Na cultura ocidental do século XXI encontra-se ainda bastante a noção platónica de que para fazermos boas decisões devemos baseá-las na razão. A emoção é entendida como um impedimento ao processo lógico e que, quando não controlada, nos conduz a deliberações imperfeitas. Não lhe será de certo difícil recordar algum filme ou livro em que uma dada personagem foi retratada como sendo mais bem-sucedida que a média por ter a característica de não se deixar guiar pela emoção. Aliás, quando descrevemos alguém como “emocional” queremos por vezes implicar que se trata de alguém com falta de bom senso. Mas será que a emoção é mesmo um obstáculo à tomada de boas decisões?
De forma a chegar à resposta, vou-vos falar sobre o famoso caso do paciente Elliot tratado pelo neurocientista António Damásio, e descrito no seu livro “O Erro de Descartes” (1994).
Elliot era uma pessoa relativamente bem sucedida. Tinha o seu emprego, tinha a sua família, e era considerado tanto um bom colega, como um bom marido. A dada altura na sua vida começou a sentir dores de cabeça. Foi ao médico e depois de alguns exames descobriram que ele tinha um tumor no lobo frontal do cérebro. Submeteu-se a cirurgia, através da qual lhe removeram o tumor. Mas algo mais foi também removido.
Se leu o meu artigo sobre o acidente famoso que Phineas Gage sofreu, já poderá fazer uma ideia das possíveis consequências desta cirurgia, ainda que estas não tenham sido as mesmas. Após a cirurgia, Elliot parecia não ter perdido qualquer faculdade: continuava a ser uma pessoa inteligente, com acesso a todas as suas memórias, e sem qualquer problema de comunicação. No entanto, a vida de Elliot começou a desmoronar-se. A sua produtividade no trabalho diminuiu de tal forma que foi despedido. Envolveu-se noutros projectos, mas também esses falharam. A vida pessoal tomou um rumo semelhante: o seu casamento não sobreviveu. Depois do divórcio, casou-se uma segunda vez, mas também um segundo divórcio se lhe seguiu. Elliot tentou obter ajuda, mas foi-lhe negado subsídio de deficiência, pois aos médicos que o observaram ele parecia perfeitamente são. Talvez só preguiçoso ou quiçá malicioso.
Foi nesta altura que Elliot se apresentou a António Damásio. No decorrer das sessões, tornou-se evidente o porquê de Elliot ter fracassado no mundo profissional. No trabalho, Elliot era capaz de perder uma tarde inteira a tentar decidir como organizar um dado conjunto de documentos. Será que os deveria organizar por ordem cronológica? Será que os devia organizar por importância? Será que o tamanho dos documentos deveria ser o factor de ordem? Será que deveria encontrar uma outra característica melhor? Elliot conseguia raciocinar sem problemas, mas era incapaz de tomar uma decisão. Outras questões eram igualmente difíceis. Onde vamos almoçar? O restaurante X fica mais próximo. O restaurante Y é mais barato. O restaurante Z tem tido mais clientela. Sendo mais próximo poupa-se tempo, mas por outro lado podem demorar mais tempo a preparar as refeições. Ter mais clientela pode significar menos sossego. Será mais importante o sossego ou a qualidade da refeição? Deverei valorizar o tempo ou o dinheiro? Mesmo depois de chegarmos a uma dada resposta, é sempre possível questioná-la. Quando é que deveremos parar de fazer questões? Qual era o problema de Elliot?
António Damásio é um neurocientista português (1944-?). Estudou Medicina na Universidade de Lisboa, onde também se doutorou. Actualmente é professor de neurociências na Universidade do Sul da Califórnia.
Elliot não era idiota, mas agia como tal… Damásio percebeu então que tanto ele como os médicos anteriores se tinham focado no aspecto errado. O problema não era a inteligência de Elliot. Havia outro “detalhe” a considerar no relato do paciente: não no seu conteúdo, mas na forma como era exposto. Elliot relatava os infortúnios da sua vida como se estes lhe fossem indiferentes. Era como se ele fosse um espectador neutro da sua própria vida. Para testar esta indiferença, Damásio apresentou a Elliot várias imagens com um teor emotivo significativo: acidentes horríveis, pessoas quase a afogarem-se, incêndios, etc. Elliot constatou que aquelas imagens lhe teriam provocado impressões fortes no passado, mas que agora não lhe suscitavam qualquer reacção. Citando Damásio: “Elliot sabia, mas não sentia.”
O diagnóstico era agora claro. A cirurgia teria comprometido as emoções de Elliot, isto é, o seu sistema límbico (parte do cérebro que regula as emoções e comportamentos sociais). Além disto, este caso revelava uma conexão entre as emoções e a capacidade de tomar decisões. Damásio compreendeu que se por um lado precisamos da razão para encontrar as diferentes opções que temos, por outro precisamos da emoção para as valorizar, e do ímpeto emotivo para deter a infinitude lógica e decidir.
