Algol, o Olho do Demónio

Algol, a estrela β (beta) da constelação de Perseu, está entre as mais famosas e mais brilhantes das estrelas variáveis. O brilho da estrela varia com o tempo e esse efeito é facilmente detectável a olho nu; provavelmente a sua variabilidade era certamente conhecida na antiguidade, contribuindo para a sua má reputação. De facto, a estrela marca na constelação a posição de um dos olhos de Medusa, a górgona decepada por Perseu e de cujo sangue irrompeu o cavalo alado Pégaso num dos mais famosos episódios da mitologia grega. É esta a representação que vemos no desenho (em baixo) extraído do atlas Uranographia, da autoria do astrónomo polaco Johannes Hevelius (século XVII). O nome da estrela é uma corrupção do árabe ra’s al-ghūl, com o significado de “a cabeça do demónio”, mas para os árabes o demónio era outro.

algol

Foi só em 1667 que Algol foi descoberta para a ciência. A sua variabilidade foi documentada pelo astrónomo italiano Geminiano Montanari. Mais de um século depois, o inglês John Goodricke descobriu que as variações de brilho da estrela eram muito regulares e periódicas. Goodricke, cujo estudo de estrelas variáveis foi seminal apesar da sua morte prematura aos 21 anos, foi também o primeiro a propor que as variações se deviam a eclipses. Esta hipótese veio a ser confirmada pelo trabalho de Edward Pickering, em Harvard, e de Hermann Vogel, em Potsdam, no final do século XIX; juntos demonstraram que Algol era um sistema binário e que as variações de brilho se deviam a eclipses mútuos das estrelas.

Hoje, naturalmente, sabemos muito mais sobre esta estrela surpreendente. Algol encontra-se a cerca de 93 anos-luz. O sistema é constituído por três estrelas: um sistema binário onde têm origem os eclipses e uma estrela que o orbita à distância. A componente primária do sistema binário é três vezes mais maciça do que o Sol e 180 vezes mais luminosa. Tem tipo espectral B8 pelo que teria uma cor branca como Sirius se a víssemos isolada. A componente secundária tem apenas 0.7 vezes a massa e 7 vezes a luminosidade do Sol. Tem tipo espectral K2 e seria laranja como Arcturus à nossa vista.

Uma curiosidade: apesar de menos maciça e luminosa, a estrela secundária é 30% maior do que a primária; parece estranho mas há uma explicação, continue a ler!

As duas estrelas distam uma da outra pouco mais de 9 milhões de quilómetros — 6% da distância da Terra ao Sol!

Finalmente, a terceira estrela é uma anã de tipo espectral F1, um pouco mais maciça, quente e luminosa do que o Sol, que orbita o par a uma distância de 2.7 unidades astronómicas, com um período de 680 dias.

No sistema binário, os eclipses primários acontecem com uma periodicidade aproximada de 2 dias e 20 horas, e devem-se à passagem da estrela secundária em frente da primária. Algol desce da sua magnitude normal de 2.1 para apenas 3.4 nessas ocasiões. Os eclipses secundários, quando a secundária passa por detrás da primária, também ocorrem mas a amplitude é tão pequena que não são detectáveis a olho nu.

Um sistema binário semelhante a Algol. Note-se o efeito dos eclipses na curva de luz do sistema. O filamento entre as duas estrelas é material da estrela laranja, a secundária, que está a ser capturado pela estrela branca, a primária. Fonte: Phillip A. Reed, http://faculty.kutztown.edu/preed/research.html.

Um sistema binário semelhante a Algol. Note-se o efeito dos eclipses na curva de luz do sistema. O filamento entre as duas estrelas é material da estrela laranja, a secundária, que está a ser capturado pela estrela branca, a primária.
Fonte: Phillip A. Reed, http://faculty.kutztown.edu/preed/research.html

Depois desta descrição, se lhe dissesse que a estrela mais evoluída do sistema é a primária — porque é mais maciça e estrelas mais maciças evoluem mais depressa — , o leitor certamente veria alguma lógica nesta afirmação. Mas a realidade nos sistemas binários como Algol é bem mais subtil. Acontece que a estrela mais evoluída do par é a pequena, e pouco luminosa, secundária. A primária ganhou esse estatuto recentemente, na escala cósmica claro, através de um episódio de “canibalismo” estelar. Os astrónomos conseguem saber isto observando as características espectrais de cada estrela.

As (projecções) das superfícies de Roche num sistema binário formam um “8” em torno das duas estrelas. A estrela da esquerda (a secundária em Algol), atingiu o limite da sua superfície de Roche. O material dessa estrela pode fluir para a da direita através do ponto central do “8”, chamado de ponto 1 de Lagrange (ou L1). Note-se o tamanho muito maior da superfície de Roche da componente da direita (a primária em Algol). Crédito: A. Erdem et al. (2014).

As (projecções) das superfícies de Roche num sistema binário formam um “8” em torno das duas estrelas. A estrela da esquerda (a secundária em Algol), atingiu o limite da sua superfície de Roche. O material dessa estrela pode fluir para a da direita através do ponto central do “8”, chamado de ponto 1 de Lagrange (ou L1). Note-se o tamanho muito maior da superfície de Roche da componente da direita (a primária em Algol). Crédito: A. Erdem et al. (2014).

De facto, inicialmente a estrela secundária era a mais maciça do par e evoluiu, ao fim de muitos milhões de anos, transformando-se numa gigante vermelha. Devido à proximidade das estrelas, no entanto, a determinada altura a estrela extravasou o seu lóbulo de Roche, uma superfície imaginária que define a sua zona de domínio gravitacional. Todo o material da estrela no exterior desta superfície foge ao seu puxão gravitacional e grande parte foi capturado pela (actual) primária que aumentou consideravelmente a sua massa e luminosidade. À medida que a secundária perdia massa a sua superfície de Roche diminuía também de tamanho permitindo a perda de mais massa. O processo continua ainda hoje, com um fluxo de material entre as estrelas estimado em 200 milionésimos da massa do Sol por ano.

A constelação de Perseu. Crédito: Sky&Telescope, IAU.

A constelação de Perseu. Crédito: Sky&Telescope, IAU.

Observar Algol é simples, em especial nesta altura do ano. De facto, a constelação de Perseu está situada no zénite ao cair da noite e é facilmente localizada entre o “M” ou “W” de Cassiopeia e o grande pentágono do Cocheiro, com a luminária Capella num dos vértices.

1 comentário

    • Dinis Ribeiro on 06/02/2016 at 16:11
    • Responder

    Excelente artigo! Gostei muito. As ilustrações foram “escolhidas a dedo” e o texto está rico em informação.

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