Seixos rolados num antigo leito fluvial, no interior da cratera Gale.
Crédito: NASA/JPL-Caltech/MSSS.
Marte é hoje um planeta frio e árido, mas há 3 mil milhões de anos a situação era muito diferente. Depósitos de seixos rolados descobertos pelo Curiosity em 2012 sugerem que no passado a água fluiu abundantemente na superfície marciana, criando redes hidrográficas relativamente estáveis. Um novo estudo publicado na semana passada na revista Nature Communications vem agora revelar evidências concretas de que os seixos observados pelo robot da NASA foram arrastados por um sistema fluvial ao longo de cerca de 50 km! Os resultados baseiam-se numa combinação de modelos teóricos e experiências laboratoriais desenhados para demonstrar como a forma destes pequenos fragmentos de rocha pode ser usada para reconstruir com precisão o seu transporte ao longo do leito de um rio.
“Há milhares de anos, Aristóteles ponderou sobre a questão dos seixos na praia e de como eles se tornam arredondados”, disse Douglas Jerolmack, um geofísico da Universidade da Pennsylvania, nos Estados Unidos, e um dos coautores deste trabalho. “Contudo, até recentemente, as descrições da forma dos seixos foram sempre qualitativas e faltava-nos uma compreensão básica do processo de arredondamento.”
Para enfrentar este problema, Jerolmack recrutou Gábor Domokos, um matemático da Universidade de Tecnologia e Economia de Budapeste, na Hungria, responsável pela descoberta do Gömböc, um objeto tridimensional invulgar com apenas 2 pontos de equilíbrio estático (um estável e outro instável). O Gömböc comporta-se de forma muito semelhante a um boneco sempre-em-pé, retornando sozinho ao seu ponto de equilíbrio estável independentemente da forma como é posicionado numa superfície horizontal. No entanto, ao contrário do boneco sempre-em-pé, a estrutura interna do Gömböc é homogénea, o que faz com que as suas propriedades mecânicas sejam determinadas apenas pela sua forma.
Tendo em conta que a abrasão tende a diminuir o número de pontos de equilíbrio estático das rochas, o Gömböc representa teoricamente o auge desse processo e ilustra como a forma per se pode armazenar informações vitais acerca da história natural de um objeto. Com base nesta premissa, Domokos cedo percebeu que poderia adaptar a conjetura de Poincaré (um famoso problema de matemática apenas recentemente resolvido) para descrever a evolução da geometria de estruturas tridimensionais, quando estas são submetidas a desgaste mecânico.
“A forma de um objeto pode, só por si, dizer-nos muita coisa”, explicou Domokos. “Se formos a uma praia, vamos encontrar a história natural escrita debaixo dos nossos pés. Começámos a perceber que existe um código que podemos ler para compreendermos essa história.”
A evolução dos contornos exteriores de um seixo rolado é orquestrada pela ação abrasiva produzida pelas colisões com outras rochas do leito fluvial, pelo que a história do seu percurso ao longo do rio está, de certa forma, inscrita na perda de massa resultante desse processo. Como não estão disponíveis dados relativos à massa dos seixos marcianos, Domokos desenvolveu um novo modelo matemático para determinar a perda de massa dos fragmentos de rocha observados pelo Curiosity usando apenas a sua forma. O seu trabalho demonstrou que, quando duas partículas de tamanho semelhante colidem entre si, a forma como influenciam a estrutura tridimensional uma da outra pode ser reduzida a um problema puramente geométrico, independentemente dos materiais que as constituem ou do ambiente onde se movem.
Modelo tridimensional da cratera Gale. Está assinalado a verde o local onde o Curiosity poisou.
Crédito: NASA/JPL-Caltech/ESA/DLR/FU Berlin/MSSS.
