Por mais de dez anos o observatório H.E.S.S. na Namíbia (operado por uma colaboração internacional de 42 instituições em 12 países), tem mapeado o centro da nossa Galáxia no espectro de raios-gama altamente energéticos. Estes raios-gama são produzidos por raios cósmicos oriundos da região mais interna da Galáxia. Uma análise detalhada dos dados mais recentes do H.E.S.S., publicados em 16 de março de 2016 na Nature, revela pela primeira vez uma fonte desta radiação cósmica em energias nunca antes observadas na Via Láctea: o buraco negro supermassivo no centro da Galáxia, que provavelmente acelera os raios cósmicos até energias 100 vezes superiores às criadas no maior acelerador de partículas da Terra, o LHC do CERN.
A Terra é constantemente bombardeada por partículas de alta-energia (prótons, elétrons e núcleos atômicos) de origem cósmica, partículas que compõem os chamados “raios cósmicos”.
Os “raios cósmicos” são compostos por partículas com carga elétrica e por isso sofrem fortes desvios pelos campos magnéticos interestelares que permeiam a nossa Galáxia. O seu percurso através do cosmos é randomizado por estes desvios, o que torna impossível a identificação direta das fontes astrofísicas responsáveis pela sua produção. Assim, durante mais de um século, a origem dos “raios cósmicos” continuou a ser um dos mistérios mais antigos da ciência.
Afortunadamente, os raios cósmicos interagem com a luz e o gás na vizinhança de suas fontes, produzindo raios gama. Assim, estes raios gama viajam em linhas retas e não são desviados pelos campos magnéticos, podendo, portanto, serem traçados até à sua origem. Quando um raio-gama altamente energético atinge a Terra, interage eventualmente com uma molécula na atmosfera superior, produzindo uma chuva de partículas secundárias que emitem um curto pulso de “radiação de Cherenkov”. Ao detectar estes lampejos de luz, usando telescópios equipados com grandes espelhos, fotodetectores ultrassensíveis e eletrônica de rápida reação, foram identificadas, ao longo dos últimos 30 anos, mais de 100 fontes de raios gama. O observatório H.E.S.S. (High Energy Stereoscopic System) na Namíbia representa a última geração destas redes de telescópios. H.E.S.S. é operado por cientistas de 42 instituições em 12 países, com maiores contribuições de MPIK Heidelberg (Alemanha), CEA e CNRS (ambos da França).
Atualmente sabemos que os “raios cósmicos” com energias até cerca de 100 TeV (tera elétron-volt – 1 TeV = 1012 eV) são produzidos na nossa Galáxia por objetos como remanescentes de supernovas e nebulosas alimentadas por ventos de pulsares. Os argumentos teóricos e as medições diretas dos “raios cósmicos” que alcançam a Terra indicam, no entanto, que as fábricas de raios cósmicos na nossa Galáxia devem ser capazes de fornecer partículas com, pelo menos, até 1 PeV (peta elétron-volt – 1 PeV = 1.000 TeV = 1015 eV). Apesar de muitos aceleradores multi-TeV terem sido descobertos nos últimos anos, até agora a procura das fontes dos raios cósmicos galácticos mais energéticos tinha sido infrutífera.
Observações detalhadas do Centro Galáctico, feitas pelo H.E.S.S. ao longo dos últimos 10 anos, agora divulgadas na Nature, finalmente fornecem indicações diretas da aceleração de raios cósmicos até os níveis de energia na ordem de PeV. Durante os primeiros três anos de observações, o H.E.S.S. descobriu uma fonte muito poderosa de raios-gama na região do Centro Galáctico, bem como emissão difusa de raios-gama das nuvens moleculares gigantes que o rodeiam em uma zona com aproximadamente 500 anos luz de diâmetro. Estas nuvens moleculares são bombardeadas por raios cósmicos que se deslocam quase à velocidade da luz, que produzem raios-gama através das suas interações com o material das nuvens. Uma coincidência espacial fortuita entre os raios gama observados e a densidade de material nas nuvens indica a presença de um ou mais aceleradores de “raios cósmicos” nessa região. No entanto, a natureza da(s) fonte(s) permanecia um mistério.
Observações mais profundas obtidas pelo H.E.S.S. entre 2004 e 2013 lançaram nova luz sobre os processos que alimentam os raios cósmicos na região. De acordo com Aion Viana (MPIK, Heidelberg):
A quantidade sem precedentes de dados e o progresso feito nas metodologias permite-nos medir simultaneamente a distribuição espacial e a energia dos raios cósmicos.
Com estas medições únicas, os cientistas do H.E.S.S. conseguiram, pela primeira vez, identificar a origem destas partículas. Emmanuel Moulin (CEA, Saclay) explicou:
Em algum lugar dentro dos 33 anos-luz centrais da Via Láctea, existe uma fonte astrofísica capaz de acelerar prótons para energias de aproximadamente 1 PeV, continuamente, durante pelo menos 1.000 anos.
Em uma analogia ao “Tevatron”, o primeiro acelerador de partículas construído pelo Homem que alcançou energias de 1 TeV, esta nova classe de ‘acelerador cósmico’ foi apelidada de “Pevatron”. Stefano Gabici (CNRS, Paris), acrescentou:
Com o H.E.S.S., somos agora capazes de rastrear a propagação dos prótons PeV na região central da Galáxia.
O centro da nossa Galáxia hospeda muitos objetos capazes de produzir “raios cósmicos” altamente energéticos, incluindo, em particular, uma remanescente de supernova, uma nebulosa alimentada por ventos de um pulsar e um enxame compacto de estrelas massivas. No entanto, Felix Aharonian (MPIK, Heidelberg e DIAS, Dublin), comentou:
O buraco negro supermassivo localizado no centro da Galáxia, chamado Sgr A*, é a fonte mais plausível dos prótons PeV, várias possíveis regiões de aceleração podem ser consideradas, quer na proximidade imediata do buraco negro, quer mais longe, onde uma fração do material que cai para o buraco negro é expelido de volta para o ambiente, fomentando assim a aceleração das partículas.
A medição fornecida pelo H.E.S.S. dos raios gama pode ser usada para inferir o espetro dos prótons que foram acelerados pelo buraco negro central, revelando que Sgr A* está provavelmente acelerando prótons até energias nos níveis PeV. Atualmente, estes prótons não conseguem explicar o fluxo total de raios cósmicos detectados na Terra.
Os cientistas da pesquisa explicaram:
Se, no entanto, o nosso buraco negro central tivesse sido mais ativo no passado, então poderia ser realmente responsável pela maior parte dos raios cósmicos galácticos que são observados hoje na Terra.
A ser verdade, isso poderá influenciar o debate de um século sobre a origem destas partículas enigmáticas.
Fontes
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