toda a manada. Na sequela, Castor é atingido mortalmente por Idas. Pólux, não suportando a ideia de se separar do seu irmão, pede a Zeus para partilhar a sua imortalidade com ele, vivendo assim, cada um, metade do tempo no Olimpo, a morada de Zeus, e a outra metade em Hades, o inframundo. Finalmente, comovido pela dedicação de Pólux ao seu irmão, Zeus colocou os dois no firmamento, formando a actual constelação dos Gémeos.
A constelação é facilmente identificada pelas suas luminárias: Castor e Pólux, pois claro. A estrela alfa é Castor, apesar de ser claramente menos brilhante do que Pólux, a estrela beta. Não se sabe a razão pela qual Johann Bayer, o famoso cartógrafo do século XVI que atribuiu letras do alfabeto grego às estrelas mais brilhantes das constelações por ordem decrescente de luminosidade, tomou esta opção, mas não é caso único no seu atlas.
A cerca de 51 anos-luz, Castor é uma estrela interessantíssima. Em 1678, o astrónomo italiano Giovanni Domenico Cassini descobriu que era uma estrela dupla (componentes A e B). Observações posteriores permitiram determinar a sua órbita e o período orbital de 467 anos. A invenção do espectroscópio no século XIX, e os avanços no estudo dos espectros estelares, permitiram determinar que ambas as componentes observadas por Cassini são binárias espectroscópicas com períodos muito curtos de 2.9 dias (descoberta em 1896) e 9.2 dias (descoberta em 1905). Cada um destes sistemas é formado por uma estrela de tipo espectral A, semelhante a Vega, e uma estrela mais fria de tipo espectral M — uma anã vermelha. No início do século XX, Castor passara a ser uma estrela quádrupla.
Em 1926, descobriu-se que uma terceira estrela (componente C), que se sabia acompanhar o par A-B à distância, afinal exibia movimento orbital. Mais, uma análise do espectro da estrela mostrou que se tratava de um par de anãs vermelhas com um período orbital de apenas 19.5 horas! Para sorte dos astrónomos, as estrelas eclipsam-se mutuamente, permitindo a determinação da sua massa e dimensão com grande exactidão. É assim que, através de uma espantosa sequência de descobertas, sabemos hoje que Castor é uma estrela sêxtupla!
Todas as componentes de Castor são fontes de raios X. A radiação tem origem nos campos magnéticos das estrelas que desencadeiam tempestades electromagnéticas muito energéticas. Com apenas 200 milhões de anos de idade, as estrelas são jovens e têm velocidades de rotação elevadas. O plasma em movimento gera campos magnéticos muito intensos. No caso de uma anã vermelha, este efeito é ainda amplificado pelo facto do plasma circular, via convecção, por toda a estrela. A componente C, composta por duas anãs vermelhas quase em contacto, é um caso extremo em que à actividade individual das duas estrelas se junta ainda a interacção dos campos magnéticos por proximidade.
A 34 anos-luz, Pólux, por outro lado, é uma estrela bem mais normal. Trata-se de uma estrela gigante, a mais próxima do Sol, de tipo espectral K, o que explica a sua tonalidade alaranjada. Há milhões de anos atrás, quando estava na sequência principal, Pólux foi uma estrela de tipo A, semelhante às componentes mais brilhantes de Castor. No entanto, Pólux esgotou já o hidrogénio na sua região nuclear, agora inerte com a “cinza” de hélio acumulada, e brilha com a fusão do hidrogénio que decorre numa camada adjacente ao núcleo. Esta reorganização interna da estrela fez aumentar o seu brilho e a sua dimensão — actualmente é 45 vezes mais luminosa do que o Sol e tem 9 vezes o seu diâmetro. Pólux continuará a expandir-se nos próximos milhares de anos, transformando-se numa gigante vermelha, de tipo espectral M, mais fria e mais luminosa.
Junto ao pé de Castor, próximo da estrela eta dos Gémeos, encontra-se o único objecto do catálogo de Messier da constelação. Trata-se de M35, um belo enxame de estrelas, descoberto originalmente por Philippe Loys de Chéseaux em 1745, visível a olho nu num céu bem escuro. M35 está a uma distância de 2800 anos-luz e as suas estrelas têm uma idade de cerca de 100 milhões de anos. Mesmo ao lado, situa-se um outro enxame, NGC 2158. Mais denso e muito mais distante, a cerca de 12 mil anos-luz, as suas estrelas têm cerca de 2 mil milhões de anos. O leitor poderá ficar espantado com o facto de sabermos a idade das estrelas nestes enxames. Na realidade, no caso dos enxames de estrelas, uma técnica muito simples permite calcular essa idade com exactidão, mas isso é assunto para um outro artigo.