Com o objetivo de testar o modelo de Domokos, os investigadores realizaram uma série de experiências laboratoriais desenhadas para simular a abrasão natural de pequenos fragmentos rochosos. Recorrendo a um pequeno tambor em rotação, a equipa avaliou a evolução da forma e a perda de massa de cerca de 80 fragmentos de calcário com 15 a 35 mm de diâmetro. Os resultados mostram que a alteração da forma das rochas segue um padrão muito próximo do previsto pelo modelo matemático.
Em seguida, os investigadores compararam os resultados das experiências laboratoriais com dados recolhidos num rio de montanha, em Porto Rico. “Começámos na nascente, onde pedaços de rochas angulares se soltam das paredes do riacho e são arrastados para jusante”, disse Jerolmack. “Apanhámos milhares de seixos a cada poucas centenas de metros, captámos imagens das suas silhuetas e registámos o seu peso.” Os dados confirmaram, mais uma vez, que a relação entre a evolução da forma e a perda de massa é concordante com o previsto pelo modelo de Domokos.
Para explorar as consequências desta relação num ambiente comparável ao dos depósitos marcianos, os investigadores executaram a mesma análise a um conjunto de seixos rolados provenientes de um leque aluvial localizado a jusante de um desfiladeiro numa zona árida do Novo México, nos Estados Unidos. Os resultados demonstram que a distância percorrida por um seixo desde a sua origem a montante pode, de facto, ser inferida usando apenas a silhueta do seixo.
Com esta informação nas mãos, Jerolmack e os seus colegas voltaram-se para o caso particular de Marte. Usando imagens captadas pelo Curiosity, a equipa traçou os contornos de mais de 500 seixos exumados em dois afloramentos rochosos distintos localizados nas proximidades do leque aluvial que parte de Peace Vallis, um antigo desfiladeiro talhado nas montanhas da orla setentrional da cratera Gale. Aplicando o modelo matemático de Domokos, os investigadores descobriram que os seixos marcianos perderam aproximadamente 20% da sua massa original.
Para traduzir a perda de massa em distância percorrida, a equipa contou com os dados recolhidos no Novo México e em experiências laboratorais anteriores desenhadas para calcular o desgaste mecânico induzido pelos leitos fluviais em rochas com diferentes composições. Depois de considerarem a composição dos materiais presentes no interior da cratera Gale e o efeito mais reduzido da gravidade de Marte, os investigadores concluíram que os seixos viajaram cerca de 50 km!
Estes resultados confirmam que os depósitos sedimentares observados pelo robot da NASA tiveram origem no cimo das montanhas da orla setentrional da cratera Gale e reforçam a ideia de que Marte poderá ter albergado no passado condições favoráveis à vida tal como a conhecemos. “Temos agora uma nova ferramenta que podemos usar para ajudar a reconstruir ambientes antigos na Terra, em Marte e noutros corpos planetários onde também encontramos rios, como [por exemplo] em Titã”, explicou Jerolmack.
Podem encontrar todos os detalhes deste trabalho aqui.
2 comentários
Existe a intenção de “recriar” uma floresta em Marte? Isso é possível, mesmo não tendo água aparente? E se conseguisse, isso ajudaria a criar uma atmosfera possível a torná-lo habitável?
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Olá Mirian,
As condições na superfície de Marte são demasiado inóspitas para organismos tão complexos como as plantas superiores. E o problema não se resume só à água ou às amplitudes térmicas diárias ou ainda à atmosfera rarefeita. Marte não tem um campo magnético global, pelo que a sua superfície encontra-se exposta a doses de radiação ionizante (vento solar e radiação cósmica) demasiado elevadas, mesmo para organismos mais simples como as bactérias.
Apesar de tudo, têm sido realizadas experiências em que expõem organismos fotossintéticos, como os líquenes ou as cianobactérias, a condições semelhantes às da superfície de Marte (ver por exemplo aqui). Os resultados têm demonstrado que os organismos melhor adaptados a ambientes extremos na Terra têm, em princípio, capacidade para sobreviver em nichos ecológicos mais resguardados na superfície do planeta.