A sociedade tecnológica em que vivemos é uma consequência directa do nosso domínio sobre os números. Um número é um quantificador abstracto: quando afirmamos que 1+2=3, não estamos a referir-nos a nada em particular, ou seja, a afirmação é válida independentemente daquilo que os números representem. Notem o poder imenso da abstracção: permite-nos generalizar. Não precisamos de um sistema de contagem distinto para quantificarmos o número de árvores, os livros de uma biblioteca, ou a área de uma floresta: reduz-se tudo aos mesmos números. A nossa capacidade de abstracção, porém, não se fica por aqui. Ao estudarmos as propriedades dos números começamos a compreender algo que parece transcender a sua natureza objectiva de onde aparentemente foram criados. É válido então questionar: inventámos ou descobrimos os números? Será a Matemática algo intrínseco ao nosso universo, ou apenas uma criação lógica intelectual que nos ajuda a compreendê-lo?
Neste artigo vou começar por discutir um pouco da Filosofia que envolve os números. Peço a vossa indulgência para esta parte. Se o leitor não tiver interesse nesta discussão filosófica, pode passar à secção seguinte onde apresento os números naturais, inteiros, racionais, reais e transcendentais.
Será que os números existem? Os platónicos acreditavam que sim. Segundo o platonismo, os números são entidades abstractas que existem fora do nosso universo. Ou se se preferir, existem, mas não os podemos “localizar” no espaço-tempo. Afirmavam que tinha que ser assim para que as demonstrações matemáticas (e consequentemente os teoremas) pudessem ser consideradas verdadeiras (veja o artigo sobre a Demonstração do Teorema de Pitágoras para compreender a quê que me refiro como demonstração matemática). Naturalmente, o leitor, tal como eu, poderá questionar a definição de “existência” neste contexto. Se limitarmos o conceito de “existência” àquilo que pode ser identificado no nosso universo, então os números deixariam de “existir” nesta conceptualização (do mesmo modo teríamos que reavaliar a existência de outros conceitos abstractos).
Já os nominalistas rejeitam que os números “existam”, e assumem antes que os números representam “coisas” reais no nosso universo, e é por isso que os teoremas matemáticos podem ser considerados verdadeiros, porque estão a descrever propriedades do nosso mundo. Esta visão tem um problema evidente que é facilmente identificado por alguém que tenha estudado um pouco de Matemática: então e quando falamos de números que não podem ser directamente “mapeados” em coisas concretas? Os números imaginários serão o exemplo natural a recordar (explicarei na segunda parte em que consistem estes números).
Existe ainda o ficcionalismo, segundo o qual as demonstrações matemáticas são essencialmente falsas e os números não existem. Admitem simplesmente que a Matemática é útil, mas que apesar de bem sucedida, tal não implica que seja verdadeira. Mas nesse caso, como podemos validar ou falsificar um raciocínio abstracto? Parece que tudo quanto pudéssemos pensar é essencialmente falso, o que acabaria por ser redundante, tornando os conceitos de “verdadeiro” e “falso” insignificantes.
Em suma, temos duas questões fundamentais: os números existem? As demonstrações matemáticas são verdadeiras? Se quisermos responder “não” à primeira questão, como poderemos justificar um “sim” à segunda? Eu sou naturalmente tentado a assumir que os nominalistas estão certos, simplesmente nem sempre é fácil de definir o mapeamento entre a abstracção e o objectivo. No caso do número imaginário, estamos a falar de uma abstracção em relação aos próprios números, ou seja, em relação a outra abstracção, pelo que é necessário fazer mapeamentos indirectos. Existem abstracções que assentam noutras abstracções, que assentam noutras, … , que eventualmente se alicerçam na realidade tangível.
