Entre estrelas duplas e estrelas de carbono

Aproveitando algumas noites de céu limpo dei comigo, há alguns dias, a debater-me com uma das consequências na astronomia da conhecida Lei de Murphy: a regra de que a chuva tende a coincidir temporalmente com a Lua nova, sobrando os céus limpos para as restantes fases do ciclo lunar. Assim, e apesar da minha disponibilidade para enfrentar o frio de janeiro, o meu desejo de sacudir o pó ao equipamento chocou com várias noites daquele magnífico luar que encanta os amantes na proporção direta à da irritação que causa nos astrónomos amadores. Incapaz de fazer o que quer que seja em relação ao albedo do nosso encantador satélite natural (espero que, no mínimo, as gerações futuras considerem pintá-la de preto) refugiei-me na observação estelar, nomeadamente de sistemas estelares múltiplos e estrelas de carbono. Sobre os primeiros, apenas uma recomendação: H 3945, em Canis Majoris (AR 07h16.6″ DEC -23°19′) é um forte candidato ao título de melhor Albireo quando não há Albireo. O contraste entre o laranja amarelado e o azul vívido é um pouco esbatido por uma separação apreciável (26.40”), mas o efeito é, ainda assim, enleante.

De facto, sistemas duplos com contrastes de cores e magnitudes dão sempre um agradável toque de cor a uma actividade que, para o astrónomo que privilegia a observação direta, pode tornar-se demasiado a preto e branco. E, uma vantagem acrescida, é genericamente compatível com luar (ainda que a luz do nosso satélite natural possa, mesmo assim, prejudicar a vivacidade das cores). Outras estrelas isoladas (pelo menos visualmente isoladas) podem igualmente ter cores interessantes que, ampliadas por um telescópio, são francamente deliciosas, como por exemplo Betelgeuse, com o seu laranja profundo, Mu Cephei (em Inglês conhecida como Herschel’s Garnet Star), uma distante supergigante vermelha que impressiona com o seu tom ocre ou mesmo, por razões diferentes Sirius, que com a difracção atmosférica a que a sua posição baixa no firmamento a sujeita, cintila furiosamente, qual bola de espelhos, com todas as cores do espectro.

Outra deslumbrante manifestação de cor é-nos oferecida pelas estrelas de carbono. O que são, portanto, as estrelas de carbono? Muito simplesmente, gigantes vermelhas de baixa temperatura que apresentam uma quantidade de carbono superior ao habitual nas suas camadas superficiais. Numa estrela dita normal o carbono liga-se ao oxigénio para formar monóxido de carbono (CO), ao passo que numa estrela de carbono o excesso deste elemento fica livre para formar outro tipo de moléculas. Movimentos de convecção dentro da estrela transportam esses elementos até à superfície (como acontece com água a ferver dentro de uma panela), ali acumulando uma camada de fuligem de carbono que torna a estrela ainda mais vermelha e menos brilhante. Periodicamente a estrela explode, sacudindo para o espaço essa cobertura de fuligem e brilhando mais e num tom menos avermelhado, até que a fuligem se acumula de novo, processo esse que se repete ciclicamente, fazendo das estrelas de carbono estrelas variáveis. Em função destes processos, estas estrelas perdem massa a um ritmo muito elevado, enriquecendo o meio interestelar com apreciáveis quantidades de compostos químicos baseados em carbono.

A estrela que captou a minha atenção nessas noites de luar, luas azuis, luas de sangue e demais fenómenos excelentes para facilitar a caça ao clique foi R Leporis (descoberta em 1845 pelo astrónomo britânico John Russell Hind, e por isso também conhecida como Estrela Carmesim de Hind). Quiçá perturbada pelo céu banhado na luz leitosa do nosso satélite natural, a estrela apresentou-se com um laranja profundo, algures entre ocre e vermelho-tijolo. Nas minhas notas do ano transato aponto um vermelho profundo, sanguíneo, entre o rubi e o carmesim. É também possível que a estrela esteja numa das suas fases mais brilhantes, logo menos vermelha.

Mais a Este no firmamento há outras duas interessantes estrelas de carbono na constelação da Hidra, U e V Hydrae. Bastante próximas (tanto que inicialmente até vi uma a pensar que era a outra) as cores oscilam entre o laranja e o vermelho, globalmente menos vermelho do que R Leporis, mas ainda assim um delicioso toque de cor no veludo negro do céu.

Para os astrónomos amadores do sexo masculino fica, assim, uma sugestão: em vez de embasbacar perante luas cheias que nem para observar crateras servem, que tal aproveitar a época romântica que se avizinha para trazerem a namorada/esposa/companheira até ao telescópio e perguntar-lhe que cor destrinça nas estrelas duplas ou de carbono que estiverem a observar? É afinal sabido que elas costumam ter a capacidade de destrinçar na parte visível do espectro eletromagnético nuances de cores que nós homens nem suspeitamos. Deixo aqui um pequeno glossário que pode vir a ser útil: Borgonha, Cardeal, Carmim, Coral, Bordeaux, Persimmon, Rust, Terracotta, Vermelho veneziano, Mahogany… Enfim, uma paleta de sombras ou de batons para maquilhagem que a vai encantar.

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