A região entre as estrelas mu e eta dos Gémeos é particularmente interessante. Aí encontramos a nebulosa de emissão Sharpless-249, a face visível de uma nuvem molecular gigante, uma região de formação de novas estrelas, a cerca de 5 mil anos-luz. O contraste não poderia ser maior pois, inserida nesta nebulosa, podemos observar os restos de uma das estrelas que aí nasceu, viveu e morreu, tudo demasiado rápido para se ter afastado do seu berço. Este remanescente de supernova é conhecido por “Nebulosa da Alforreca” e alberga no seu interior o núcleo superdenso da estrela original, o pulsar (uma estrela de neutrões em rotação rápida) com a designação críptica de CXOU J061705.3+222127. A supernova que lhe deu origem terá sido visível há milhares de anos e não terá sido a primeira — um remanescente mais antigo, G189.6+3.3, pode ser encontrado nesta região.
Ainda nesta região do céu, encontramos mais um cadáver estelar, e bem exótico por sinal. Trata-se do pulsar “Geminga”, situado a cerca de 800 anos-luz. A sua particularidade mais interessante consiste no facto de emitir 99% da radiação sob a forma de raios gama, o tipo de luz mais energética. Geminga foi o primeiro “pulsar de raios gama”, um tipo tão raro de pulsar que só recentemente outros exemplos foram identificados com o observatório Fermi da NASA. Quando foi descoberto, em 1975, a maioria dos pulsares conhecidos emitiam ondas de rádio e Geminga é invisível nesses comprimentos de onda. A sua natureza só foi estabelecida definitivamente em 1991 quando o observatório ROSAT conseguiu detectar finalmente os pulsos típicos de um pulsar em raios X, com uma periodicidade de 237 milisegundos. Observações recentes com o telescópio Hubble permitiram obter imagens directas do pulsar, com uma magnitude de 25! Geminga desloca-se no espaço com uma velocidade de, pelo menos, 720 mil km/h, muito acima do normal para uma estrela, possivelmente devido a alguma peculiaridade da supernova que lhe deu origem, há uns 300 mil anos. Traçando a sua trajectória para trás no tempo é possível determinar que a estrela que lhe deu origem deverá ter-se formado e evoluído numa das muitas maternidades estelares de Orionte.
Do outro lado da constelação, junto a Wasat, a estrela delta, e a uma distância de 4200 anos-luz, podemos encontrar outro vestígio da morte de uma estrela. A nebulosa planetária NGC 2392, também chamada de “Nebulosa do Esquimó”, foi descoberta por William Herschel em 1787, e é facilmente visível num telescópio pequeno devido ao seu brilho superficial muito elevado. No entanto, é necessário um grande telescópio e excelentes condições de estabilidade atmosférica para poder observar detalhes remotamente similares aos visíveis na imagem acima obtida pelo telescópio Hubble. As nebulosas planetárias formam-se quando, no final da sua vida, uma estrela como o Sol ou pouco mais maciça, ejecta para o espaço as suas camadas exteriores ricas em hidrogénio e enriquecidas com elementos resultantes das reacções nucleares — e.g., hélio, carbono, oxigénio, nitrogénio e outros elementos mais pesados formados durante uma fase prévia de gigante vermelha. O núcleo exposto da estrela, muito quente e com dimensões semelhantes às da Terra, é um tipo de estrela especial designado por anã branca. A intensa radiação ultravioleta emitida pela superfície a 50 mil Kelvin da anã branca no centro da NGC 2392 provoca a fluorescência do plasma circundante, produzindo um espectáculo de cores notável. As estrelas morrem com classe.
3 comentários
Ótimo texto, parabéns!
Fiquei curioso a respeito de Geminga, qual a explicação para alguns pulsares emitirem sua radiação em raios gama e outros não?
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Olá Daniel,
Não se sabe ao certo. Uma teoria sugere que os pulsos dos diferentes tipos de radiação electromagnética emitidos pelos pulsares têm origem em zonas diferentes da estrela de neutrões ou da sua vizinhança. Por este motivo, é possível que, em alguns casos, apenas os pulsos de radiação de uma região restrita do espectro (e.g. raios gama) estejam alinhados com a Terra para poderem ser observados.
Ab.
Luís
Muito, muito bom, como sempre! Parabéns, como sempre!
Abraço estrelado, Janine