É também razoável perguntar: os números são exclusivos ao Homem? Embora não sejamos capazes de comunicar com outros animais, as evidências apontam para que não sejamos únicos nesta capacidade (somos apenas mais evoluídos). Chimpanzés, ratos e papagaios (entre outros) já foram treinados para contar e até conseguem reconhecer os próprios símbolos que usamos para representar números (os algarismos de 0 a 9). Por exemplo, na Universidade de Kyoto treinaram um chimpanzé a reconhecer um dado número de objectos (até 6) num monitor: quando os objectos lhe eram apresentados, o chimpanzé pressionava a tecla com o respectivo número. Poderá supor-se que o chimpanzé teve apenas que aprender a associar um número à sua representação, sendo que a capacidade de contar já lhe era nata. O mesmo se aplica a nós: aprendemos na escola o “nome” dos números e a sua representação linguística e simbólica. O contar como reconhecimento quantificador é à partida uma característica nata em nós (e noutros animais).
Feito este preâmbulo, permitam-me então mergulhar no mundo dos números, para compreendermos em que consistem as diferenças entre eles.
Já aqui referi os algarismos indo-arábicos, 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9, com os quais podemos representar qualquer número. São dez algarismos, e por isso dizemos que este sistema de numeração tem base 10. Existiram e existem outros sistemas com outras bases. Por exemplo, o sistema binário (0 e 1) usa base 2. Se usássemos o alfabeto para contar, com o A a representar o 0, B-1, C-2, etc., então teríamos uma base de 26 (a contar com as letras K, W e Y), e, por exemplo, BB seria o mesmo que 27 (Z=25, BA=26, …).
Este esquema representa a evolução dos símbolos que hoje usamos para representar os algarismos de 0 a 9.
Em Matemática definem-se vários conjuntos de números com nomes diferentes. Passemos a conhecê-los:
- Naturais: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 … e podem continuar a somar 1 ao número anterior até ao infinito para terem todos os números deste conjunto. São os números que usamos para contar “coisas”. A operação da adição está sempre definida neste conjunto, ou seja, a soma de quaisquer números naturais resulta num outro número natural. O mesmo acontece com a multiplicação: o produto de dois números naturais é um número natural. A subtracção, porém, assim como a divisão, podem dar resultados fora deste conjunto.
Podemos desde já introduzir a noção de “par” e “ímpar” para qualificar os números, que nos será útil mais adiante. Um número natural é par se e só se a sua divisão por 2 der como resultado um número natural. Assim: 3/2= 1.5 – é ímpar; 4/2=2 – é par. Os pares e ímpares aparecem alternadamente neste conjunto.
- Inteiros: … -3, -2, -1, 0, 1, 2, 3, … Este conjunto contém todos os números naturais, o zero, e ainda todos os números “naturais negativos” (conjunto dos números naturais a multiplicar por -1, se preferirem). Neste caso, a subtracção passa também a dar resultados que estão sempre contidos no conjunto, como é evidente. A divisão mantém-se de fora, pois, por exemplo, 1/2 =0.5, que não pertence a este conjunto. Com os números negativos podemos, por exemplo, contabilizar dívidas, ou temperaturas negativas.
- Racionais: os números deste conjunto podem ser definidos por um quociente, ou seja, um número inteiro a dividir por um número natural (ou se preferirem, inteiro a dividir por inteiro, que não seja zero). Inclui todos os inteiros, mais uma infinidade de fracções (os números racionais também podem ser chamados de fraccionários). Note-se que entre quaisquer dois inteiros existem infinitos números racionais; por exemplo: 1/2, 1/3, 1/4, … 1/100 … 1/1000000 … estão entre 0 e 1. Com estes números podemos contabilizar partes não inteiras de “coisas”. O exemplo habitual é o das fatias de pizza, em que, por exemplo, um corte ao meio representa uma divisão por dois.
Os gregos pensaram que os números racionais deveriam ser suficientes para representar qualquer quantidade. Se considerássemos uma régua, parecia que à partida poderíamos ter um número racional para cada ponto da régua, tendo em conta a existência de infinitos números racionais entre dois inteiros (ou mesmo entre dois racionais). Se a densidade de números racionais era tão grande quanto desejável, então isso deveria significar que deveriam preencher o “espaço”. Foi por isso com enorme surpresa e consternação que descobriram que a raiz quadrada de 2 não corresponde a um número racional, ou seja, não pode ser representado por um quociente. (Recordo que a raiz quadrada é a operação inversa do quadrado. O quadrado de um número multiplica-o por ele próprio, enquanto que a raiz quadrada de X “descobre” o número Y que multiplicado por ele próprio dá X.)
