“Anacronismo” é um fenômeno ou uma situação que ocorre num tempo ou numa época na qual não se esperava que ela ocorresse. Às vezes, o anacronismo ocorre quando conhecimentos e costumes recentes são transferidos para o passado, como em Os Flintstones. Em outras ocasiões, mais infelizes por não se tratarem de uma obra de ficção, elas ocorrem quando costumes antigos persistem nos tempos modernos, como a astrologia – aliás, já compartilhei o pensamento de Feynman a esse respeito aqui.
Os astrólogos dirão, como já ouvi inúmeras vezes, que os cientistas não têm capacidade de entender. Dirão que quem defende a ciência tem a cabeça fechada, que quem defende a ciência é incapaz de mudar de opinião e incapaz de compreender a totalidade do mundo ou a existência de coisas que vão além da quantificação.
Contudo, é quase exatamente o contrário, e isso depende de como definimos o que é ter “uma mente aberta”. Vejamos.
Mais do que apontar o que é correto e real, a ciência é uma excelente ferramenta para mostrar o que não existe, o que não funciona, o que é balela. Essa é uma das grandes virtudes da ciência, mostrar que uma ideia ou uma explicação para um fenômeno está errada, e não é de se espantar que essa virtude tenha, ao longo do tempo, angariado um número tão grande de inimigos e antipatizantes, compreensivelmente irritados com o fato de suas crenças, algumas delas milenares, terem sido claramente refutadas e rejeitadas. Ao contrário de tantas outras áreas do saber, não existe (ou não deve existir) nada de sagrado e de imutável nas ciências: o cientista deve estar aberto às evidências, e mudar aquilo que deve ser mudado. Se evidências sólidas e inquestionáveis num futuro próximo mostrarem, por exemplo, que o DNA não é o responsável pelo armazenamento das informações genéticas não nos restaria nada a fazer senão aceitar o fato, sem chororô, mudar as teorias existentes e entender que estivemos errados por 70 anos (desde 1944), e “bola para frente”. Logicamente, mudanças drásticas às vezes requerem uma mudança de geração de cientistas (como já escreveu Thomas Kuhn), mas isso é assunto para outro momento.
Defender a ciência e mostrar que uma determinada terapia, uma crendice milenar ou uma verdade popularmente aceita não passam de falsidades ou ilusões não é ter a mente fechada, mas ao contrário, é ter a mente aberta para as evidências e para as experiências controladas, para as análises e para as conclusões dessas análises. Ter a mente aberta é ser capaz de expurgar o que estava errado e criar uma estrutura de conhecimento baseada não em tradições, nem em autoridades, nem em crenças, mas na interpretação mais adequada (por enquanto!) dos fatos.
E, para evidenciar essa virtude das ciências, para deixar claro que não deve existir coisa alguma sagrada ou imutável no conhecimento científico, nada melhor que apontar o dedo para si mesmo, listando aqui alguns dos mais famosos erros da biologia evolutiva, ou seja, conceitos que eram tidos como verdadeiros há até bem pouco tempo, mas que já foram abandonados.
Erro 1: Tudo é adaptação
Estamos na segunda metade do século XIX, bem na aurora da biologia científica. A descoberta da seleção por Darwin e Wallace foi um dos mais importantes momentos da ciência em seus quatrocentos e poucos anos e, compreensivelmente, enquanto alguns se negaram a aceitá-la, outros a exageraram: tudo era considerado adaptação, ou seja, todas as características de todos os seres vivos eram consideradas como oriundas de processos seletivos. Alfred Russel Wallace escreveu, certa vez:
Perhaps no principle has ever been announced so fertile in results as that which Mr. Darwin so earnestly impresses upon us, and which is indeed a necessary deduction from the theory of Natural Selection, namely that none of the definite facts of organic nature, no special organ, no characteristic form or marking, no peculiarities of instinct or of habit, no relations between species or between groups of species can exist, but which must now be or once have been useful to the individuals or the races which possess them.
(Wallace, “Mimicry, and other protective resemblances among animals”, 1867)
Contudo, atualmente consideramos que as características de um determinado indivíduo podem ser adaptativas, não-adaptativas ou maladaptativas. Enquanto as características adaptativas e as maladaptativas são favorecidas e mantidas por processos seletivos, as características não-adaptativas nada têm a ver com a seleção, e não são (nem jamais foram) úteis aos organismos que as possuem.
A primeira coisa que devemos ter em mente é que uma estrutura pode ter diversas propriedades ou características, a imensa maioria delas não relacionadas a qualquer vantagem seletiva. O meu sangue, por exemplo, é vermelho, mas a “vermelhidão” do meu sangue não é uma adaptação. A adaptação, no caso, é a capacidade de uma metaloproteína, nomeadamente a hemoglobina, se ligar ao oxigênio molecular. Para fazer isso essa metaloproteína usa o ferro, cujas características eletrônicas fazem com que o sangue torne-se avermelhado. Mas a cor do sangue, por si só, não é uma adaptação. Outros animais, que usam outros metais para o transporte do oxigênio molecular, têm o sangue (ou seu equivalente) de outras cores.
Mas mais importante do que isso são as estruturas que surgiram ou foram fixadas pelo acaso, ou como chamamos em biologia evolutiva, pela deriva. Nunca é demais lembrar que a seleção não é o único processo que altera a constituição genética de uma população: a deriva também é capaz disso. E todas essas características ou estruturas fixadas pela deriva são, por definição, não-adaptativas. Toda vez que ouço ou leio alguém perguntando “qual a vantagem evolutiva da população tal ter olhos azuis”, “qual a vantagem evolutiva do antígeno A ser o mais comum no país tal” ou “qual a vantagem evolutiva dos asiáticos terem a dobra epicântica nos olhos?”, eu sempre me pergunto: como é que você sabe que essas características são adaptações, para começo de conversa? Podem muito bem serem obra da deriva genética.