Com base no caso de Elliot, António Damásio formulou a hipótese dos marcadores somáticos. Damásio argumenta que a nossa aptidão de pressentir que algo é bom ou mau é essencial à tomada de decisões e resulta de uma aprendizagem do nosso sistema emocional. Muitas vezes nem precisamos de pensar, pois a decisão é de imediato evidente dada a nossa experiência. Trata-se de uma intuição assimilada que nos permite valorizar ou desvalorizar diferentes aspectos de uma dada circunstância. Quando se nos depara um novo problema sabemos logo qualificar a importância de cada ponto envolvido sem termos que questionar essa mesma importância. O valor das diferentes opções é algo que se sente, ainda que possamos também pensar nele. Assim, o nosso lado emocional funciona como um filtro que permite dar eficiência à razão, de forma a podermos decidir com eficácia e prosseguir para outros desafios.
Portanto, respondendo à questão inicial, a emoção não só não é um obstáculo, como é imprescindível para se tomarem decisões, sejam elas boas ou más. A razão é de certo preponderante para avaliar as diferentes opções, mas essa apreciação tem por norma uma componente emocional inerente. A razão mostra-nos o mapa, a emoção dá-nos o relevo.
“Desculpa, Maria, mas a minha intuição tem-me andado a dizer para evitar palpites!”
10 comentários
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Então e os “gut feelings” do Bush que foram criticados por tanta gente? 😉
Ele decidia basicamente por emoção… (esta era a perceção que se tinha)
Author
Apesar de precisarmos da emoção para decidirmos, isso não implica que nos devamos basear somente nela. 🙂
Mas porque colocas as emoções a nível do cérebro quando há emoções dos intestinos/estômago? 😛
Li em qualquer lado (um livro provavelmente) que as emoções no passado forem entendidas como vindas dos intestinos/estômago, daí essa expressão (gut feeling).
Isso é verdade?
Author
Os intestinos expressam-se de outra forma… :p
Não sei, nunca li isso em lado nenhum. Pensava que era uma expressão que derivava do facto de “intuir” significar algo como “conhecimento que vem de dentro”…
Olá Marinho, gostei muito do artigo!
Entender as funcionalidades da mente humana é algo muito interessante.
Lembro-me de ter lido em um livro publicado por uma revista brasileira, um capitulo que explicava sobre os marcadores somáticos, essa hipótese é realmente muito convincente, pois mostra-nos que nossa razão parte de princípios emotivos para definir o que iremos fazer, é uma ligação que ocorre em cada informação guardada por nosso cérebro, onde para cada situação existe um sentimento ligado, nosso cérebro portanto usa as emoções como indicadores de resultados para cada decisão que poderá ser tomada!
Excelente artigo,e um excelente assunto para debates!
Author
Olá Rodrigo, obrigado pela apreciação positiva do artigo. 🙂
Sim, creio que é fácil de reconhecer que é uma hipótese plausível, pois ao analisarmos a forma como tomamos decisões, verificamos que de facto há muitos detalhes que não questionamos. Se questionarmos a valorização intrínseca de cada detalhe reconhecemos que nem tudo é matéria de ponderação racional. Parece que a intuição é em parte apreendida pela razão, e em parte assimilada de forma inconsciente pelas emoções.
Cumprimentos,
Marinho
De facto assim é. Obrigado pelo seu artigo. Muito bom!
Author
Obrigado António!
Cumprimentos,
Marinho
Também a ideia que a consciência é que toma decisões mas não é verdade. A consciência não toma decisões ela é apensas a perceção das mesmas. As decisões são tomados pelo todo e não pelo cognitivo este limita-se a percecionar as mesmas.
Author
Olá Nuno,
Imagino que se esteja a referir a um artigo do Rui Costa da Fundação Champalimaud sobre evidências que parecem suportar a hipótese de que antes de tomarmos uma decisão motora, os mecanismos fisiológicos para o fazer já entraram em acção, parecendo querer indicar que a decisão já estava tomada antes de termos tido consciência dela. Acho que é preciso ter cuidado com generalizações, pois ainda somos demasiado ignorantes para as fazer. Para começar, definir o que é a consciência de um ponto de vista fisiológico não é de todo óbvio neste momento. Por outro lado, existem imensos tipos de decisões diferentes que podemos tomar, sendo que muitas dessas decisões podem ocorrer a um nível puramente “abstracto”, não sendo por isso claro de que forma é que podemos medir a causa e a consequência do fenómeno.
Portanto, à luz do que se sabe, as decisões são de certo tomadas pelo “todo”, o qual inclui a consciência. Não vejo qualquer motivo ou evidências suficientes para supor que a consciência apenas “percepcione” as decisões.
Cumprimentos,
Marinho