Lembram-se do artigo sobre o Mars One – levar um grupo de colonos a Marte e financiar a operação fazendo de todo o projeto um reality show? Seria o concretizar de um sonho: ver representantes da Humanidade – e não de países ou ideologias – explorando solo marciano.
Havia um obstáculo a resolver antes de colocar a ideia em prática: o da realidade dos voos espaciais interplanetários e das missões tripuladas. E o dinheiro.
Agora passámos a saber – através do testemunho de um dos finalistas – que a realidade do próprio Mars One não corresponde ao que nos tem sido contado.
Duras realidades
Mais de 200 mil candidatos responderam à chamada inicial? Ofereceram-se 2761 pessoas. Reality show para financiar? A produtora subsidiária da Endemol afastou-se do processo e até agora mais ninguém se chegou à frente.
Um rigoroso critério de seleção? Foram feitas entrevistas de 10 minutos via Skype – e pouco mais. Inspeções médicas? Os candidatos a astronautas tiveram de pagar do próprio bolso um exame médico para entregar ao Mars One. Seleção dos melhores candidatos? Os que ocupam o top10 da lista são aqueles que fizeram as maiores doações ao projeto.
Instalações para treinos intensivos? Contratos com empresas aeronáuticas para fornecimento da nova tecnologia tão necessária para este gigantesco empreendimento? Não existem nem provavelmente existirão: o Mars One não tem dinheiro para as encomendas. Nunca teve. Dificilmente terá. É um balão cheio de prospetos, vídeos, palavras, promessas e sonhos prestes a rebentar.
Joseph Roche é o «garganta funda» deste caso. Tendo sido um dos 100 finalistas para a hipotética viagem a Marte e com oportunidade para avaliar o processo a partir de dentro, decidiu contar a sua experiência à magnífica revista Matter e as suas revelações são contundentes. O que se segue é uma tradução livre da reportagem original.
A Casa do Degredo
Roche é professor assistente no Colégio Trinity School of Education em Dublin, doutorado em Física e Astrofísica. Inscrevera-se por curiosidade, sem pensar muito nas consequências. Só quando soube que tinha ficado entre os 100 finalistas começou a levar o assunto mais a sério.
O que foi descobrindo – e a ausência dessas informações na comunicação social – começou a deixá-lo preocupado.
Por exemplo, se os candidatos aparecessem nos media a troco de dinheiro – uma prática normal em países como os Estados Unidos, mas não em Portugal – o Mars One «encorajava» os candidatos a doar 75 por cento do dinheiro recebido à organização.
Pontinhos para chegar a Marte
O Mars One começa a atribuir pontos assim que recebe a aplicação de um candidato e quando passa mais uma etapa do processo de seleção, mas a atribuição desses pontos é aleatória e nada tem a ver com um critério pré-definido. «A única forma de ganhar mais pontos» – assegura Roche à revista – «é comprando merchandise ao Mars One ou fazer uma doação em dinheiro. E isto pareceu-me muito estranho no contexto de um plano que necessita de milhares de milhões de dólares para completar o seu objetivo».
A ser verdade o que Roche diz, este «método» implica que os candidatos de maior perfil – incluindo os que apareceram numa lista dos dez com mais hipóteses publicada no mês passado no The Guardian – são as pessoas que deram mais dinheiro a ganhar ao Mars One.
Roche explica também que o processo de seleção é «perigosamente imperfeito: nunca conheci pessoalmente ninguém ligado ao Mars One. De início, foi-nos dito que os candidatos iriam viajar até lá, ser entrevistados e testados durante vários dias – algo que para mim me soou como uma abordagem consistente com um processo de seleção de astronautas».
«Depois fizeram-nos assinar um acordo de confidencialidade» – prossegue Roche – «e assim de repente já não iríamos ser entrevistados ao longo de vários dias, mas através de uma chamada via Skype que durou 10 minutos.»
O que os candidatos a colonos tiveram de fazer até agora? Completar um questionário, fazer o upload de um vídeo para a sua página de perfil no site e enviar o relatório de um exame médico às suas próprias custas, assinado pelo equivalente a um médico de família. «Nada de testes psicológicos. Nada de testes psicométricos. Zero entrevistas pessoais. Apenas um questionário fácil de preencher. Uma porcaria de um vídeo que enviei. E uma conversa de dez minutos via Skype.»
Esta idílica missão não parece ter consistência. Nem a parte «reality show» parece estar a funcionar, uma vez que a produtora subsidiária da Endemol já se desligou do projeto. Um nome sonante que apareceu ligado ao Mars One como «conselheiro» – o Prémio Nobel e Físico Teórico Gerard Hooft – fez as contas e afirmou que o prazo mais realista para uma missão tripulada a Marte era de 100 anos, não 10.
«O que me incomoda é que as pessoas que continuam a apoiar o projeto, a dar-lhe dinheiro e atenção, irão inevitavelmente perceber que o castelo de cartas acabará por desabar» – admite Roche. «E o que me causa pesadelos é pensar que por causa do Mars One o público venha a perder confiança na NASA e até mesmo nos cientistas, prejudicando a perceção pública da Ciência.»
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[…] episódio até foi giro. Mas infelizmente, a Mars One é somente sensacionalismo para publicidade própria. Sheldon Cooper também caiu na estratégia de marketing […]