A colónia mais vigiada do Sistema Solar

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O senhor Jere Gutierrez talvez nunca tenha escutado esta canção da francesa Camille. Não chegou a ouvi-la cantar que «a lei da gravidade é mais forte em Marte» e portanto nunca teve oportunidade de lhe desculpar a asneira.

Talvez nem reparasse. O chefe da cadeia de televisão Neteno tem um grave problema entre mãos e ouvir canções sobre um planeta estéril e longínquo não faz parte das suas prioridades: os reality show que tanto dinheiro deram à empresa já não conseguem competir com os computadores e a Internet, os jogos interativos e os milhões de jogadores ligados em rede.

As audiências estão a escapar e os contratos de publicidade também, conclui amargamente Jere Gutierrez.

A não ser que surja uma ideia revolucionária capaz de arrasar a concorrência, o declínio financeiro da estação será inevitável.

Haverá um génio do entretenimento capaz de resolver este imbróglio e criar um produto completamente novo, capaz de prender a atenção dos milhares de ingratos hipnotizados pelo computador?

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Negócios no planeta vermelho

Evan McMaster entra em cena para salvar o dia.

McMaster propõe um programa de televisão como nunca antes se viu: recupera-se o reality show nos moldes habituais, mas documenta-se os dramas da vida real onde nenhuma outra estação concorrente se atreveu.

McMaster não pensa em filmar na Terra. Nem sequer na mais recôndita e selvagem região da Terra.

McMaster quer fazer um reality show em Marte.

Um reality show filmado no planeta vermelho transforma a disputa pelo prémio final numa competição tão severa e temerária que todas as outras são tornadas irrelevantes.

Os ingredientes habituais nesta receita televisiva – desafio, drama, suspense – têm um sabor mais intenso em Marte, defende McMaster. Com um ambiente hostil onde os concorrentes podem morrer a qualquer momento, cada segundo de emissão possui um significado especial, quase transcendente.

O senhor Gutierrez estará disposto a apostar tudo nesta aventura?

Desesperado por audiências, o chefe aprova a ideia.

A cadeia de televisão dá então início à tentativa de financiar a expedição e organizar o primeiro reality show marciano da história da Humanidade.

A futura e hipotética colónia marciana

A futura e hipotética colónia marciana

É como umas Olimpíadas de Inverno

O financiamento não é problema, se criarmos o maior evento mediático à volta disto

A cadeia Neteno, o chefe Gutierrez e o visionário McMaster existem apenas na imaginação de Jason Stoddard. Em dezembro de 2011, aquele escritor e especialista em marketing publicou a novela de ficção científica «Winning Mars».

O que então pareceu a Stoddard um pretexto para criticar a obsessão por audiências e divagar sobre corridas espaciais patrocinadas por empresas privadas, é para o holandês Bas Lansdorp a base do projeto Mars One.

O objetivo é levar víveres e pessoas a Marte, mantê-las vivas e em segurança no planeta, e filmar tudo como um reality show.

«Ora deixa ver…» – escreveu o autor Jason Stoddard no blogue quando tomou conhecimento dos planos do Mars One. «Colocar pessoas em Marte e fazer disso um reality show? Onde terão eles ido buscar essa ideia?»

Mais à frente: «Estou só a brincar. Talvez grandes mentes pensem as mesmas coisas. Ou talvez sejamos ambos doidos. Uma vénia a todos os malucos deste mundo!»

O Mars One estabeleceu os fundamentos da missão no mesmo ano que Stoddard começou a escrever a sua novela de ficção científica. As candidaturas começaram em 2013.

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Este ano inicia-se o treino dos potenciais astronautas. Em 2018 é lançada uma missão não-tripulada de reconhecimento para descobrir o melhor local para estabelecer a colónia. Em 2020 chega mais um rover e um satélite de comunicações. Em 2022, as primeiras missões de carga. Um ano depois, os componentes já estarão preparados: dois módulos habitacionais, duas unidades de suporte de vida, dois rovers e uma segunda unidade de abastecimento. A produção de água, oxigénio e uma atmosfera artificial estarão em pleno funcionamento nesse ano.

Em 2024, parte a primeira tripulação: quatro pessoas. Um ano e meio depois, amartagem. 2026, partida da segunda tripulação. O roteiro completo pode ser consultado no sítio do projeto.

