Desde o início do século XX que sabemos que a Via Láctea, a galáxia a que pertence o Sistema Solar, é de um tipo chamado “espiral”. Este tipo de galáxia tem uma região central esférica com grande densidade estelar, designada por bojo, rodeada por um disco extenso de estrelas e nuvens de gás e poeira. No disco existem zonas de maior densidade onde a formação de novas estrelas é mais intensa. Essas regiões assumem a forma de braços espirais que partem do bojo, no centro, e se estendem ao longo de dezenas de milhares de anos-luz. A localização do Sistema Solar no disco, a cerca de 27 mil anos-luz do centro da galáxia, torna extraordinariamente difícil o estudo da estrutura dos braços espirais. A sua extensão e localização tem vindo a ser mapeada através de observações nas regiões do rádio, das microondas e do infravermelho, tirando partido do facto de estas ondas atravessarem facilmente as nuvens de poeira interestelar que nos impedem de observar para lá de um horizonte de uns poucos milhares de anos-luz no espectro visível. Mas foi no início dos anos 90 do século passado que uma descoberta mudou radicalmente a nossa visão da Via Láctea.
Tudo começou com os dados recolhidos pelo observatório COBE (Cosmic Background Explorer), concebido para fazer medições precisas da radiação cósmica de fundo em microondas (Cosmic Microwave Background ou CMB). O COBE produziu um mapa do céu em microondas, que deu origem a um prémio Nobel, mas também em vários comprimentos de onda no infravermelho próximo. As imagens da Via Láctea obtidas no infravermelho sugeriam fortemente que a forma do bojo era ligeiramente alongada e não esférica. A ser real, este alongamento implicava que a nossa galáxia não tinha uma estrutura espiral simples, em que os braços têm origem no bojo, mas antes seria uma espiral barrada, em que o bojo está imerso numa estrutura linear designada por barra e os braços têm origem nas extremidades da mesma.
Esta conclusão foi reforçada quando, em 2001, foi completado o 2MASS (Two Micron All Sky Survey) um censo completo da esfera celeste no infravermelho próximo. Os novos dados não só confirmavam a existência de uma barra como mostravam que a mesma parecia estar quase alinhada com a linha de visão da Terra para o centro galáctico, um desvio de apenas 30 graus, e que teria 15 mil anos-luz de extensão e 5 mil anos-luz de espessura. Estas conclusões foram validadas posteriormente, em 2008, com dados recolhidos pelo telescópio espacial Spitzer em vários comprimentos de onda no infravermelho. Nestes dados os astrónomos encontraram também indícios claros de que dois dos maiores braços espirais da Via Láctea tinham a sua origem nas extremidades da barra central.
Como disse, não podemos observar a Via Láctea fora do disco, pelo que não temos uma visão clara da sua região nuclear e da configuração dos seus braços espirais. No entanto, com base nos detalhes conhecidos da sua estrutura, podemos olhar em volta e tentar encontrar galáxias cujo aspecto seria semelhante ao da Via Láctea se vista à distância, a partir do espaço intergaláctico. Uma dessas galáxias poderia ser a NGC 2336, uma bela espiral barrada na constelação da Girafa (Camelopardalis em latim), situada a uma distância de 100 milhões de anos-luz e com dimensões semelhantes às da nossa galáxia. A imagem anterior, obtida pelo autor com um dos instrumentos do Virtual Telescope, mostra claramente o bojo da galáxia (a região esférica mais brilhante) no centro de uma estrutura linear (a barra) que ocupa a região nuclear. Os braços espirais emergem da região imediatamente adjacente a esta barra central. A pequena mancha à esquerda da NGC 2336, uma outra galáxia bem mais distante designada por LEDA 213387, permite-nos também imaginar como se apresentaria a Grande Nuvem de Magalhães junto da Via Láctea a um observador distante.
Referências: William H. Waller, The Milky Way: An Insider’s Guide, Princeton University Press, 2013.
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