Erro 2: A ontogênese revive a filogênese
Eu tive um professor de biologia muito bom no fim do primeiro grau (como então se chamava o ensino fundamental) e nos dois primeiros anos do segundo grau (como então se chamava o ensino médio), um dos responsáveis por eu ter me interessado em cursar biologia. Tenha em mente que estamos falando dos anos 80, época em que a maioria dos professores de biologia simplesmente memorizava um monte de conceitos ultrapassados, e por isso esse supracitado professor se destacava. Mas ele não era um especialista em evolução, e por essa razão não é de se espantar que ele tenha nos ensinado um ou dois conceitos ultrapassados. Lembro-me que esse foi um deles: “a ontogênese revive a filogênese”. Ou seja, em seu desenvolvimento embrionário, um organismo revive toda a sequência de seus antepassados: nós, por exemplo, começamos como organismos unicelulares, em seguida tornamos-nos pluricelulares, formamos dois folhetos embrionários, depois disso três folhetos, formamos uma notocorda, um rabo, formamos fendas branquiais, um coração de peixe, depois perdemos o rabo e a notocorda, e assim por diante, como se passássemos pelas fases protozoário, cnidário, anfioxo, peixe, anfíbio, réptil etc.
Esse conceito, publicado por Haeckel em 1866, é também conhecido como recapitulação ou lei biogenética, e é relativamente famoso entre os estudantes de biologia. Acontece que trata-se de um conceito claramente equivocado, já largamente desacreditado desde o início do século passado, e cujo status atual é o de pura “curiosidade histórica”. O que ocorre na verdade, como é fácil perceber, é que organismos relacionados compartilham (ou melhor, podem compartilhar, uma vez que mudanças dramáticas ocorrem no desenvolvimento de algumas linhagens) certos estágios de seus desenvolvimentos, e o compartilhamento é tanto maior quanto maior for o parentesco entre os organismos dados (mais uma vez, com ressalvas). Contudo, um organismo não revive as fases adultas de seus antepassados.
Para quem quiser se aprofundar mais sobre o tema, Stephen Gould escreveu um livro inteiro acerca desse assunto, chamado “Ontogeny and Phylogeny”.
Erro 3: Organismos superiores e inferiores
Essa é uma das grandes pragas da biologia evolutiva, que ainda hoje persiste em livros, websites, aulas, apresentações e congressos: a scala naturae. Para sermos coerentes e justos, é bom lembrar que a scala naturae não é uma invenção da biologia evolutiva, mas, ao contrário, uma invenção da antiguidade clássica (ou talvez até mesmo um conceito já existente antes da antiguidade clássica), principalmente grega. O problema é que a biologia evolutiva surgiu (em meados do século XIX) no meio de uma sociedade que usava largamente o conceito de scala naturae. Por isso é possível ver Darwin usando diversas vezes, na “Origem”, os termos “animais superiores” e “animais inferiores”, “organismos superiores” e “organismos inferiores”. Eu, particularmente, tenho a impressão que Darwin, interna e veladamente, compreendia que não há distinção de superior e inferior entre organismos, de “mais evoluído” e “menos evoluído”. Digo isso porque o mesmo Darwin escreveu, na “Expressão das emoções”:
Sir C. Bell evidently wished to draw as broad a distinction as possible between man and the lower animals; and he consequently asserts that with “the lower creatures there is no expression but what may be referred, more or less plainly, to their acts of volition or necessary instincts.” He further maintains that their faces “seem chiefly capable of expressing rage and fear.” But man himself cannot express love and humility by external signs, so plainly as does a dog, when with drooping ears, hanging lips, flexuous body, and wagging tail, he meets his beloved master. Nor can these movements in the dog be explained by acts of volition or necessary instincts, any more than the beaming eyes and smiling cheeks of a man when he meets an old friend.
(Darwin, “The expression of emotions in man and animals”, 1872)
Creio que devemos lembrar, para entender melhor sua obra, que Darwin tinha uma esposa profundamente cristã e fundamentalista, e vivia numa sociedade profundamente cristã e fundamentalista. Tendo isso em conta, já é bem impressionante o que ele se atreveu a escrever e publicar, e esses poucos usos dos termos superior e inferior me parecem perdoáveis. Mas não estamos mais no século XIX, e não faz mais sentido (ou, pelo menos, não deveria mais fazer) em mantermos a scala naturae em qualquer conceito ou hipótese evolutiva. A não ser como curiosidade histórica.
Felizmente, na década de 60, surge a sistemática filogenética, que veio para pôr uma pá de cal sobre a scala naturae. Não há mais sentido algum em se afirmar que um ser humano é superior a um clostrídio, ou que um clostrídio é superior a um ser humano. A sistemática filogenética nos mostra que o ser humano e o clostrídio compartilham um ancestral comum, que ambos estão separados desse ancestral comum pelo mesmíssimo período de tempo, e que nenhum é superior ao outro.
Esses são três erros da biologia evolutiva bastante conhecidos. Certamente outras teorias evolutivas atualmente desacreditadas já foram consideradas corretas, e escrever um pouco sobre elas pode ser o material para uma segunda parte dessa postagem.
1 comentário
Excelente artigo! Embora aborde aspectos mais profundos da biologia evolutiva, os explica de maneira bem simples e objetiva. Acredito eu que o conceito de entender a evolução como um processo linear é o principal erro, pelo o menos entre o público mais leigo. Continue o bom trabalho, Gerardo, principalmente no teu blog, que me fascina bastante. Forte abraço