Nos press releases, nas brochuras online e nos vídeos do Mars One, a empreitada parece tão fácil e exequível e romântica e aventureira que uma pessoa fica a imaginar por que razão a NASA ainda não enviou uma equipa de astronautas a Marte.

Deve ser por não saber como se faz um reality show.

Bas Lansdorp

Bas Lansdorp

O nosso objetivo não é criar um reality show, é mandar pessoas a Marte.

Lansdorp já andava com esta ideia de colonizar Marte há uns quinze anos, ainda era um estudante de Engenharia Mecânica na Universidade de Twente. A partir de 2007 voltou a considerar a empreitada. Quanto mais pensava, mais se convencia de que era possível.

Havia um problema de base: o dinheiro.

Para resolver a questão, Lansdorp teve a ideia de transformar a viagem num imenso espetáculo mediático financiado pelas televisões. Acabou por fazer parelha com o produtor Paul Römer, co-criador de programas como o «Big Brother».

«O financiamento não será problema» – garantiu Römer ao empreendedor – «se criarmos o maior evento mediático à volta disto».

A 21 de maio de 2011, cai o primeiro vídeo promocional no YouTube. A 6 de junho de 2012, a introdução oficial ao projeto. Tal como o visionário da novela «Winning Mars», Lansdorp dá entrevistas e conferências. Desdobra-se em ações de promoção. Procura criar um evento viral. Contacta potenciais parceiros. Pede donativos. E procura minimizar o impacto das opiniões negativas dos céticos, muitos deles cientistas.

Lansdorp acredita que conseguirá obter o financiamento e aponta os Jogos Olímpicos como o exemplo de um enorme acontecimento mediático capaz de gerar enormes receitas. Por exemplo, as Olimpíadas de Pequim em 2008 geraram 866 milhões de dólares em patrocínios.

Lansdorp precisa de 6 mil milhões para o Mars One e ainda está por demonstrar se será capaz de convencer potenciais investidores a gastar tanto dinheiro num empreendimento tão arriscado. Ou que uma missão destas não custará dez vezes mais. Colocar pequenas tripulações na Lua custou aos EUA cerca de 60 mil milhões de dólares… na década de 60.

A não ser que o projeto seja cientifica e tecnologicamente viável, e admitindo que há dinheiro e audiências para investir continuamente, nenhuma empresa do mundo arriscará patrocinar a potencial morte de pessoas num planeta longínquo.

A campanha de crowdfunding para financiar a primeira missão de reconhecimento em 2018 recolheu mais de 313 mil dólares – uma gota de água num imenso deserto financeiro que poderá acabar tão seco e árido como uma planície marciana.

Ilustração: Rafael Vallaperde

Ilustração: Rafael Vallaperde

Take me to your leader

A Cannabis seria muito útil numa missão a Marte.

202.586 sonhadores e aventureiros em todo o mundo – incluindo três portugueses – não se sentiram desencorajados e candidataram-se ao programa Mars One. O número foi sendo progressivamente reduzido até sobrarem 100 candidatos – 50 homens, 50 mulheres – para a derradeira etapa de seleção. Nenhum dos portugueses ficou e apenas um dos finalistas fala português: a brasileira Sandra.

A depuração final destes candidatos será feita ao longo dos próximos três anos. O objetivo é escolher 24 pessoas que formarão seis equipas de quatro tripulantes cada.

«Ainda não decidimos ainda se irá ser algo semelhante ao Ídolos» – afirma Lansdorp. Tal como no concurso de novos talentos, é possível que os telespectadores tenham um papel importante na escolha final dos que irão a Marte.

Um acordo já foi feito entre o projeto Mars One e a Darlow Smithson Productions, subsidiária da gigante Endemol. A produtora irá filmar todo o treino dos candidatos a colonos, mas não interferirá no processo de seleção.

Endemol, Big Brother, Ídolos, Astrofísica, Engenharia, Aeronáutica, Marte – eis uma aliança improvável ou mesmo contranatural. Lansdorp explica-se: «O nosso objetivo não é criar um reality show, é mandar pessoas a Marte».

Joanna Hindle

Joanna Hindle

É Marte, vai ser uma loucura.

O perfil dos candidatos é tão variado como seria de esperar num reality show: há sonhadores e aventureiros com formação científica e há sonhadores e aventureiros sem formação científica. A maioria tem menos de 30 anos, mas há quarentões e cinquentões à mistura.

