Percepção e realidade

Uma palavra: umwelt.

Quando comecei a estudar etologia, há muitos anos, esse foi um dos conceitos que mais me marcou, e um dos que mais me fascina até hoje. De uma maneira extremamente resumida e simplória, umwelt é o mundo como ele é experimentado por um determinado organismo. Como é o mundo para uma gaivota? Como é o mundo para um carrapato? Como é o mundo para um besouro? Tente não cometer aqui um erro básico: quando Thomas Nagel perguntou “como é ser um morcego”, muita gente tentou imaginar como deve ser a experiência de uma mente humana tendo acesso ao mundo exterior através dos órgãos sensoriais de um morcego, ou, de forma mais simplificada, como seria se você transportasse magicamente uma mente humana para o corpo de um morcego. Mas não é isso que entendemos por umwelt: a umwelt do morcego, ou seja, “como é ser um morcego”, só pode ser corretamente compreendida quando imaginamos de que forma a mente de um morcego (e não a de um ser humano), usando os órgãos sensoriais de um morcego, percebe o mundo, a realidade externa subjetiva.

Como é ser um morcego “para o morcego”? (foto: James Niland)

Como é ser um morcego “para o morcego”? (foto: James Niland)

A realidade externa objetiva (ou seja, o mundo) existe independentemente de eu ou você existirmos ou não, e independentemente da maneira como eu ou você a percebemos. Porém, e essa é uma das lições da biologia evolutiva, a maneira como eu percebo a realidade é uma construção histórica. Ou seja, a maneira como eu percebo a realidade depende da evolução do meu sistema nervoso, compreendendo aqui desde meus órgãos sensoriais até meu aparelho cognitivo, capaz de gerar os estados mentais internos e a consciência.

Tomando isso como verdade, chegamos a uma conclusão um tanto quanto perturbadora: nosso aparelho mental não foi, evolutivamente falando, construído para compreender a realidade da forma mais acurada possível. Isso simplesmente não interessa! Evolutivamente falando, nosso aparelho mental foi construído para, examinando a realidade, nos propiciar o maior ajustamento (fitness) possível. Perceber a realidade da forma mais acurada possível nunca foi a “preocupação” ou o “objetivo” da evolução em relação ao nosso sistema nervoso, e sim perceber a realidade da forma mais conveniente possível para aumentar nosso fitness! Às vezes, em relação à percepção da realidade, a forma mais adequada para aumentar o fitness coincide com a forma mais acurada, mas nem sempre. Por sinal, esse é o ponto central desta excelente palestra do TED:

Isto dito, a conclusão é que, apesar de eu não negar a existência de uma realidade externa objetiva que independe da experiência para existir, a “realidade”, como percebida por diferentes organismos com diferentes aparelhos cognitivos e diferentes histórias evolutivas, só pode ser diferente para cada um deles!

Além de ser um primata, organismos naturalmente dependentes da visão, eu sou uma pessoa que valoriza a visão imensamente mais que todos os outros sentidos… Tanto que, caso eu fosse obrigado a escolher entre ficar cego ou ficar surdo, escolheria sem pestanejar a segunda opção. Assim, quando eu tento compreender a umwelt de outras espécies, eu atribuo uma grande importância à visão: como deve ser para um inseto usar seus omatídeos? Como deve ser a visão de um animal minúsculo como Brookesia? Como deve ser a visão de um animal com cinco cones, como uma ave, que vê milhões de cores além daquelas que nós vemos? Como deve ser a visão de um animal que enxerga em outros comprimentos de ondas, como as abelhas? Essas são as perguntas de uma pessoa altamente visual, que é o meu caso. Mas e a audição?

Há uma diferença significativa entre a visão e a audição. Quando eu penso acerca da percepção visual em diferentes organismos, eu imagino diferenças no tamanho da imagem, na resolução da imagem, nas cores que são percebidas, na amplitude do espectro luminoso que é captado, e até na quantidade de imagens (frames por segundo) processadas. Só no último caso o fator tempo é levado em consideração. Contudo, a audição depende de uma onda, e uma onda depende do tempo: apesar de conseguirmos desenhar uma determinada onda, com seu comprimento de onda e sua amplitude, a onda em si, estática, não existe: o tempo é necessário para determinarmos a frequência daquela onda, e a frequência da onda é fundamental para o fenômeno da audição (para quem se interessar, há um curioso livro escrito por um filósofo alemão, Hans Jonas, intitulado “O princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica”, onde no ensaio “A nobreza da visão: um estudo sobre a fenomenologia dos sentidos” o autor discute exatamente o aspecto temporal na comparação da audição com a visão).