A raiz quadrada de 2 terá alegadamente surgido quando se quis calcular a hipotenusa do triângulo rectângulo de catetos iguais a 1. Aplicando o Teorema de Pitágoras, a hipotenusa é a raiz quadrada de 2:
Como é que sabemos que não se trata de um número racional?
Demonstração: raiz quadrada de 2 não é racional
Comecemos por assumir que de facto é racional:
Em que p e q são dois números naturais. É importante compreender que a fracção está necessariamente na sua forma mais reduzida, sem factores comuns (por exemplo, 4/6 = 2/3, porque o 4 e o 6 tinham um factor comum, o 2). Por outras palavras, os factores comuns cancelam sempre, e fica apenas o p e o q.
Se colocarmos ambos os lados ao quadrado obtemos:
Ou seja
Sabemos que o resultado de 2 a multiplicar por qualquer número natural nos dá um número par, o que implica que ‘p’ ao quadrado é um número par. Como é fácil de verificarem, isso implica que o próprio ‘p’ tem que ser par (o quadrado de um número par dá um número par, enquanto que o quadrado de um ímpar dá ímpar). Se ‘p’ é par, então pode ser escrito na forma p=2r, em que ‘r’ é um outro número natural.
Portanto:
Logo,
Ou seja, usando os mesmos argumentos de antes, também o ‘q’ é par. Mas tal é impossível! Se o p e q são ambos par, isso implica que o 2 é um factor comum. Contudo, como disse, o p e o q não podem ter factores comuns por definição!
Se não estiver a perceber porquê, veja que se p e q são pares, então p=2r, q=2m, em que r e m são naturais. Ficamos com:
Poderíamos voltar a repetir a demonstração de cima usando o r e o m, e voltaríamos a encontrar a mesma conclusão: que tinham um factor de 2 em comum. Por outras palavras, os números ‘p’ e ‘q’ poderiam ser divididos por 2 infinitas vezes, o que é evidentemente um absurdo.
Cometemos algum erro? Sim, na suposição inicial. Raiz de 2 não pode ser definido como uma fracção! (Este tipo de demonstração é chamada de “demonstração por redução ao absurdo” em que partimos de uma premissa falsa para demonstrar que a mesma nos conduz a algo impossível.)
Alegadamente, Pitágoras ficou extremamente aborrecido pois achou que a raiz de 2 (bem como outras raízes) “estragavam” a perfeição dos números (e consequentemente da Matemática e da lógica do intelecto humano). A lenda conta-nos que Pitágoras terá mandado afogar Hipaso de Metaponto por este ter descoberto e defendido esta “irregularidade” (que Pitágoras foi incapaz de resolver).
(Devo aqui acrescentar que a existência de números irracionais já tinha sido reconhecida cerca de 200 anos antes dos pitagóricos na Índia.)
- Reais: os números irracionais, ou seja, os que não podem ser definidos como a razão entre um inteiro e um natural pertencem ao conjunto dos reais. Os números reais incluem os conjuntos acima referidos, mais os irracionais (como a raiz de 2). Estes são os números que efectivamente preenchem o espaço. Com eles podemos quantificar qualquer tipo de distância, área, volume, etc.. (Sem querer entrar em detalhes, refiro apenas que a sua definição matemática formal manteve-se por muito tempo um problema central insolúvel em Matemática, tendo a solução apenas surgido já na segunda metade do século XIX!)
O leitor talvez se esteja a recordar que a constante pi (a razão do perímetro de qualquer círculo pelo seu diâmetro) também não é um número racional. Não teriam também os gregos tropeçado nesse facto? Não, porque a demonstração de que pi não é racional revelou-se bem mais difícil que a da raiz de 2, tendo apenas sido conseguida no final do século XVIII por Lambert e Legendre.