Joanna Hindle, 42 anos, professora de Inglês vinda do Canadá e um dos 100 finalistas, compensa a ausência de formação científica com simpatia e poesia. Ainda está por determinar de que forma declamar poesia a poderá proteger da radiação em Marte, mas ninguém pode ficar indiferente à sua paixão pela exploração espacial, à empatia que mostra no seu vídeo de apresentação e à vontade de ser uma das primeiras marcianas da história.

Como não tem filhos e os pais já faleceram, abandonar a Terra para nunca mais voltar não é uma decisão tão descabida como isso. Além disso, Joanna sente-se inspirada por «pessoas capazes de colocar de lado os limites que a vida impõe todos os dias». Há Marte no horizonte cósmico, «e isso será uma loucura».

Maggie Lieu

Maggie Lieu

Posso ser a primeira a ter um bebé em Marte.

A inglesa Maggie Lieu, 24 anos, tem um mestrado em Astronomia, Ciência Espacial e Astrofísica tirado na Universidade de Kent, e está a doutorar-se em Astrofísica e Investigação Espacial na Universidade de Birmingham.

Maggie leva a colonização marciana tão a sério que admite a hipótese de ser a primeira mulher a ter um bebé em Marte. «Será um desafio, pois ainda ninguém estudou os efeitos de um ambiente de baixa gravidade no parto. Mas seria engraçado, pois o primeiro ser humano a nascer será realmente marciano».

Primeiro terá de aprender uma série de tarefas envolvendo áreas tão díspares como medicina, canalização, agricultura ou eletrónica. Dado que ficará fisicamente isolada do resto do mundo, ainda lhe vai sobrar muito tempo para decidir qual dos tripulantes será o futuro pai da sua criança.

Ryan MacDonald

Ryan MacDonald

Como é que se pode dizer que não a isto?

Ryan MacDonald, 21 anos, inglês, prestes a terminar o mestrado em Física na Universidade de Oxford, tem um bom currículo para a idade: colabora no design de uma câmara de infravermelhos que equipará a sonda que um dia recolherá amostras em Fobos, uma das luas de Marte; colaborou no projeto da Venus Express; ajudou no tratamento de dados – Higgs Hunters – recolhidos pelo Grande Colisionador de Hadrões do CERN.

Nada disto se compara ao que poderá fazer em Marte, diz Ryan: «Procurar evidências de uma vida presente ou passada em Marte, inspirar as crianças na Terra, contribuir para construir a primeira civilização noutro planeta… Como é que se pode dizer que não a isto?»

E respondendo no Twitter a um jornalista que se queixava de que sem cannabis não seria capaz de embarcar numa viagem a Marte: «Ficarias surpreendido com o que é possível fazer num compartimento hidropónico…»


Fados marcianos

A brincadeira de Ryan teve repercussão no Twitter? Claro! Peter Reynolds, líder de um grupo pró-cannabis, aproveitou a deixa para defender os benefícios de umas boas passas interplanetárias: «A cannabis seria útil para uma missão a Marte. Para muitas pessoas, a erva possui uma dimensão espiritual, promove o relaxamento e unifica-nos com a Natureza e as outras pessoas» – defendeu, deixando resvalar a conversa para a balhelhalogia New Age com a naturalidade de quem sacode a cinza do charro.

«Os Marcianos haveriam de achar esta proibição de usar cannabis completamente absurda» – prosseguiu Reynolds. «Ficariam abismados com o controlo legal sobre uma planta com quem vivemos simbioticamente há dez mil anos».

Por esta altura, já Ryan MacDonald se tinha pirado do Twitter – se for esperto, terá percebido que uma simples brincadeira inconsequente pode ser transformada nas redes sociais numa defesa de grandes mocadas no espaço: «My God, it’s full of stars».

Joanna, Maggie e Ryan são três dos cem candidatos a viajar a Marte. O projeto Mars One mantém uma página com o perfil de cada um, incluindo uma apresentação escrita e em vídeo.

Tanto quanto pude ver, nenhum destes bravos parece muito angustiado em relação à natureza irreversível da missão. É como se tivessem fumado o charro da aventura e caminhassem, alegres e inebriados, em direção à sua própria sepultura.

