Nesta altura do ano, no início da noite, podemos observar constelações típicas do céu primaveril como a Ursa Maior, o Leão, o Boieiro e a Virgem. A estrela Arcturus, de cor alaranjada e muito brilhante, na constelação do Boieiro, pode ser facilmente identificada seguindo uma linha imaginária que prolonga a curvatura da cauda da Ursa Maior. Continuando no curso dessa mesma linha, encontramos uma estrela branca brilhante, mais próxima do horizonte. Trata-se de Spica, a estrela mais brilhante da constelação da Virgem. Este ano, o planeta Júpiter pode ser visto um pouco para a esquerda (Este) de Spica, já na constelação da Balança, e é o objecto mais brilhante dessa zona do céu. Spica forma com Arcturus e Denebola — a estrela que marca a cauda do Leão — um triângulo quase equilátero designado por “Triângulo da Primavera”.
A constelação da Virgem é extremamente antiga, conhecendo-se referências à mesma em textos babilónicos. A representação que sobrevive até aos nossos dias, sob a forma de uma jovem com uma espiga na mão, está associada ao mito grego de Demeter, a deusa da agricultura, das estações do ano e da fertilidade da Terra. Os romanos rebatizaram-na com o nome de Ceres (de onde deriva o nome “cereal”). Um episódio particularmente notável, descreve como a sua filha, Perséfone, foi raptada por Hades, o deus do inframundo, para ser sua consorte, com a cumplicidade de Zeus. Ao dar pelo acontecido, Demeter, enraivecida, vagueou pela Terra à procura da filha impedindo as plantas e culturas de se desenvolverem, daí resultando grande desolação e fome. Numa tentativa de sanar o problema, Zeus intercedeu junto de Hades para que Perséfone retornasse à superfície. Hades acedeu mas não sem antes enganar a pobre donzela oferecendo-lhe uma romã que, ao ser comida, a condenaria a permanecer no inframundo. A disputa foi finalmente resolvida com o acordo de que Perséfone passaria alguns meses por ano com Hades, período durante o qual a Terra permaneceria desolada — o Inverno. Nos restantes meses, Demeter e Perséfone, então juntas, devolveriam a fertilidade à Terra e permitiriam a prática da agricultura.
A espiga com que Demeter é representada marca a posição da luminária da constelação, a estrela Spica. O seu brilho de primeira magnitude e a sua posição pouco elevada relativamente ao horizonte, que torna mais difícil a observação das estrelas mais débeis que existem em seu redor, transmite uma sensação de melancolia que contrasta com o sentimento dominante da estação. Mas Spica não está só! A análise da sua luz revelou que se trata de uma estrela binária espectroscópica. Num tal sistema, as componentes estão demasiado próximas para poderem ser observadas com telescópios comuns, sendo a presença das duas estrelas inferida pelo movimento alternado de dois conjuntos de linhas de absorção no seu espectro. A análise desse movimento com espectroscópios, bem como observações realizadas com interferómetros como o CHARA e o SUSI, permitiram aos astrónomos descobrir alguns factos curiosos sobre o sistema.
Situadas a 250 anos-luz, ambas as estrelas de Spica são de tipo espectral B, com temperaturas superficiais na ordem dos 20 mil Kelvin, 4 vezes mais quentes do que o Sol. Uma delas é mais evoluída tendo já saído da sequência principal — a fase da vida das estrelas em que realizam a fusão do hidrogénio em hélio no seu núcleo — , transformando-se numa estrela gigante com uma luminosidade 12 mil vezes superior à do Sol. As suas 11 massas solares permitir-lhe-ão, daqui a alguns milhões de anos, desenvolver um núcleo de ferro e níquel e explodir numa supernova. A outra componente é mais modesta e ainda está na sequência principal, brilhando com a luz de 1500 sóis. Com as suas 7 massas solares, e se estivesse isolada, terminaria a sua vida como uma anã branca iluminando, durante alguns milhares de anos, uma bela nebulosa planetária. Mas num sistema binário coisas bem mais interessantes podem acontecer. As estrelas orbitam em torno de um centro de gravidade comum em apenas 4 dias e a uma distância média de 18 milhões de quilómetros. Actualmente, a órbita apertada permite que a gravidade intensa deforme as estrelas em elipsóides alongados ao longo do eixo maior. Mas isto é apenas o começo. Quando a estrela gigante evoluir para uma supergigante vermelha, esta proximidade permitirá a transferência de material entre as duas estrelas baralhando a evolução do sistema. Quando a supergigante vermelha finalmente explodir numa supernova, tudo o que restará no seu lugar será uma estrela de neutrões e é possível que Spica se transforme num sistema binário de raios-X.
Fontes: livro The Greek Myths, Robert Graves, Penguin, 2011. Artigo científico, artigo científico.
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