Desde que a humanidade começou a ponderar sobre si e os seres vivos ao seu redor é que nos perguntamos o que nos faz diferentes dos animais. E desde que a Seleção Natural demonstrou que, na prática, estamos no mesmo “barco” que qualquer outro ser vivo nós, mesmo que inconscientemente, buscamos formas de “provar” que somos de alguma forma “superiores” (e falhando miseravelmente). Das diversas tentativas de justificar nossa posição no planeta, uma que se destaca é a autoconsciência (self-awareness), que nada mais é do que a capacidade de olhar “para si” e se reconhecer como um indivíduo, diferente dos outros e com seus próprios desejos, intenções e expectativas.
Os avanços, não só da neurociência, mas de outras áreas de estudo demonstraram que outros primatas são capazes de autoconsciência. E, segundo um novo estudo, não só os primatas a possuem, mas qualquer animal capaz de simular ambientes mentalmente.
Para explicar um pouco mais: Entre as capacidades do ser humano está a habilidade de simular ambientes mentalmente, no espaço e no tempo, ou seja; podemos lembrar de decisões do passado e também projetar eventos no futuro – esperados, prováveis ou intencionados. Para que possamos ser capazes de tal simulação, precisamos saber distinguir o que é uma produção puramente mental do que está acontecendo no exato momento e sendo registrado pelos sentidos.
Mas, para que seja possível distinguir fantasia de realidade, é necessário ao menos algum nível de autoconsciência – pelo menos é o que sugerem os pesquisadores da Universidade de Warnick, através de um experimento que demonstra que a autoconsciência (ou pelo menos uma versão primitiva desta) é condição necessária para a habilidade de forrageamento (busca e exploração de recursos) dos animais.
Os pesquisadores foram inspirados por trabalhos conduzidos nos anos 50, sobre a navegação dos ratos pelo ambiente, onde foi observado que estes animais, ao se depararem com situações onde precisam tomar uma decisão (como em caminhos bifurcados, por exemplo), normalmente param por um tempo, aparentando estar decidindo sobre suas ações futuras. Pesquisas mais recentes em neurociência descobriram que estes “pontos de decisão” em ratos e outros vertebrados ativam regiões do seu hipocampo que aparentam simular escolhas e suas potenciais consequências.
Os professores Hills e Stephen Butterfill, do Warwick’s Department of Philosophy, criaram diferentes modelos descritivos para explicar o processo por trás da escolha dos ratos nos “pontos de decisão”.
Um modelo, o modelo ingênuo, presume que animais suspendem ações durante a simulação. No entanto, este modelo criaria falsas memórias, uma vez que o animal não teria condições de diferenciar entre as ações reais e imaginárias.
O segundo modelo, o autoatuante, foi capaz de resolver este problema justamente por possuir uma “marcação” capaz de distinguir entre a experiência real e a imaginada. Os professores chamaram esta marcação de “Primal Self” (ou “eu primitivo”, em tradução livre).
“O estudo responde a uma velha questão: animais possuem um senso de ‘eu’? Nosso primeiro objetivo era entender as recentes evidências neurais de que os animais podem projetar-se no futuro. O que acabamos entendendo é que, para fazer isso, eles devem ter um senso primitivo de ‘eu’. Por conta disso, humanos não devem ser os únicos animais capazes de autoconsciência; de fato, a pesquisa nos leva a acreditar que a resposta é que tudo, incluindo robôs, capazes de imaginar-se fazendo coisas que não fizeram ainda, são capazes de separar o conhecedor do conhecido.”, explica o professor HIlls.
O título completo do estudo é “The study, From foraging to autonoetic consciousness: The primal self as a consequence of embodied prospective foraging”, e foi publicado no periódico Current Zoology.
Embora a pesquisa seja extremamente interessante, acho que é importante apontar que ela parte de um pressuposto que ainda me parece ser bastante controverso – ou seja, de que ao menos todos os animais vertebrados são capazes de projetar-se no futuro e imaginar ações que não aconteceram. É um insight fantástico, sem dúvida, mas ainda me parece muito mais hipotético do que, propriamente, uma “descoberta”. Mas posso estar sendo apenas excessivamente cauteloso.
Caso isso seja de fato o que acontece, as consequências para estudos futuros são promissoras, especialmente no campo da inteligência artificial. E, ao mesmo tempo, levanta algumas questões: Se conseguirmos programar com sucesso um robô para projetar-se mentalmente no futuro a partir da visualização do passado, ele já é, como consequência, consciente? Ou, ao contrário, um robô nunca será capaz de tomar suas próprias decisões a menos que se torne autoconsciente (e, nesse caso, o problema de como surge a consciência continua)?
Por enquanto, esta pesquisa deixa mais perguntas do que respostas. Mas não deixa de ser um insight fascinante.
Fontes:
Phys.org
BUTTERFILL, Stephen; Hills, Thomas T. From foraging to autonoetic consciousness: The primal self as a consequence of embodied prospective foraging. Current Zoology.
1 comentário
Questão muito interessante. Não sou vegetariano, mas por vezes fico pensativo sobre esta questão da consciência animal, para mim é claro que eles possuem, em diferentes níveis, sendo os cordados de alto nível (mamífero, aves, etc) provavelmente os que tem esta capacidade mais desenvolvida.
Porém toda vez que eu como uma costela de porco ao molho barbecue, uma galinha caipira, uma tilápia bem grelhada, eu deixo de pensar nisto, pelo menos momentaneamente. rsrs