O Mars One não lhes pede para fazer uma viagem de três dias à Lua, deixar uma pegada pequena para um homem mas gigantesca para a Humanidade, plantar bandeiras, recolher amostras, regressar triunfalmente a casa e enfrentar uma horda de idiotas defendendo que eles nunca lá estiveram; desafia-os a seguir durante quase um ano em direção ao longínquo e inóspito Marte, e nunca mais regressar. Nunca. Para sempre.

Existem, contudo, alguns obstáculos ao empreendimento marciano. Um deles é a realidade.

SpaceX Falcon Heavy

SpaceX Falcon Heavy

Do Reality Show ao Reality Check

Para o Infinito e mais alguém

Não existe ainda nenhum foguetão preparado para levar uma missão tripulada a Marte. O Mars One planeia usar o SpaceX Falcon Heavy. Este foguetão – completou os testes no ano passado e entra em funcionamento já este ano – é realmente impressionante: se tivesse espaço, assegura a fabricante, seria capaz de carregar um Boing 737 cheio de passageiros, carga e combustível.

O SpaceX Falcon Heavy pode transportar até 58 toneladas, mas há uma diferença entre viajar até à Estação Espacial Internacional (ISS), a cerca de 380 quilómetros da Terra, e percorrer uns 240 milhões de quilómetros de Espaço desprotegido em direção a Marte.

É mais ou menos a diferença entre viver com pouca radiação e morrer carregado dela.

A SpaceX tem experiência em levar mantimentos para a Estação Espacial Internacional, mas mesmo estas viagens podem correr mal: numa das missões de reabastecimento em março de 2013, uma falha microscópica numa válvula de verificação da câmara de combustão quase provocou a perda de uma cápsula Dragon. O módulo de aterragem que a Mars One pretende utilizar para colocar a tripulação no planeta é uma «variante» desta cápsula.

Passeio espacial do astronauta sueco Christer Fuglesang | NASA/Bob Curbeam

Passeio espacial do astronauta sueco Christer Fuglesang | NASA/Bob Curbeam

Da exposição da vida privada à exposição radioativa

Há boas razões para a NASA ainda não ter ido a Marte e nem todas têm a ver diretamente com dinheiro ou foguetões.

O maior problema está relacionado com o envio para território desconhecido de uma criatura de carbono tão inteligente como frágil. Ninguém sabe ainda quais os efeitos médicos a longo prazo da exposição à radiação do espaço profundo e a um ambiente sem gravidade. Não se pode afirmar com toda a certeza que é possível sobreviver-se no Espaço durante mais de dez dias: nunca foi feito ou sequer tentado.

Um estudo do Departamento de Neurologia e Anatomia do Centro Médico da Universidade de Rochester corrobora os pessimistas.

«A radiação cósmica é uma ameaça séria aos futuros astronautas» – refere o professor M. Kerry O’Banion, um dos principais autores deste estudo. «Há muito tempo que foi reconhecida a probabilidade de a exposição radioativa no Espaço poder originar problemas de saúde como o cancro. Contudo, o nosso estudo mostra pela primeira vez que a exposição a níveis de radiação equivalentes a uma viagem a Marte pode resultar em problemas cognitivos e potenciar mudanças no cérebro associadas à doença de Alzheimer.»

A exposição à radiação é um problema sério e tem sido um dos principais obstáculos a uma missão tripulada a Marte. A NASA aponta o ano 2035 para a primeira tentativa numa viagem que pode durar três anos, mas só no caso de estes problemas ficarem resolvidos.

Os astronautas da ISS em órbita terrestre baixa beneficiam da proteção do campo magnético do nosso planeta, mas não é a mesma coisa quando se aventuram pelo Espaço profundo e abandonam a proteção da Terra, como os nossos potenciais candidatos a colonos farão se rumarem a Marte. «Um sistema de alerta permite protegerem-se contra a radiação associadas às erupções solares, mas há outras formas de radiação cósmica que ainda não podem ser efetivamente bloqueadas», afirma M. Kerry O’Banion.

Tempestades de poeira em Marte | Ren Wicks

Tempestades de poeira em Marte | Ren Wicks

Em princípios de maio de 2013, cientistas, funcionários da NASA e representantes de empresas privadas de aeronáutica juntaram-se em Washington para discutir os desafios de levar humanos a Marte.

Embora os participantes da conferência não tenham visto qualquer impossibilidade tecnológica que impeça uma missão tripulada no futuro, foram unânimes em declarar que ainda não temos tecnologia para fazer a viagem nos próximos anos. Uma missão interplanetária a esta escala será um dos mais dispendiosos e difíceis desafios de engenharia do século XXI, escreve a Wired na reportagem sobre a conferência.

