Estudo desvenda o impacto profissional da retratação de pesquisas

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Fazer ciência nem sempre é uma ciência exata (não resisti ao trocadilho, desculpem). Por mais que tenhamos diversas ferramentas e métodos (pré, durante e pós pesquisa) para garantir o máximo de objetividade e o mínimo de viés (ideológico, financeiro, religioso, etc), é impossível acertar 100%. Sempre haverá erros na metodologia utilizada e sempre existirão pessoas de má fé que querem apenas ter seu artigo publicado para justificar suas posições, mesmo ao custo de manipular e distorcer dados e resultados. Infelizmente, é inevitável. É por isso, por exemplo, que existe a revisão por pares, para garantir que outros pesquisadores possam, de maneira independente, avaliar os resultados e detectar possíveis problemas na metodologia.

Quando um estudo é publicado por um periódico confiável, o artigo eventualmente será usado como referência e citado por outros pesquisadores em novos estudos. As citações são, em grande parte, um atestado da credibilidade e do impacto daquela pesquisa, e reforça o status do(s) pesquisadore(s) envolvidos perante a comunidade científica, não só do estudo em questão, mas de seus trabalhos posteriores.

Mas quando um artigo é publicado num desses periódicos, e posteriormente são constatados erros (sejam erros “honestos” como problemas em metodologias, ou fraude), o periódico necessita retratar-se perante a comunidade (científica e geral) e rever a publicação para garantir que todos saibam que aquele estudo possui problemas. Afinal, se esta pesquisa com erros continuar reverberando na rede de informações da comunidade científica, poderá danificar seriamente, não só a prática científica como um todo, não só a reputação dos autores, mas a credibilidade da própria ciência como corpo de conhecimento confiável.

Mas o que realmente acontece com a quantidade de citações e a reputação dos pesquisadores quando há retratação de um artigo? Algumas respostas dadas num estudo feito pelos economistas Pierre Azoulay, Alessandro Bonatti e Joshua Lev Krieger, da Sloan School of Management e vinculada ao MIT, merecem nossa devida atenção. Segundo o estudo, publicado num documento do National Bureau of Economic Research (NBER), o status do cientista e os motivos da retratação do artigo são fatores que interferem no índice de queda de citações da pesquisa que teve a retratação.

O interesse do trio de economistas era investigar como escândalos afetam a confiança nas pessoas envolvidas, pois há poucas informações sobre este tema. A percepção sobre os cientistas que cometem erros ou desvios permite, segundo os autores, analisar empiricamente esse fenômeno. Para chegar a esses resultados, foram identificados 878 artigos da área biomédica que haviam sido retratados entre os anos de 1980 e 2009. Entre os responsáveis pelos artigos havia 376 pesquisadores baseados nos Estados Unidos sobre os quais se levantaram dados como as citações de seus outros trabalhos ao longo do tempo. Para efeito de comparação, foram compilados dados sobre um grupo de controle com 759 autores da mesma área que não tiveram artigos retratados.

A retratação prejudica mais cientistas prominentes do que seus pares menos conhecidos, mas apenas nos casos de fraude e má conduta. Quando a retratação se refere a erros não intencionais, o prejuízo é pequeno e o prestígio do pesquisador não faz realmente diferença. A queda média nas citações de um artigo após a retratação é de cerca de 10%, mas pode chegar a 20% quando envolve lideranças de grupos de pesquisa acusadas de má conduta.

Curiosamente, estes resultados discordam em parte de outro documento do NBER de 2013, produzido por pesquisadores das universidades de Maryland e de Rochester e da Kellogg School of Management, que analisou o impacto da retratação de um artigo entre seus diversos coautores. Neste trabalho em particular, pesquisadores seniores, que em geral assinam por último na lista de autores, têm prejuízo pequeno e sobrevivem ao cancelamento de um artigo, enquanto pesquisadores jovens, como aqueles que assinam em primeiro lugar na lista, como autores principais, sofrem até mesmo perda de posição no grupo de pesquisa quando ocorre um escândalo envolvendo fraude, plágio ou falsificação. Os estudos (de 2013 e o atual), no entanto, possuem objetos diferentes: no mais antigo, foi analisado o impacto dentro de grupos de pesquisa, enquanto que o estudo mais recente compara pesquisadores que pertencem a diferentes grupos.

Mais do que a reputação do pesquisadores (que eram o verdadeiro objeto do estudo), me preocupa a continuidade das citações dos próprios artigos retratados (seja em novos estudos ou informalmente), especialmente nos casos de má conduta/fraude, que pode ter consequências profundas e perigosas para a sociedade a curto, médio ou longo prazo. Basta lembrar da suposta correlação entre vacinas e autismo, fomentada por um artigo de 1998 de um ex-médico britânico chamado Andrew Wakefield, que mais tarde foi retratado  – o autor inclusive acabou perdendo sua licença por má conduta*. Mesmo com as penalizações contra Wakefield, o estudo continua até hoje reverberando, direta ou indiretamente, como “evidência” de que vacinas causam autismo e, quando cai nas mãos de formadores de opinião sem nenhum conhecimento de como a ciência funciona (como celebridades com grande número de seguidores), este tipo de engano se espalha como incêndio numa floresta, e há pouco que os pesquisadores realmente sérios consigam fazer para reparar o dano.

Pesquisa científica é coisa séria. É por isso que os cientistas costumam ser tão cautelosos com resultados de pesquisas. Não é teimosia; é a prudência de profissionais que entendem que até mesmo pequenos erros podem ter grandes consequências para a sociedade como um todo. Consequências que sejam muito difíceis de reparar.

 

Fonte:
Revista Pesquisa Fapesp

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Artigo original:
Azoulay, Pierre ; Bonatti, Alessandro ; Krieger, Joshua L. The Career Effects of Scandal: Evidence from Scientific Retractions. NBER.

 

*Outra coisa que vale ressaltar sobre Wakefield é que, à época, ele tentava patentear uma “vacina realmente segura”. Apesar dele ter negado o ocorrido, o pedido de patente está hoje disponível na internet.

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  1. […] que cada artigo foi citado por outros artigos revisados por pares – que, como eu comentei em outro texto, costuma ser usado como medida de […]

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