Por exemplo, é relativamente fácil imaginar como deve ser o mundo para uma libélula, quando dizemos que a libélula processa as imagens muito mais rapidamente que um ser humano ou, num linguajar cinematográfico, tem muito mais frames por segundo em sua visão: todos nós já vimos um filme em slow motion, ou mesmo em super slow motion. Mas não é fácil manipular o som em relação ao tempo: quando alongamos ou comprimimos uma onda sua frequência muda, o que altera radicalmente sua natureza. De forma bem elementar: tomando uma gravação de minha voz, ao reduzir a velocidade de reprodução o som da minha voz vai ficar mais grave ou, no jargão da física, mais baixo. Da mesma forma, ao aumentar a velocidade, o som ficará mais agudo (ou mais alto). Essa particularidade do som torna impossível sua manipulação temporal.

Mas talvez não.

Há alguns algoritmos bem criativos para manipularmos o som quanto ao tempo, e termos uma noção (bem vaga e superficial) de como deve ser o mundo auditivo para criaturas que processam o som em “taxas” diferentes das nossas. Esses algoritmos são capazes de esticar ou comprimir a onda sonora sem torná-la mais aguda ou mais grave. O mais famoso desses algoritmos é o PaulStrech, semelhante ao que foi utilizado para fazer esta famosa gravação com o som de grilos desacelerados, que se tornou viral (e que não é fake, como inúmeros sites anunciaram):

Fiz algumas brincadeiras com o PaulStrech, utilizando um Strech Factor entre 10 e 50, e uma Time Resolution de 0,01. Antes de começar a mostrar os resultados quero iniciar com um som bem comum, não relacionado com a biologia, que qualquer pessoa reconheça: o motor de um carro. Eis o som de um fórmula 1, nesse caso, o Mercedes V8 de Lewis Hamilton em 2013 (aparentemente, o player do Soundcloud não funciona em navegadores de celulares, seja Android ou iOs. Se esse é o seu caso, use um desktop ou um laptop para ouvir os sons):

Familiar, nada de diferente. Mas o que acontece se eu alongar esse som dez vezes, esticando a onda sonora com o PaulStrech? Eis o resultado:

Trata-se exatamente da mesma gravação, mas agora mostrando como ela possivelmente seria percebida por um animal que analisasse o som dez vezes mais rapidamente que nós.

Agora vamos à melhor parte, os exemplos biológicos. Para começar, um som que sempre me agradou, o do golfinho nariz de garrafa, Tursiops truncatus:

E eis como o mesmo som ficaria, se “esticado” dez vezes:

Beija-flores são lindos, não há quem não concorde. O canto deles, contudo, não é lá o mais bonito entre as aves, mas eu gosto bastante! Eu sempre gostei de espalhar bebedouros pelo jardim, e sabia quando eles estavam por perto só de escutar os “cliques” do seu canto. Eis uma gravação de um beija-flor, cuja espécie infelizmente eu não consegui determinar:

E eis como ela ficou, alongada dez vezes no PaulStrech:

E em homenagem ao famoso vídeo do grilo, vamos passar para o mundo dos insetos. Se é que podemos encontrar animais cuja resolução temporal da experiência auditiva é bem diferente da nossa, creio que os encontraremos entre os insetos. Há inúmeras espécies que usam sons para diversos fins, não apenas para acasalamento. Para o ouvido humano (o mais correto seria dizer para a mente humana), certos sons, como o canto das cigarras, parece contínuo. Eis o canto da cigarra Magicicada tredecassini:

E eis como o canto ficou, após passar pelo PaulStrech:

Para finalizar, já que falei do famoso “morcego de Nagel” no início, eis uma gravação que eu mesmo fiz de uma raposa voadora (morcegos do Gênero Pteropus) no nordeste da Austrália:

E a mesma gravação, dez vezes mais longa:

Uma curiosidade que o player do Soundcloud nos permite visualizar: o formato das duas ondas, a original e a estendida, é exatamente o mesmo (quando ocupando a mesma largura na tela). A diferença, logicamente, é que uma faixa é dez vezes mais longa que a outra, um slow motion sonoro.

Essas manipulações do som são, antes de qualquer coisa, interessantes de se ouvir. E talvez, apenas talvez, elas possam nos dar uma vaga ideia de como deve ser o mundo auditivo de uma espécie que processa mentalmente o som dezenas ou centenas de vezes mais rápido que nós, por exemplo.

Ah, já ia me esquecendo: se você é um desocupado, está cheio de tempo livre, não tem o que fazer da vida ou é simplesmente um preguiçoso mesmo, talvez você queira ouvir essa versão de Bohemian Rhapsody do Queen, oito vezes mais lenta!

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