«Marte está muito longe» – disse na conferência o diretor da Estação Espacial Internacional, Sam Scimemi. «Mais distante do que a ISS em seis ordens de grandeza. Temos de desenvolver novas formas de viver longe da Terra e que nunca foram tentadas antes. Nunca.»

Os problemas por resolver incluem a impossibilidade de armazenar o combustível necessário para tal viagem, a ausência de um veículo capaz de fazer aterrar pessoas em segurança e não se saber ao certo como mantê-las vivas, caso a amartagem seja um sucesso.

O habitat em Marte dos colonos, imaginado por Bryan Versteeg, da Mars One

O habitat em Marte dos colonos, imaginado por Bryan Versteeg, da Mars One

Condições para o crime satisfeitas em 68 dias

Os nossos colonos tão otimistas e cheios de sonhos na cabeça terão de viver em cubículos em condições ambientais mil vezes piores do que a que encontramos na Antártida. Não poderão sair para «apanhar ar» porque não há ar para respirar. As temperaturas em Marte fazem do Polo Norte terrestre uma estância de verão: de 55 a 100 graus negativos. 20 graus positivos só nas regiões equatoriais e durante raros dias de verão.

Os níveis de radiação são fatais, pois a atmosfera marciana é demasiado ténue e a ausência de um campo magnético não só evaporou um volume de oceano superior ao Ártico terrestre durante a infância do planeta como não oferece qualquer tipo de proteção aos seres vivos.

Os investigadores do MIT produziram em outubro do ano passado um relatório perturbante que deve ser levado muito a sério pelos produtores deste reality show interplanetário.

Por exemplo, se a comida é obtida por culturas locais – como imagina o Mars One – a vegetação produzirá níveis poucos seguros de oxigénio, despoletando uma série de eventos que resultarão na morte dos habitantes por asfixia em 68 dias.

Baseando-se no horário de trabalho, níveis de atividade e metabolismo dos astronautas na ISS, o estudo estimou que um colono necessita de consumir 3040 calorias diariamente para se manter vivo e saudável em Marte.

Tais culturas terão de proporcionar uma dieta equilibrada: feijão, alface, amendoins, batata, arroz. 200 metros quadrados de área de cultivo são necessárias, mas o Mars One só prevê cinquenta.

Se a comida for cultivada na mesma área onde vivem os colonos, avisa o MIT, o excesso de oxigénio obrigará à existência de máquinas capazes de separar e ventilar o oxigénio sem perder o nitrogénio – vital para manter a pressão do ar. A tecnologia necessária para manter o oxigénio em níveis seguros nunca foi testada fora da Terra: uma falha nos tanques de nitrogénio, por exemplo, é suficiente para fazer cair a pressão atmosférica e «sufocar o primeiro colono no espaço de 68 dias».

A ideia de que é possível retirar água a partir do gelo descoberto na superfície marciana pelo rover Phoenix em 2008, prossegue o MIT, está dependente de tecnologias que não estão ainda desenvolvidas, sobretudo tendo em conta as condições no planeta.

O Mars One calcula que para levar os suprimentos iniciais para Marte são necessários seis foguetões Falcon Heavy. O MIT considera esta previsão «demasiado otimista» e determinou que serão necessários pelo menos 15 foguetões – só os custos de transporte para esta parte da missão ascenderão aos 4.5 mil milhões de dólares. E o custo aumentará exponencialmente quando chegar a altura de transportar os colonos.

Os investigadores lembram ainda que a todas aquelas despesas é preciso acrescentar ainda os custos de desenvolvimento e compra dos equipamentos.

Olivier de Weck, professor de Aeronáutica e Sistemas de Engenharia e Aeronáutica no MIT, garante que o estudo não pretende declarar que um projeto como o Mars One é inviável, mas «alertar que não é viável segundo os pressupostos atuais da missão.»

O cosmonauta russo Mikhail Kornienko e o astronauta americano Scott Kelly, os primeiros a passar um ano na Estação Espacial Internacional para descobrir os efeitos a longo prazo da ausência de gravidade no corpo humano. | Foto: Patrick Kovarik

O cosmonauta russo Mikhail Kornienko e o astronauta americano Scott Kelly, os primeiros a passar um ano na Estação Espacial Internacional para descobrir os efeitos a longo prazo da ausência de gravidade no corpo humano. | Foto: Patrick Kovarik

Viver durante longos períodos num ambiente de escassa gravidade provoca atrofia muscular e deterioração dos ossos. As funções cardiovasculares também são afetadas, bem como a produção de células sanguíneas. O sistema imunitário enfraquece.