Poder-se-ia pensar que o conjunto dos números reais ficaria completo considerando todas as raízes de números racionais, mas não. O pi (tal como o número de Euler, que detalharei na terceira parte) é um número transcendental, o que significa que não pode ser escrito nem na forma de uma razão, nem na de uma raiz de um número racional. Assim, os números transcendentais são irracionais, mas um número irracional não é necessariamente transcendental (como é o caso da raiz quadrada de 2).
Ao contrário do que o leitor possa pensar, os números transcendentais não são de modo algum raros no conjunto dos reais: há na verdade muitos mais transcendentais do que números de qualquer outro subconjunto (naturais, inteiros, fraccionários e irracionais não transcendentais). Quando ainda só se tinha provado a existência de 3 números transcendentais, Georg Cantor surpreendeu toda a comunidade matemática ao demonstrar que quase todos os números reais são transcendentais! (O que é difícil é defini-los e provar a sua transcendência.)
Na segunda parte irei prosseguir com números complexos, transfinitos (para contar infinitos!), primos (irei provar a existência de um número infinito de primos), amigáveis, perfeitos, etc..
Como estudar Matemática – Não leia apenas; lute com ela! (Paul R. Halmos)
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Só uma correção
”O que é difícil é defini-los e provar a sua transcendência”.
Números transcedentais são definidos como os números que não podem ser raíz de um polinômio com coeficientes racionais. Parabéns pelo artigo, é raro ver um físico falar com domínio sobre esse tema, e de fato, alguns físicos que vejo confudem a notação matemática com a matemática em sí.
Author
Caro André,
Obrigado pelo seu comentário, mas não compreendeu o que eu queria dizer. O problema é definir um dado número como transcendente (daí serem conhecidos tão poucos números transcendentes, apesar de se saber existirem “imensos”). Como é evidente, a definição de transcendência é clara.
Cumprimentos,
Marinho
Ué, mas isso é fácil, é só provar que ele não pode ser ma raiz de um poliômio de coeficientes inteiros…LOL
Obrigado pel texto.
Eu vejo muito o site apesar de comentar quase nada, mas tinha que dar os parabéns pela charge, ri demais aqui pensando: exatamente , isso é exatamente o que se tem que fazer .
“Não, porque a demonstração de que pi não é racional revelou-se bem mais difícil que a da raiz de 2, tendo apenas sido conseguida no final do século XVIII por Lambert e Legendre.”
Não foi também um matemático indiano que o tinha feito antes como imensas outras coisas que simplesmente não tinham chegado à Europa.
Author
Olá Nuno,
Agradecia que me indicasses uma referência credível disso. Todos os livros que vi falavam no Lambert como o primeiro.
Cumprimentos,
Marinho
Esqueci me de colocar um ? pois era no sentido de perguntar.
Parece-me que deste documentário fiquei com essa ideia
http://www.dnatube.com/video/6534/The-History-of-Mathematics–BBC-doc-part1
Ontem vi este na RTP2 e infelizmente o episódio 1 já sai das gravações automáticas mas vou procurar na net.
http://www.rtp.pt/programa/tv/p32067/e2
Author
Ah. Sendo assim a resposta é à partida não, visto que confirmei a informação através de várias fontes supostamente credíveis.
Cumprimentos,
Marinho
[…] a soma de todos os números naturais? Recordo que um número natural é um número inteiro maior que zero, isto […]
[…] primeiras três partes deste artigo falei-vos de vários conjuntos diferentes de números (parte I, parte II, parte III), e na quarta parte foquei-me em alguns números em particular, nomeadamente […]
[…] vos falei de números naturais, inteiros, racionais, irracionais, transcendentais, reais (primeira parte), imaginários, complexos, transfinitos, primos (segunda parte), perfeitos, amigos, e normais […]
[…] Na primeira parte falei-vos dos números naturais, inteiros, racionais, irracionais, transcendentais e reais. Na segunda parte abordei os números imaginários, os complexos, os transfinitos, e os primos (mais as suas “sub-famílias”). […]
[…] Na primeira parte discuti um pouco da filosofia sobre a existência dos números, e apresentei-vos os números naturais, inteiros, racionais, irracionais, transcendentais e reais. […]