Era muito jovem quando despertei para os mistérios do Universo. Lembro-me de, com uns 4 ou 5 anos, folhear desenfreado os livros de geografia da minha mãe que, para além dos habituais mapas do império ultramarino português, tinham também uma pequena secção dedicada ao Sol e aos planetas, com ilustrações, em retrospectiva, pouco inspiradoras. Nos anos seguintes, astronautas, naves espaciais, planetas, estrelas e alienígenas foram de longe os condimentos mais comuns nas minhas brincadeiras. Aos 13 anos, essa curiosidade evoluiu com naturalidade para uma paixão vitalícia quando, ao anoitecer de um dia quente de Junho, dei por mim a observar uma estrela tremendamente brilhante. Tinha de saber “o que era aquilo”. Voltei-me para os livros e comecei a aprender as constelações desenhando as estrelas mais brilhantes que observava à noite num bloco de notas e tentando encontrar padrões semelhantes nos mapas do céu. Ao fim de alguns meses e de algumas descobertas, aprendi a ler o céu e a tratar as estrelas por tu — já agora “aquilo” era o planeta Vénus.
As descobertas eram absolutamente triviais, fruto de um processo normal de aprendizagem por tentativa e erro, mas, por ser eu a fazê-las de forma independente, senti-me deslumbrado. Lembro-me como se fosse hoje daquela noite de Agosto, estava eu na aldeia a gozar as férias grandes, em que acordei por acaso de madrugada e, espreitando pela janela orvalhada, observei a constelação de Orionte e muitas outras pela primeira vez. Nessa noite descobri que, devido à rotação da Terra, as constelações que vemos durante a noite não são sempre as mesmas.
Mas, para além desta intimidade conseguida com as estrelas, havia algo mais que me atraía no firmamento. Sentado na escuridão quase completa de um campo de milho, com o meu bloco de notas, um lápis e uma pequena lanterna, podia observar todo o incrível enredo que se desenrolava perante mim. Um céu com milhares de estrelas, atravessado pela Via Láctea, qual coluna vertebral segurando a abóbada celeste. Sabia muito pouco sobre as estrelas e a enorme galáxia ali mesmo por cima de mim, mas era o suficiente para me aperceber da minha pequenez no “esquema das coisas”. Por algum motivo, esse sentimento sempre me serviu de conforto, em especial nos anos difíceis que, não imaginava na altura, iria ter pela frente.
Com o passar do tempo apercebi-me de que há algo de profundamente espiritual, no sentido não religioso da palavra, na contemplação do céu nocturno. No meu caso, resulta de uma amálgama de causas: prazer estético, sentir-me parte (ínfima) de algo muito maior e, curiosamente, a compreensão do que observo. Tive a felicidade de estudar disciplinas como matemática, química, física e biologia, que me permitiram perceber, tanto quanto é possível a um não especialista, as leis e os processos que regem o Universo em todas as escalas e a forma espantosa como tudo está interligado, desde a galáxia mais longínqua à maquinaria molecular das nossas células. A compreensão do que observo, de como se encaixa no “esquema das coisas”, de como funciona, é para mim parte essencial na experiência do céu nocturno.
Finalmente, e isto pode parecer paradoxal para alguns leitores, o que me atrai mais e torna tudo isto mais belo, é o facto de, tanto quanto a Ciência nos permite ver, o Universo não ter qualquer sentido ou propósito. Simplesmente está lá e funciona de acordo com leis que podemos compreender e descrever com matemática maravilhosa. Adoro esta ideia, esta simplicidade, esta temperança nos actores e no argumento. E no entanto, é espantoso observar como “dando tempo ao tempo”, a complexidade surge espontaneamente no Universo — na verdade há quem pense que é por isso que “existe” o tempo — e eu, produto de um destes delírios das forças da natureza, tenho o privilégio improvável e efémero de aqui estar e meditar sobre isto.
6 comentários
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Parabéns Luís Lopes pelo seu texto.
Igualmente a Janine e a Márcia, e, creio, tantos outros, lembrei -me do fascínio que o céu noturno despertava em mim e meus irmãos quando ainda muito jovens comtemplavamos as estrelas. Naquela época a pouca luz da periferia de São Paulo permitia-nos vistas maravilhosas e a felicidade de ter nosso pai como Mestre.
Parabéns, também, pelas imagens e pelas aulas.
Author
Muito obrigado Aram!
Luís Lopes, adorei o seu artigo. Sua história é bem parecida com a minha. Os momentos são mágicos: a idade, o interesse, as descobertas, a diferença é que não segui a carreira da Astronomia. Mas, continuo com a curiosidade de sempre, inclusive o que me atraiu à esta página foi simplesmente a foto e então me deparei com estas palavras maravilhosas. Parabéns!
Author
Olá Marcia,
Obrigado pelo seu comentário. BTW, eu também não segui a carreira em Astronomia 😉
Parabéns, Luís Lopes, sou sua fã. Gosto muito de seu jeito de escrever e também aprecio o fato de que você deixa sua alma expressar-se de maneira bem livre e leve e solta…, porém disciplinadamente!
Se quiser dar uma olhadinha no meu texto abaixo, legal, valeu.
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Olhar para o céu e se comover
é o primeiro passo.
Janine Milward
Olhar para o céu noturno é algo que sempre me comoveu, desde pequena, com meus irmãos e eu indo parar no alto da caixa de água, em noites escuras, para ficarmos conversando sob as estrelas …. e sobre as estrelas.
Naqueles tempos do passado – metade do século XX -, a Nova Friburgo que morávamos era ainda uma cidade de luzes poucas e voltadas, amareladamente pálidas, somente para o chão das ruas simples e provincianas, que bom.
Havia também um livrão antigo de astronomia, em francês
(que mais tarde descobri que é uma verdadeira relíquia e que minha mãe deixou para mim, como herança: Camille Flammarion, Astronomie Populaire, edição de 1922!),
e sempre meus irmãos e eu estávamos folheando e lendo (tentando entender o francês aliado às fotos black and white, do passado, de mais de um século atrás!).
Olhar para o céu e se comover é o primeiro passo.
O segundo passo é decidirmos se vamos ficar felizes e contentes dentro do Caos ou se vamos tentar trazer o Caos para dentro do Cosmos., Cosmos quer dizer ORDENAÇÃO e Caos quer dizer caos mesmo….
Acho que dá para começar tentando saber quem é quem – dentro das estrelas mais brilhantes, é claro, ou através pedacinhos de constelações (como o Cinturão de Órion conhecido como As Três Marias), ou mesmo através constelações inteiras (quem não sabe apontar para o Cruzeiro do Sul?).
Enfim, é preciso se estar em lugar de céu mais escuro e transparente, longe das luzes poluentes das cidades, grandes, médias, pequenas… Luzes são luzes em qualquer lugar e poluem nossa visão do céu estrelado, escondem as estrelas.
Com um abraço estrelado,
Janine Milward
http://sobreaquarius.blogspot.com.br/2013/11/meu-comentarios-sobre-o-aguadeiro.html
Author
Olá Janine,
Obrigado pelo seu comentário. Penso que muitos astrónomos amadores se identificam, pelo menos em parte, com a minha história pessoal. Todos nós passamos, em algum momento, por estes momentos de descoberta, mais marcantes na infância e juventude, e partilhamos esta necessidade visceral de observar o céu nocturno.
Abraço,
Luís