Ainda temos muito para estudar no que respeita aos efeitos que a ausência da gravidade provoca no corpo humano, mas a experiência dos astronautas na Estação Espacial Internacional tem-nos dado boas indicações. A NASA planeia este ano duplicar a duração das missões na ISS para estudar os efeitos de longo prazo do ambiente em gravidade zero: dos habituais seis meses para um ano. Os médicos da agência espacial, contudo, acreditam que ao fim de quatro meses os efeitos da fadiga já começam a ser visíveis.

Como tenciona o Mars One resolver estes problemas? Ninguém sabe.

Foto: Andrew Rich

Foto: Andrew Rich

Missão cumprida, o resto a Endemol que decida

Existem também as alterações psicológicas decorrentes de se viver num pequeno espaço durante demasiado tempo.

Uma reportagem da Discovery Magazine – Can We Go to Mars Without Going Crazy? – depressa nos revela que foram os astronautas que passaram muito tempo a bordo da defunta estação espacial russa Mir os primeiros a chamar a atenção para os perigos de um ambiente claustrofóbico.

Quando Norm Thagard regressou à Terra em 1995 depois de passar vários meses a bordo da Mir, indicou «os desafios psicológicos» como a parte mais dura da missão.

Andy Thomas – outro astronauta da Mir – afirma que sem «esforços intensos para ultrapassar os problemas psicológicos de um grupo de astronautas confinados a um pequeno espaço durante meses, uma missão a Marte falhará».

Para o astronauta russo Valery Ryumin, «todas as condições necessárias à ocorrência de um crime são satisfeitas quando se fecham dois homens numa cabine durante dois meses.»

Só a viagem a Marte demora quase um ano – porque é só uma viagem de ida. Como tenciona o Mars One resolver estes problemas? Ninguém sabe.

Quererá mesmo resolvê-los? Um reality show vive de promessas – e o que interessa filmar é como a promessa de Marte afetará a vida de todas estas pessoas. Como as fará rir ou chorar. Ter esperança ou sucumbir à desilusão. O público chorará por eles e só uma minoria os compreenderá.

Para um reality show, a questão científica é irrelevante. Só o drama importa.

Conseguirá o Mars One equilibrar as necessidades do entretenimento barato e o empreendimento científico? Duvido.

Receio pelos candidatos. Espero que falhem todos e encontrem um novo sentido para as suas vidas aqui na Terra. São demasiado preciosas para serem desperdiçadas.

Terão estes marcianos noção do que significa lutar por sobreviver em condições fisicamente stressantes e psicologicamente miseráveis durante o resto da vida? Já todos perceberam as implicações de uma viagem sem possibilidade de regresso? Que estarão condenados a viver naquele deserto seco e aridamente tempestuoso para sempre, mesmo que passados alguns meses se arrependam de ter abandonado o nosso pálido ponto azul? Acharão que a nova vida em Marte implicará sobretudo longos passeios observando o nascer do sol no topo do Monte Olimpo?

Servirá o treino para lhes fornecer noções práticas sobre o que se preparam para enfrentar ou os organizadores estarão preocupados apenas em criar o maior evento mediático do mundo, um Truman Show à escala interplanetária?

2 comentários

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  1. “Para o astronauta russo Valery Ryumin, «todas as condições necessárias à ocorrência de um crime são satisfeitas quando se fecham dois homens numa cabine durante dois meses.»”
    ——————– LOLLLLLLLLLLLLLLLLLL escangalhei-me a rir! Concordo totalmente com ele!!!! Mas dá pra rir 😀
    Até porque se um dos gajos fosse eu, talvez uma semana bastaria! LOL

  2. “em direção à sua própria sepultura.” ——- já fazemos isto todos os dias! 😉

    Por isso, esse não pode ser um argumento contra uma viagem só de ida para Marte… porque isso é já o que fazemos na Terra 🙂

  1. […] do artigo sobre o Mars One – levar um grupo de colonos a Marte e financiar a operação fazendo de todo o projeto um reality […]

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